10/03/2025

O eremita

 


Na manhã em que foi anunciado o fim das medidas de confinamento social, Jerónimo cortou a barba. Ao fim daqueles meses, já começava a dar ares de monge do deserto. Teve dificuldade em concentrar-se na tarefa delicada de rapar a cara, com tanto barulho na rua. Ouviu-se um estrondear de foguetes. O leão estremeceu, inquieto.

Antes de sair, meteu um bocado de pão rijo na boca. Largara-lho, havia dois dias, a pega que vinha aliciando com as larvas que lhe iam aparecendo na despensa. Na rua, foi metralhado pelo ruído infernal de buzinas e carros em alardes de escape. Os passeios iam cheios, como se o perigo de contágio tivesse desaparecido. Parecia que tinha vindo gente de todo o concelho. Abraçavam-se aos magotes, em amizades inesperadas. Bem lhe apetecia apertar a roliça do prédio em frente, que, de uma janela para a outra, o tinha ajudado a acalmar o leão, nos negros tempos do confinamento radical, mas retraiu-se. Sentia-se trôpego.

No meio da multidão, muitos pareciam tolinhos, a lançar olhares para todos os lados, deslumbrados, como se nunca tivessem visto prédios, carros e árvores. Paravam no meio da rua, boquiabertos e atarantados. Abriam os braços, riam, davam gritos estridentes ou roucos, cantavam.

Passou uma ambulância em marcha acelerada o som terrível da sirene fizera arrepiar muitos , mas, desta vez, foi aplaudida freneticamente.

Alguns vizinhos cumprimentaram-no; passou um bando animado que o abraçou efusivamente, sem que o conseguisse evitar. Os desconhecidos quiseram depois fazer uma espécie de dança tribal, mas Jerónimo, desconfortável, conseguiu afastar-se.

Manquejando um pouco, rompeu a multidão e atravessou a cidade em direção ao arrabalde, no trajeto mais direto para campo aberto. A um quilómetro dos prédios, conseguiu voltar a ouvir alguns chilreios, consolo natural que muitas vezes o salvara, no longo ostracismo imposto.

Por associação, lembrou-se do que o encaminhara para ali: as suas árvores, os quatros frágeis caules que plantara, antes da pandemia, numa zona de propriedade incerta no final desse caminho. Tantos quantos os ovos que tinha o ninho de cotovia que encontrara naquele dia que parecia tão longínquo. Temeu pelas suas plantinhas. Duas faias e dois cedros. Passara o tempo chuvoso e já tinham vindo muitos dias de sol intenso e grandes calores.

Em quarenta minutos, chegou à sua floresta pessoal. Quatro raminhos secos, sem folhas, separados entre si por quatro metros - qual mortífero distanciamento social -, era tudo o que restava da sua mais recente utopia. Então, só então, quebrou: foi incapaz de conter o choro. Depois dos meses de cárcere e ascetismo, o vírus dera-lhe a estocada mais dolorosa. Deixou-se ter compaixão de si. Soluçou, sentado numa pedra da berma do caminho, o rosto molhado apoiado nas mãos.

Passados uns minutos, uns piados fizeram-no levantar o rosto. Olhou em volta e avistou um pequeno bando de cotovias, no seu característico voo de impulsos e pausas no bater das asas. Correu à concha moldada na terra, sob uma ervas, onde vira quatro ovos havia tanto tempo. Vazio. Quis acreditar que os ovinhos se tinham transformado em cotovias e agora voavam, vivas e em liberdade. A pandemia matara muitas pessoas umas de morte corporal, outras de morte social , mas poupara o desenrolar normal da vida da Natureza.

Voltou para casa, apaziguado a sua caverna, como gostava de pensar. Agora havia que recomeçar. Dar oportunidade de vida a si e a outras árvores. Sem esquecer o leão, que estava mais morto que vivo.

Joaquim Bispo

*

Uma versão deste conto integra a coletânea em papel (páginas 224 a 225) resultante do II Concurso Literário do Curso de Letras do Instituto Federal do Paraná — Campus Palmas, 2020.

*

Imagem: IA.

* * *

Outros:

  • Saudades da Minha Terra Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha … Ler Mais
  • Colo Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas … Ler Mais
  • Crescer Quando o telemóvel emitiu o trinado de nova mensagem, Susana saltou para o agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da turma. Nessa manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o sentir como uma maçada, a perspetiva de rever as amigas fizera-a pular da cama cheia de entusiasmo. Não foi … Ler Mais
  • Um som no escuro Naquele setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes para espraiarem por paragens além-fronteiras o otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso. À noite, em … Ler Mais
  • Sem abrigo O dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do psicanalista a Lisboa. Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a pedir … Ler Mais

10 comentários:

  1. Gostei como sempre!
    EF

    ResponderEliminar
  2. Sempre bom. Obrigada
    Guinha

    ResponderEliminar
  3. Os ascetas escrevem assim, bem, mas, frágeis como os saltitos das cotovias nas bermas das quelhas do João Serrão.
    maneldalcains

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, Maneldalcains.
      É mais bater de asas intermitente, nas várzeas da barroca da Tapada dos Frades.
      Abraço!

      Eliminar
  4. Augusto Gervásio25 março, 2025

    Mais uma introspecção que saiu da tua “caixa” de surpresas. É sempre bom ler os teus desenvoltos de imaginação. Parabéns

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A imaginação teve muito em que se inspirar, mas também lhe afrouxei a rédea…
      Obrigado. Abraço!

      Eliminar
  5. Escrita saudável e admirável que tanto melhor se frui quanto mais se ama a natureza. A minha vénia. JG84

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Jorge Golias, não só pelo conteúdo da sua mensagem, mas também pela forma.
      Abraço!

      Eliminar