10/08/2023

A Grande Extinção

 

O sol iniciava o percurso descendente sobre a área predominantemente agrícola que será conhecida, sessenta e cinco milhões de anos depois, por Lourinhã e se estende bem para dentro do espaço que será mar no futuro. Em todos os ninhos urbanos terminaram já as diligências alimentares do período zenital, exceto no ninho de Albbano. Alddina mantinha quentes as fatias de ovos de anquilossauro com caules tenros de rhynia, enquanto, inquieta, espreitava o caminho, na esperança da chegada iminente do companheiro. A certo momento, resolveu pedir ajuda ao filho de ambos, através do comunicador.

Não te preocupes, mãe. Assim que o encontrar, aviso-te — sossegou-a ele.

Alccino transpôs rapidamente a distância até à exploração pecuária do pai. Com o olhar percorreu as suaves ondulações cobertas de polipódios, onde pastavam pachorrentamente uma dúzia de torossauros. Não viu a silhueta altiva do pai, um parassaurolofo corpulento, mas um pouco dobrado pela idade. Entrou na chocadeira central, e os funcionários disseram que ficara abatido quando soubera de mais três eclosões goradas.

Após um tempo de caminhada atenta pela vertente da ladeira, alcançou o alto da colina. Cheiros adocicados embebiam-no. Por momentos, abstraiu-se do que o trouxera ali. Olhou a toda a volta. Para norte, a vista admirável e querida do seu Vale Fetal, com o verde de vários matizes a colorir a distância até à vertente oposta e mais além. Para sul, a dois vales de distância, as manchas redondas e ocres dos ninhos urbanos da povoação. Mais perto, os vales dos vizinhos e amigos Esppinos e as suas explorações pecuárias de alamossauros, os enormes herbívoros ternos e pachorrentos. Seria possível que o pai tivesse vindo visitar os amigos?

Veio-lhe à memória outro episódio de há muitos anos, quando uma epidemia lhe matara dezenas de animais. Nessa altura, foram descobri-lo amodorrado numa enorme rocha lisa virada ao sol do oeste, de onde se avistava o mar e aonde só se chegava por uma vereda.

Também agora foi encontrar o pai alapado na Pedra do Poente em grande prostração. A crista, habitualmente alaranjada, era agora cinzento-esverdeada. Não parecia ferido, só abatido. Aproximou-se suavemente. Queria ajudá-lo, não invadir a sua privacidade.

Então, pai! Estás aqui! Estávamos a ficar preocupados...

Não obteve reação. Albbano mantinha um olhar de enorme tristeza perdido na lonjura.

Não fiques assim, pai! — disse Alccino cheio de ternura. — São só mais três ovos gorados. Já aconteceu muitas vezes.

Alccino comunicou com a mãe a sossegá-la e continuou a tentar animar o pai, com argumentos racionais. Finalmente, Albbano começou a falar em voz baixa, pausadamente.

Não são só mais três ovos gorados, filho, nem só mais um animal morto! Nós estamos a extinguir-nos. O ambiente está envenenado com os compostos de irídio que servem para tudo. As crias não conseguem romper a casca. Está cada vez mais dura e inquebrável. E não é só com os animais. Como já te contei algumas vezes, para tu nasceres houve que quebrar a casca artificialmente. Nós, os parassaurolofos, praticamente já só nascemos de crustatomia. Se não fossem os cuidados obstétricos, desaparecíamos. O panorama geral é preocupante. As crias não conseguem romper a casca, os ovos não são fertilizados, as populações de todas as espécies estão a diminuir a um ritmo assustador. Todos os anos desaparecem muitas espécies para sempre.

Calou-se, por momentos, a ganhar alento. Alccino respeitou o silêncio do idoso.

A destruição da vida no planeta, tal como a conhecemos, está a tomar proporções gigantescas. Dantes, além, avistava-se o tremeluzir da superfície do mar. Agora, o que se vê são reflexos de objetos a flutuar. Mantas de lixo a cobrir enormes áreas de oceano. Há quanto tempo lá não vais? É triste, deprimente, apetece não voltar lá mais. Como nos deixámos chegar a esta situação? Estamos mesmo em perigo, acredita!

Fez uma pausa, a rememorar, a organizar leituras.

Eu vou-me informando, sabes! Já houve outras épocas da Terra com indícios semelhantes e que resultaram em enormes extinções. A maior foi há 185 milhões de anos, que fez desaparecer 96% das espécies marinhas e 70% das terrestres. Devido à gravíssima situação que atravessamos, os cientistas já falam na Extinção em massa do Cretácico, a época atual, ou a Quinta Extinção. Estão registadas cerca de oitocentas espécies que se extinguiram nos últimos quinhentos anos, mas, como a maioria não está documentada, os cientistas calculam que é mais provável que se tenham extinguido entre vinte mil e dois milhões de espécies, só no último século. E, tendo em conta os limites do conhecimento atual, a taxa anual de extinção pode chegar às 140.000 espécies. Estamos no limiar da catástrofe.

Alccino agachou-se, abatido pela força terrível dos números.

