10/02/2018

Carta de Paris

Meu querido Amadeo,  Sei que estás em Manhufe, a fugir da guerra. Escrevo-te esta carta depois de me terem falado do quadro que pintaste e não intitulaste, mas a que todos chamam “Coty”. Acertaram. Conheço-te bem; sei que mascaraste a minha identidade com a marca desse perfume que sempre uso. Podes achar que ninguém vai reparar, mas há pessoas que me conhecem e vão perceber tudo e as intimidades que tínhamos. Não devias ter feito isso. As pessoas vão ver os insetos pousados nas pétalas rosadas e vão perceber, vão ver os ganchos de cabelo e vão perceber. Escusavas de ter posto...

10/01/2018

Os números de Lucas

Ao José Espírito Santo, que me deu a conhecer “Os números de Lucas” Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”. * Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava...

10/12/2017

Com a Melhor das Intenções

— Eh, pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a puxar ao sentimento, mas mesmo tocante — dizia Barbosa ao seu colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da Judiciária. — A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como? Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da academia, o primeiro,...

10/11/2017

Dia do Juízo Final

(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista) Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto: O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números...

10/10/2017

A Carta Anónima

Pouco antes do Natal, ao levantar-se, Otávio deparou com a seguinte mensagem, colada na porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas num pedaço de papel: «/ milhões / anjinhos / visitaram / chefe / guitarra / servida / niquinhos /». Incompreensível como parecia, não lhe ligou grande importância. De qualquer modo, telefonou à mulher. Não tinha visto nada, quando saíra. Teria sido, com certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de...

10/09/2017

O papa-jornais

Na minha rua existe uma personagem singular — um devorador de jornais. Traga todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas dos cafés, quer os que o vento empurra rua afora. Uma vez por outra, já o vi até debruçado pela abertura do Papelão. Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria que o caracteriza. A mulher...

10/08/2017

Um dia de sonho

O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços. Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça,...