10/07/2024

A pedra

 


No verão, Damião passava o dia na ribeira. Um fio de água, um charco aqui outro acolá; para os seus quinze anos, era o paraíso na Terra. Caçar pássaros com a fisga não passava de pretexto para andar descalço pelas areias sussurrantes, sob a sombra de amieiros e salgueiros. Raios de sol penetravam nas densas ramagens, mas não conseguiam alterar o frescor da proximidade da água.

Silêncio não havia, tampouco ruído. Sons naturais eram a melodia do local: rumorejos das copas verdes, cicios do fio de água em algum socalco entre pedras, um ou outro chilreio. Ao longe, o som cristalino das campainhas dos rebanhos e os cantos de ranchos de mulheres, em trabalhos campestres.

Naquele dia, esta sinfonia em surdina foi alterada por um chape-chape. Damião afastara-se ribeira abaixo para uma zona aonde ia poucas vezes. A uns duzentos metros, havia um pego com uma dimensão que permitia nadar. Era de lá que o ruído vinha. Aproximou-se furtivamente, não deixando que a areia pisada o denunciasse.

O inesperado afogueou-o. Era Delfina, a filha do rendeiro da quinta contígua, um ano mais nova do que Damião, e que ele já não encontrava havia bastante tempo. Espreitada dali, parecia nua, e muito entretida a nadar.

«Caramba! Como está bonita! E nua?»

A curiosidade era bem mais potente do que o respeito devido. Decidiu ficar à espreita até vê-la sair da água. A catraia, no entanto, alongava o tempo de banho. Com o coração a bater, farto de conter o entusiasmo, Damião resolveu acelerar o processo.

Pôs um seixo na fisga, sentiu-lhe a dureza, apontou para uma rocha do outro lado do pego e disparou. A pedra ressaltou no penedo e caiu na água. A miúda parou de nadar, olhou a toda a volta, em alerta. Damião meteu a mão ao bolso e atirou segunda pedra. Desta vez, a menina nadou rapidamente para a margem, apanhou as roupas e correu para casa.

Atento, sem pestanejar, Damião não obteve mais do que um vislumbre fugidio do que queria contemplar, mas que o exaltou até ao êxtase. E nunca mais o abandonou. Anos depois, ao recordá-lo, mete a mão ao bolso e ainda encontra lá a dureza da primeira pedra.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 1º lugar, na categoria Conto, no IV Concurso Literário Internacional Palavradeiros, de Boa Vista, Roraima, Brasil, e integra a coletânea resultante — páginas 24 a 25:

http://arteleituras.blogspot.com/2019/12/antologia-do-iv-concurso-literario.html

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Imagem: Menir do Outeiro, c. 4000–2500 a.C.

Altura: c. 5,6 metros. Diâmetro: c. 1 metro. Peso: c. 8 toneladas.

Reguengos de Monsaraz.

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4 comentários:

  1. Muito bonito. Parabéns!

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  2. Olá Bispo
    Desejo que esteja tudo bem contigo.
    Este excelente e curto conto foi o ultimo que li de ti. Por distração ou falta de jeito, deu-me para apagar o lixo da minha caixa de emails e o resultado é que apaguei todos. Alguns, muito poucos, ainda recuperei, mas o grosso foi-se.
    A idade não perdoa. Um grande abraço para ti.

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    1. É a idade, mas também as plataformas tecnológicas, que oferecem armazenamento ilimitado, mas depois não é bem assim. Também já tive de apagar todas as mensagens de um meu endereço de e-mail.
      Abraço!

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