10/12/2022

Do lado de fora

 

Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.

A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.

Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada — literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, mas sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico, já com víveres separados, que entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.

Certa vez, tendo eu achado uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um ou dois dias depois, apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais confortável.

Esta recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém conseguisse aliviar-lhe o mal-viver. A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá porquê. Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.

Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas. Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e aproximei-me do local numa posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao meu posto, com medo de lhe perder o rasto.

Não havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me, eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida, era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não tivessem invadido as hortas.

Feita a sesta e reposta a carga, o meu vizinho (como seria o nome dele? É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros) atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma galinha.

Estava descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.

Meditando sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais caritativas intenções.

No silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo passa.

Aparentemente, terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.

Joaquim Bispo

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Por uma daquelas coincidências significativas tão comuns nas Ciências e nas Artes, como se as ideias “andassem no ar”, foi criado em dezembro de 2022, no Porto, um grupo de teatro empenhado em puxar para esta atividade inclusiva e socializante pessoas sem-abrigo, a que foi dado exatamente o nome de “Do lado de fora”. Ao seu dinamizador, Rui Spranger, o meu voto de bom sucesso!

https://portocanal.sapo.pt/noticia/319918?fbclid=IwAR1JF5rnOImzqxTfffayg4hYpgATMqjvhkKuK-9BBWJBWoo4mY8f0nE3p6o

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Imagem:

Dominguez Alvarez, Louco, 1934.

Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Lisboa.

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10/11/2022

O caso Maria das Dores


As referências ao estranho caso de Maria das Dores são escassas e pouco elucidativas. Foi ao folhear números do Jornal de Anadia do ano de 1965, em pesquisas etnográficas, que encontrei uma pequena notícia no fim de uma página par. Não consigo reproduzir o texto, porque entretanto perdi a cópia, mas lembro-me que tratava de uma mulher que se tinha suicidado, após ter assistido a uma apresentação do Coro Paroquial de Arouca, no Teatro Bairradino. A notícia referia que o grupo coral carregava um histórico de outras mortes inexplicadas de espectadores e levantava suspeitas sobre uma possível influência perniciosa da soprano principal, a tal Maria das Dores. Na altura, não lhe atribuí grande credibilidade. Sabemos bem como, por vezes, se empolam e se adulteram factos com “explicações” sem qualquer relação de causalidade.

Quis o âmbito da minha pesquisa que eu consultasse outros jornais da zona centro, algum tempo depois. O Vouzelense forneceu-me a segunda referência a Maria das Dores: após o espetáculo coral na Casa do Povo, um homem atirou-se do viaduto ferroviário para as rochas. Não se conheciam à vítima problemas económicos ou depressivos. Desta vez, a curiosidade obrigou-me a maiores empenhos. Alarguei a minha pesquisa etnográfica ao jornal de Arouca, na esperança de encontrar outras referências a Maria das Dores, na sua própria terra.

No Arouquense, em cada ano de meados de 60, foram noticiados um ou dois casos funestos com espectadores do coro paroquial. Depois de vasculhar os arquivos do jornal, comecei a fazer perguntas pela terra. As memórias estavam invariavelmente “apagadas”, mas depois de ser empurrado de um lado para o outro, dei com um ancião disposto a falar. Era um ex-professor primário.

Sim, conheci-a muito bem. Chamava-se Maria das Dores. Era de uma aldeia da Serra. Farta de frios e malpassar, veio para criada de servir, para uma casa dalém. Até aqui, tudo normal. No princípio da década de 60, o padre, influenciado pelo espírito do Vaticano II, resolveu criar um coro, e ela foi das primeiras a aderir.

Parou um momento em evocações.

