10/09/2024

A culpa

 

Quando preparava a torrada do pequeno almoço, no primeiro dia de férias na terra, o homem cortou-se. Aquele golpe trouxe-lhe à memória um longínquo episódio que estava enterrado sob camadas de esquecimento: devia ter já vinte anos quando ele e um dos melhores amigos de então, tinham pela última vez marcado a canivete os respetivos símbolos tribais numa árvore junto à ribeira. Era então a zona de banhos da juventude, sobretudo estudantil, à falta de uma piscina municipal, só construída trinta anos depois. Recorda que, por aqueles dias, alguma coisa se quebrou naquela amizade, mas tem ideia de que nunca chegou a saber o porquê. O que não impediu um sentimento de culpa que permaneceu. Teria sido uma palavra infeliz?; um ato mal-entendido? Talvez uma questão de saias. Lembrava-se que o amigo catrapiscava uma jovem, mas que não levou o intento adiante.

A tropa chegara abruptamente para toda a gente. Cada um seguiu rumos diferentes e nunca mais se viram, nem souberam um do outro.

O homem decide que nessa mesma manhã irá à ribeira, nesta fase de balanços de vida que atravessa.


Há muito que o homem não se aventura sozinho por aquele ermo. Vai contemplando as formas imperfeitas que um falcão desenha no céu luminoso da manhã de agosto, enquanto caminha. Um ténue halo de poeira, que só o falcão vê, sobe do antigo caminho dos moleiros. O caminhante avança resoluto por aquele trilho rural entre muros baixos, alguns derrubados. Passa muito das dez horas e o calor já promete torrar cada vivente. Aqui e ali, giestas e sargaços secos comprimem aquela senda abandonada, até restar quase só uma vereda. Em tempos, passavam por ali carroças e carros de bois; agora, talvez só pequenos rebanhos e algum caminhante desavisado.

O temerário tenciona passar as horas de maior calor no Pego da Azenha, um troço pitoresco da ribeira que desliza, relutante, a uns três ou quatro quilómetros da sua terra. Em adolescente gostava de se refrescar ali, banhar-se, brincar na água. Há quarenta anos, a corrente estava represada e criava uma piscina natural, com a graça de estar pontilhada de rochas arredondadas pela correnteza.

Avista ao longe o vulto de uma criatura que vem na sua direção. Estranha a presença, sente alguma apreensão. A agricultura está extinta na zona, a pastorícia está reduzida a cercados onde o gado fica por sua conta. Quem mais se aventurou por aquele percurso solitário com o calor a tornar-se já desconfortável?

O homem toma consciência do total isolamento em que está mergulhado. Não estava à espera. Apesar de ter sido criado no campo, desde a partida para a tropa que se tornou um urbano-dependente. Já não tem familiaridade com o espaço rural, muito menos com os seus habitantes. Recorda a navalha que todos usam.

Porque foi lembrar-se disso? Não há nenhuma razão para temer outro homem que ande por ali. Em alguns bairros arredados dos centros das cidades, aí, sim, acredita que há que ser cuidadoso. A figura, de ar envelhecido, talvez devido à barba grisalha, caminha com calma, mas determinação, ajudada por um pau tosco.

O visitante abranda o passo, para fazer coincidir o cruzamento com uma zona mais larga do caminho, em que terá havido um charco no inverno. Controla o outro de olhar baixo. Avança pelo carreiro que contorna pela direita a terra seca gretada; o desconhecido pelo outro lado. No ponto em que estão mais afastados, o homem levanta o olhar, sem levantar o rosto; o outro para, mirando o oponente, sem se voltar.

O homem sente um incómodo, um presságio de perigo; parece-lhe reconhecer aquele rosto carrancudo escondido pela barba. Diria que, se fosse mais novo, poderia ser ele próprio. Um arrepio surpreende-o. O olhar do outro é intenso e acusador. Sem palavras, sem ameaças, aquela presença domina-o com as maiores acusações, as mais fundas imputações de culpa. Luta para afirmar, garantir, convencer-se da sua inocência. Em vão. O olhar duro do estranho não lhe dá oportunidades de fuga.

Desculpa! — acaba por articular.

O olhar do outro desarma, acalma, adoça. Baixa por momentos o rosto, depois encara o caminho e recomeça a andar, no mesmo ritmo calmo de antes.

O homem desaba em si. Sente um grande cansaço. Retira-se para debaixo de uma azinheira raquítica que por ali está, senta-se encostado ao tronco e nem dá pelo passar das horas de calor intenso desse dia.

Joaquim Bispo

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Este conto foi lido no programa de rádio de António Serra "Sebenta do Tempo", do passado dia 4 de Outubro de 2024, pelas 11:00 h. Poderá ser escutado na RLX-Rádio Lisboa em: https://rlx-radiolisboa.pt/

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Imagem: Cruzeiro Seixas, Vencedores e vencidos dos combates cerimoniais, não datado.

Proveniência: Coleção Prof. Doutor Rui-Mário Gonçalves.

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4 comentários:

  1. Belos contos estes de Joaquim Bispo. O conto é a arte mais difícil da Literatura. Num curto espaço de letras tem de caber uma história bem contada e que deve conter alguma inquietação e/ou surpresa. JB é mestre do conto. Grato por me ter bem ocupado algum do meu espaço de tempo.
    JG83

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    1. Caramba, Jorge Golias! Em poucas palavras, brindou-me com um louvor que vem juntar-se ao grupo, já extenso, dos mais saborosos que tenho recebido. Obrigado!

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  2. E aqui vão os parabéns de mais um transmontano para o Joaquim Bispo, jovem talentoso que tive o ensejo de conhecer e de apreciar também nos anos em que convivemos na RTP.

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    1. O jovem já lá vai, Dr. Moutinho, e esses tempos também. Obrigado.
      Abraço!

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