Mas, pai — reagiu —, não são só teorias malucas de tipos que veem um mosquito e lhes parece um alamossauro? É que eu nunca ouvi falar disso…

Não, Alcci, quem afirma que a extinção atual é um facto são cientistas conceituados entre os seus pares. Dão conferências, mostram dados, mas parece que ninguém os ouve. E dizem mais; dizem que somos nós — a espécie dominante —, que estamos a provocar a extinção em curso. Com a caça intensiva, a introdução de organismos perigosos para os nativos, a destruição dos ambientes naturais, a desflorestação, a sobreexploração agrícola, a poluição, o envenenamento com agrotóxicos e hormonas pecuárias. Infelizmente, o que está na raiz de todos estes problemas é o crescimento populacional contínuo da nossa espécie e o consequente superconsumo. Já viste que os animais, sobretudo os grandes, não têm áreas onde possam viver em liberdade? O planeta está praticamente todo ocupado por nós...

Mas sempre houve espécies a desaparecer de maneira, digamos, natural…

Sim, só que com a nossa ação, a que alguns também chamam natural, mas de extensão e intensidade avassaladoras, a perda de biodiversidade é dez a cem vezes mais rápida. E seremos nós que acabaremos por pagar um preço demasiado alto, pela rápida diminuição do único conjunto de vida que conhecemos no Universo. Ficaremos sozinhos. Sem a concorrência que vencemos, extinguimo-nos também. Foi uma má opção termos dado ouvidos ao venerado texto que nos aconselhou a multiplicar-nos e a prevalecer sobre todos os outros companheiros de viagem desta nave cósmica.

Isso não pode ser assim tão dramático, pai. Nós somos a espécie mais bem sucedida de toda a história do planeta...

Este sucesso começa a parecer demasiado catastrófico. Quando deteriorarmos o planeta a um nível irreversível, seremos nós a extinguir-nos. Ironicamente, essa pode ser a solução para o planeta e para a vida que restar: livrar-se de nós.

Albbano calou-se. Pai e filho mantiveram-se pensativos ainda por algum tempo. Talvez por ter desabafado, Albbano começou a sentir-se com forças para regressar. Em passos brandos, porque anoitecia e a vereda podia ser traiçoeira, dirigiram-se para o ninho, em silêncio. Por cima do horizonte, ia nascendo o cometa, que, havia semanas, iluminava as noites em todo o mundo, fazendo os agourentos predizer desgraças iminentes. A majestosa cauda ocupava já boa parte do lado nascente do céu. Caminhar para aquele esplendor celeste não atenuava a sombra de preocupação com a saúde do pai com que Alccino vinha a cismar.

Alddina recebeu-os ainda apreensiva, mas já calma. Depois de uma refeição ligeira, Albbano aninhou-se. Alccino chamou a mãe e agacharam-se a conversar.

Mãe, o pai não está bem. Fez-me uma conversa completamente alucinada. Só fala em fim do mundo e em catástrofes. Temos de o levar ao cuidador mental.

O olhos de Alddina humedeceram. Em esgar, pronunciou:

Já há algum tempo me tinha apercebido de que algo não estava bem, mas não queria admitir. Deve ser excesso de trabalho. Meu querido Albba!

Joaquim Bispo

*

Este conto foi um dos selecionados para a 40ª edição (julho/agosto de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 92 a 95):

https://drive.google.com/file/d/1G4TeTsjwPjDlu8mb5xDhUbiNF-TyToIY/view

*

Imagem: Parassaurolofo. Da Internet.

* * *


Outros:

  • Sempre Assim Será O meu nome é Lobulfo, chefe do clã dos Mamutin. Falo-vos do fundo dos tempos, na vossa linguagem artificiosa, para que me entendais. Sou filho de Ursácuo e de Bagulfa. Dela, mal me lembro, porque morreu com um filho preso no ventre, ainda eu era criança. Sei que fiquei muito triste. Construímos-lhe o útero de regresso com grandes pedras, numa pequena elevação junto à aldeia de então e … Ler Mais
  • A Guerra da Líria Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã. O negócio com os investidores imobiliários chineses tinha sido concluído. Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a apostar em aplicações financeiras agressivas, recebeu-o de imediato: — Tenho justamente o … Ler Mais
  • Uma noiva para João do Campo Era uma vez um rapaz que vivia sozinho no campo e raras vezes ia à cidade. Falava apenas com as cabras, os pássaros e as árvores, a não ser na festa dos rebanhos. Chegado à idade de casar, não conhecia ninguém que quisesse viver com ele, e pensava que todas as raparigas preferiam ficar na cidade, em vez de ir viver para o campo, onde, às vezes, faz muito calor e muito frio, e não há luz à … Ler Mais
  • O segredo de Desdémona Quando Yago chegou a casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as novidades: — Já se começa a perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do retrato da minha senhora. Ela está deitada num leito, toda nua, e do alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da cama, há uma velha que tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o conjunto representa a figura mitológica de Dánae, … Ler Mais
  • Breve Dissertação sobre o Palavrão Caros circunjacentes: A minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos: O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca afora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas … Ler Mais

6 comentários:

  1. Muito bom! Gostei muito!

    ResponderEliminar
  2. Ligação á realidade atual será pura ficção, no entanto não deixa de ser a nossa realidade.
    Mais um bom texto com que nos prendas.
    A,Grancho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, António.
      Estaremos a viver uma grande extinção, a 6ª.
      Abraço!

      Eliminar
  3. um belo texto para reflexão

    ResponderEliminar
  4. Obrigado, Anónimo.
    Espero que sim.

    ResponderEliminar