O senhor nem imagina. A miúda tinha uma voz! Ia para lá do que é humano. O canto dela tocava-nos onde nada mais nos atingia. Ouvir o seu atormentado agudo de soprano solar o Stabat Mater Dolorosa, sobre os graves de mau agouro dos baixos, compungia todo o auditório. Parecia que entrevíamos o fim do mundo, cataclismos inomináveis. Inundava-nos uma angústia tão grande que se, no fim da peça, olhássemos em volta, iríamos deparar-nos com muitas faces inundadas de lágrimas. Havia quem soluçasse incontroladamente. Não me admiro que algumas pessoas não tenham aguentado e tenham praticado atos tresloucados, como diziam os jornais.

Embalado no discurso, avançou para teorias próprias:

A música tem o que se lhe diga. Não sei se o senhor sabe, mas aquelas notas têm relações matemáticas exatas entre elas, que já Pitágoras tentou desvendar. Na Idade Média, a Música era uma das sete artes liberais que os homens ilustrados deviam estudar, como a Aritmética, a Geometria e a Astronomia. E é perigosa, sabe? Há algo de mágico e maligno naqueles doze tons. Doze, como os signos do Zodíaco. E como os apóstolos, em que um traiu. A música entra no nosso espírito sem licença, sem nós querermos. Retine e ecoa no mais íntimo de cada um. É absolutamente intrusiva, violadora, manipuladora. Eu posso estar muito satisfeito da vida, mas se for atingido pela melodia certa, posso ficar taciturno e sentir-me o mais miserável dos humanos. Era o que acontecia a alguns, quase sempre que Maria das Dores atuava.

No dia seguinte, rumei à aldeia de origem de Maria das Dores, nos altos da Serra da Freita. Era um lugarejo humilde, quase miserável, encaixado numa dobra da serra, em que as habitações confinavam com currais, e as poucas pessoas conviviam com todo o tipo de detritos rurais. Consegui localizar uma prima, já bem velha, que me facultou alguma informação mais íntima.

Contou que, em jovens, quando iam as duas buscar as vacas, no fim do dia, Maria das Dores parecia por vezes embeber-se daquele silêncio global, só céu e serra, e ficava muito parada, como se contemplasse algo peculiar, que só ela via. Então, lançava um canto dorido que se estendia pela superfície do planalto escalvado, alcançava as serras mais afastadas e regressava num eco transmutado, entremeado por reverberações fantasmagóricas como miragens. Contou que, nessas alturas, toda a sua pele se arrepiava, como se uma multidão de pequenos seres invisíveis as envolvesse.

Para Maria das Dores, aquele eco parecia funcionar como estímulo, e prosseguia em repetições de outros cantos, outros enleios, sempre tristes. Certo dia, com o eco, vieram lobos. Seis, cinzentos e de olhos amarelos. Contou que ficou paralisada de pânico, certa de estar no seu último dia, mas Maria das Dores enfrentou-os, com um canto da serra, nostálgico, mas firme e destemido. As feras estacaram surpreendidas e, perante o tom enérgico e uivado do canto de Maria das Dores, afastaram-se, dando mostras de algum receio.

Ela nunca falava nisso, mas, um irmão, um pouco mais novo, um dia perdeu-se na serra, ou caiu nalguma quebrada, e foi atacado. Quando o encontraram, estava quase todo roído pelos lobos.

Resolvi visitar o planalto onde ambas se tinham confrontado com as feras. Como então, o dia chegava ao fim. A aragem fria e sussurrante trazia apelos, rumores, ameaças. Em certo momento, o murmúrio cortante pareceu-me um canto humano, uma queixa dorida e muito aguda. Nunca me senti tão sozinho. Após uma luta de minutos contra a superstição e o medo, dei-me por vencido. Desatei a correr sem olhar para trás, absolutamente aterrorizado.

Abandonei ali a minha investigação da figura e da personalidade de Maria das Dores. Nem quis visitar a sua campa. Só resolvi contar tudo isto agora, vinte anos depois, porque me lembrei do caso ao ler notícias recentes de um estranho suicídio na Serra da Freita.

