10/04/2022

A confraria do macho ibérico

 

Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente.

Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra, no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um maior afastamento.

Quando o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza. Amélia desfrutou as euforias das manifestações, das lutas por melhores salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas que, como ela, terminavam o turno à meia-noite, para beber um copo. Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a esperava a sogra controladora. Lourenço fazia geralmente o turno da meia-noite às oito da manhã.

No grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou de João Paulo, que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do quarto dele na Estrada do Desvio. Nunca o marido suspeitou, embora a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a casa.

Certa noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto — amaram-se no banco do pendura do carro de João Paulo, numa rua ainda sem casas dos altos do Restelo. A lanterna acesa da polícia de giro, tentando descortinar o que se passava para lá dos vidros embaciados, foi um final desagradável — pós-final, felizmente. Os dois agentes identificaram os amantes e aconselharam maior discrição.

No dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de Amélia — sabe-se lá com que intuitos lúbricos — e não houve como negar a relação extra-conjugal. Depois de discussões violentas, Amélia saiu de casa. João Paulo recolheu-a e durante umas semanas parecia que a situação era o melhor que lhes podia ter acontecido, a não ser…

A não ser pelos meandros escuros da natureza humana. Pareceu a João Paulo que a situação de Amélia era de dependência, e tornou-se um pouco sobranceiro. Além disso, a relação perdera aquela fulgurância de chama que só a clandestinidade atiça. Sem ser furtivo, o sexo perdia parte da graça. E Amélia não deixou de o perceber. Dois meses depois, mudou-se para um quarto que dividia com uma amiga.

João Paulo não gostou. Mesmo sem a excitação de coisa proibida, sexo em casa, disponível sem muito trabalho, agradava à sua preguiça inata. Agora voltava a ter de se esforçar: combinar encontros, organizar e acompanhar passeios, fazer trabalho de sedução. E tornou-se altamente ciumento. Quando soube que Amélia tinha saído com um grupo de outro colega, fez uma cena. Mas Amélia tinha crescido, à imagem do país, que estava muito mais aberto e liberal. Já não estava para aturar manápulas de controlo. E rompeu com João Paulo.

Ao contrário do homem de ideias arejadas que João Paulo parecera ser, revelou-se, afinal, um tipo misógino e vingativo: no auge do ressabiamento, telefonou para o ex-marido de Amélia; identificou-se, pediu desculpa pelos procedimentos anteriores — “qual é o homem que não aproveita, não é?” —, declarou-se solidário com a sua situação de marido enganado e pediu solidariedade para a sua similar situação de amante traído. Por palavras hábeis, demonstrou como ambos tinham sido atirados para a mesma humilhante condição por uma mesma pessoa, uma mulher volúvel, sem caráter. A terminar, indicou pormenorizadamente o local onde ela se encontrava com o novo namorado.

Lourenço, querendo recuperar alguma dignidade que julgava perdida, dispôs-se a mostrar firmeza conjugal. Dirigiu-se ao local indicado e efetivamente apanhou os amantes em flagrante. Uma moca de Rio Maior, que nessa altura era muito popular nas lutas políticas norte-sul, foi a ajudante que convocou para dar o necessário corretivo na ex-mulher. Deixou-a inanimada com escoriações e hematomas nas pernas, nas costas, no peito e um traumatismo craniano. O namorado escapou antes que Lourenço pudesse apanhá-lo.

A Polícia tomou conta da ocorrência e o processo da agressão foi a tribunal em novembro. Depois de ouvir as queixas de uma e as razões de outro, o despacho do juiz foi claro: admoestava-se o ex-marido pela conduta descontrolada, mas tomava-se em conta a humilhação a que tinha sido sujeito. Verberava-se com ênfase a conduta traiçoeira de Amélia, causa primeira das posteriores agressões. Referia-se que, felizmente para ela, já não se apedrejavam adúlteras, como era de lei nos tempos sagrados relatados na Bíblia.

De nada valeu que o advogado de Amélia lembrasse que não era ela que estava a ser julgada, que ela é que fora agredida barbaramente, e que era uma injustiça culpabilizar a vítima.

Amélia ouviu uma repreensão verbal por conduta indigna; o ofendido um pedido de comiseração, tendo em conta os tempos desvairados que se atravessavam. A mulher saiu calada. Sentiu-se outra vez género menor. Percebeu que a onda de liberdade e luz que a sociedade cavalgava não tinha tocado alguns setores.

Pouco depois, o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 75 punha um ponto final nas aspirações progressistas pós-ditadura de Salazar. Nada que ainda causasse perplexidade a Amélia. Claramente, o 25 de abril não chegara à Justiça, mas também já não ia chegar. Três meses depois, aceitou a carta de chamada de um primo e mudou-se para o Canadá. De vez.

Joaquim Bispo

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Este conto, com o título “Cinzas da vida”, foi um dos selecionados para a 32ª edição (março/abril de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 114 a 116).

https://drive.google.com/file/d/1G3VbQg7s19peE-PweF0EsaN7FZO9JfIB/view

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Também com o título “Cinzas da vida”, integra a coletânea “Direitos humanos e minorias” da Revista Gueto, 2º semestre de 2017, edição especial, pp. 64–66.

https://gueto.files.wordpress.com/2018/01/gueto_especial_02.pdf

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Imagem: José de Brito, Mártir do Fanatismo, c. 1895.

Coleção Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa.

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10 comentários:

  1. Estamos quase lá, para comemorar a liberdade...
    maneldalcains

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  2. Preferia comemorar a Liberdade depois de uma reforma da Justiça que contemple a defesa das vítimas, numa perspetiva dos Direitos do Homem.

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  3. Palavras agradáveis de ler, Margarida. Obrigado!

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  4. Pois e infelizmente é assim que continuamos, sem esperanças de melhoras! Vamos acabar a ver tantos sonhos por realizar!

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  5. Se bem que tivemos um vislumbre de esperança nos últimos seis anos. Abraço, Gomes Artur!

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  6. Continuas com uma imaginação de fazer inveja, pelo menos a mim.

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  7. Na verdade, não foi preciso grande imaginação, já que há um caso muito mediático que envolveu agressões a uma mulher com uma moca com pregos e uma lamentável decisão de um juiz. O resto? Toda a gente tem algumas peripécias romanescas…
    Abraço, André!

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