Joaquim Bispo

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Este conto integrará a 36ª edição da Revista LiteraLivre, a sair no final de novembro de 2022, em formato e-book, resultante de concurso literário:

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados

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Imagem:

Pintor não-identificado, Giuseppina Strepponi, c. 1845.

Coleção do Museo Teatrale alla Scala, Milão.

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10/10/2022

Atlântida era uma ilha

 



O continente de Atlântida era uma ilha

Que existia antes da grande inundação

Na área que agora chamamos Oceano Atlântico.

Donovan — Atlantis


Paulo estava a dar as primeiras chuveiradas no “Ruca”, quando recebeu uma chamada em tom de secretismo de Henrique, o seu ex-colega do secundário e companheiro esporádico de pesca no paredão de Paço d’Arcos.

Podes falar? — perguntou Henrique, encostado ao ancinho metálico, a um canto de um relvado de Odivelas que fora incumbido de varrer nessa manhã pelo chefe da brigada municipal de jardineiros.

Espera só um momento — pediu Paulo, a arranjar tempo para ligar o sistema de auricular ao telemóvel. — Diz lá!

Voltaste a saber mais alguma coisa da Andreia? A “Coca-bichinhos”!

Henrique referia-se a uma colega de ambos do secundário, morena e de oculinhos, que tinha sempre boas notas, especialmente a Estudo do Meio. Na altura, chegaram a fazer todos parte do mesmo grupo, mas a faculdade separara-os: Henrique fora para Antropologia, Paulo para Veterinária, e Andreia para Oceanografia.

Não, porquê? — respondeu Paulo, de novo a aspergir com a mangueira o cavalo de pelo avermelhado da escola de equitação de Fontanelas, em que trabalha a recibos verdes.

Encontrei uma publicação dela na Net, uma tese. Parece que está a fazer o mestrado em Paleoceanografia na Universidade do Algarve.

Ah, fixe! Conseguiste o contacto?

Não, na tese não tem nada. Nem encontro a página dela no facebook. Mas bem que gostava de lhe falar. Se calhar, um dia destes, ligo para a Universidade. Queria tirar umas dúvidas… A tese dela deu-me volta à cabeça — desabafou Henrique, também de auricular no ouvido e de novo a recolher a folhagem que as árvores largaram sobre a relva.

Então, porquê? Agora interessas-te por Oceanografia?

Lembras-te da nossa conversa sobre lendas, há quinze dias? — lançou Henrique, sem responder à pergunta. Falámos da Atlântida… Porque tínhamos estado a ouvir o velhinho Atlantis, do Donovan. Estive a pesquisar sobre esse mito e fui parar à tese da Andreia — esclareceu Henrique. — É por isto que te estou a ligar: ou o relato do Platão sobre a Atlântida reflete um acontecimento histórico, no sentido de verdadeiro, acontecido, ou a coincidência é inacreditável. Mas depois falamos melhor. Vamos lá no domingo?

— … Atlântida? Oh, pá, um continente no meio do Atlântico, com uma civilização avançadíssima, e que ainda ninguém encontrou… — gracejou Paulo, depois de uma hesitação, ao ouvir na mesma frase “Atlântida” e “acontecimento histórico”.

Sentindo que o ponto da conversa era crucial, Henrique encostou a vassoura ao carrinho de dois contentores cilíndricos em que tem acumulado os resíduos vegetais do jardim e acendeu um cigarro. Parece-lhe que o fumo o ajuda a pensar.

Ok, ok! Sabemos que os mitos são construções mentais em dívida com a realidade, mas, mesmo assim, tomamos alguns senão como verdades, pelo menos como conceções do mundo que estruturam as nossas vidas. Talvez por terem caráter inspirador e gerador de atração sobre as pessoas — nós. Olha os anjos-da-guarda, olha as fadas, olha as mouras encantadas! Ao longo dos séculos, temos vivido, e vivemos, embebidos e em boa harmonia com as mitologias da época, não é verdade?

Sim, sem dúvida — condescendeu Paulo, a espalhar espuma sobre o pelo do cavalo, que vai buscar a um balde com uma esponja. — Os mitos fazem parte da nossa cultura, formatam-nos, mas não passam de uma espécie de histórias de um universo maravilhoso, sem fundamento objetivo ou científico. Por isso é que lhes chamamos mitos, coisas pouco credíveis, crenças injustificadas.

Pois, mas, se calhar, alguns são sedimentações de algo real, mas cujos fundamentos se perderam — insistia Henrique.

Diz-me um!

Olha, por exemplo, o Adamastor dos Lusíadas é muito credível como hiperbolização das enormes vagas oceânicas! E as mouras encantadas como exorcização das tentações suscitadas pelas belas e enigmáticas mulheres berberes. E o dilúvio, que aparece na tradição oral de todas as culturas?

Tá bem, mas não me venhas falar da Atlântida! Só porque o Platão falou dela com tantos pormenores como se alguém a tivesse visitado, não quer dizer que não tenha inventado tudo!

Não! A descrição dele é realmente impressionante, mas qualquer escritor mediano consegue descrever um local com tal carga de pormenores que parece falar de coisas reais, que conhece. Não; eu falo de uma coincidência tal que leva a admitir que, se a Atlântida não existiu, há conclusões científicas indiretas que apontam causas para a sua destruição na data indicada por Platão.

Causas para a destruição do que se calhar não existiu? Que formulação mais bizarra! Que coincidência é essa? — interessou-se Paulo, a secar o cavalo com panos de feltro.

Assim à distância, é difícil explicar-te. Queria mostrar-te um gráfico das temperaturas médias do mar nesses tempos da Atlântida. Podemos falar disso no domingo? Apareces?

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Claro que no domingo seguinte Paulo apareceu no paredão, munido de duas canas, um saquinho de isco e um balde. Atacou de imediato:

Então, mostra lá esse gráfico!

Henrique puxou do telemóvel e mostrou ao amigo um gráfico que supostamente representava as temperaturas médias na Gronelândia entre há 80.000 anos e o presente. Parecia haver uma constância relativa muito grande entre o início do gráfico e a zona de há 15.000 anos, altura a partir da qual o gráfico mostrava várias enormes oscilações, encerrando com outro longo período de grande constância entre os 10.000 anos e o presente, mas de temperatura uns vinte graus mais elevada.

Antes de mais, como é que sabem isso? — perguntou Paulo, desconfiado e farto de teorias da conspiração.

Não acredito que comeces por uma pergunta dessas… — começou Henrique, mas achou por bem tentar explicar: — Também não te sei detalhar as técnicas; sei que os cientistas engendram os mais incríveis processos para conseguirem as respostas que precisam, ainda que por métodos indiretos. Para a temperatura da Gronelândia, extraem amostras cilíndricas verticais da capa gelada e analisam a composição dos vários estratos temporais em quantidade e tipo de micropartículas. Para determinarem a temperatura da superfície dos oceanos ancestrais, medem o volume e o tipo de micro-organismos mortos, contidos no estrato de lodo de cada período. Esses seres eram plâncton que vivia à superfície e cada espécie tinha a sua maior população a determinadas temperaturas. Conseguem assim aproximações muito fiáveis. Foi nessas medições que a Andreia trabalhou, para a tese.

Ok, acredito — avançou Paulo, a afastar a chateza do discurso técnico. — Mas o que é que a Atlântida tem que ver com micro-organismos?

Então, relembrando: Platão escreveu no Timeu e no Crítias que um sacerdote egípcio contou ao grande Sólon que, para lá das colunas de Hércules — o atual estreito de Gibraltar —, havia uma ilha enorme, em pleno Oceano Atlântico, com uma grande civilização e um grande poderio militar, mas que foi destruída por terramotos e se afundou 9.000 anos antes dele, Sólon, isto é, 9.600 anos antes de Cristo.

Hum, já não retinha esses pormenores. E então?

Então, olha para o gráfico e diz-me o que vês aqui, nos 9.600 anos antes de Cristo… — apontava Henrique.

Paulo olhava, mas não tinha a certeza do que o amigo queria mostrar. Henrique prosseguiu, apontando com o dedo:

Depois de um longuíssimo período glacial, iniciado mais ou menos há 80.000 anos, houve um violento aquecimento, aí há 14.500 anos. É este traço quase vertical. Voltou a arrefecer, aos solavancos, durante quase 3.000 anos e voltou a subir violentamente há… 11.600 anos. Ou seja, 9.600 anos antes de Cristo. É este traço que mostra um aumento “brusco” de temperatura de uns 12 graus. Depois, pesquisa “Younger Dryas”!

Henrique fez uma pausa, à espera de uma reação.

Não dizes nada? — acabou por perguntar.

Tá bem, aqueceu, e daí?

Não é fantástico? Não achas extraordinária esta coincidência de Platão indicar, com tanta precisão, uma data na qual a ciência atual afirma que realmente aconteceu algo dramático, como prova este gráfico — um brutal aumento de temperatura? E, como é lógico, há uma consequência intimamente relacionada com o aumento da temperatura global — o degelo das calotes polares e a subida dos oceanos. Agora, andamos preocupados em travar o aumento global da temperatura no planeta nos 2 graus desde a Revolução Industrial, mas as temperaturas deduzidas de amostras da capa gelada da Gronelândia indicam, para aquela época, uma subida de uns 10 ou 12 graus, em poucos anos, talvez menos de cem. E outros estudos são perentórios de que o nível do mar subiu entre 100 e 140 metros, desde então. Não é fantástico? Essa subida terrível das águas pode ter simplesmente submergido a Atlântida, ou o aumento avassalador e repentino do peso de tanta água pode ter provocado fraturas dos estratos submarinos, com os consequentes terramotos.

Eh, pá! Realmente! Incrível! Isso é muito interessante!

A crosta terrestre é uma casquinha maleável, mas quebradiça. Por essa altura — ouvi eu numa aula —, terão desaparecido um ou dois quilómetros de espessura de gelo na Escandinávia, o que teve como consequência a elevação dessas terras. O peso dos gelos deslocou-se lá de cima para os oceanos, em água. É fácil aceitar que esta basculação de enormes massas pode ter provocado reajustes das placas submarinas, com abatimentos das placas e tsunamis consequentes. Talvez tenha sido essa inundação avassaladora que deu origem às lendas diluvianas que atravessam todas as culturas.

Paulo manteve-se uns momentos calado, a digerir o que ouvira. Depois, reagiu:

Tudo isso até pode ser verdade, mas não prova a existência da Atlântida…

Claro, eu também não afirmo isso, mas temos de concordar que é de uma coincidência perturbadora.

Depois de iscarem os anzóis, lançaram-nos para bem dentro do rio e instalarem-se nas rochas próximas. Continuar a discorrer sobre o tema do dia era a conversa mais aliciante que podiam ter, enquanto esperavam que algum peixe picasse. Como seria o estuário do Tejo, quando o nível do mar estava 100 metros mais baixo? A quantos quilómetros estaria a costa? Seria fácil aos africanos atravessar o Mediterrâneo, para a Europa. Talvez de ilhota em ilhota, com a ajuda de troncos, como Henrique ouvira numa aula sobre a Arte do Paleolítico.

Se calhar, não morriam afogados aos milhares, como nos nossos tempos tão evoluídos… — considerou Paulo, amargo.

E imaginaram o drama de todos os grupos humanos — vivessem na lendária Atlântida ou tão só nas inúmeras costas da Europa Ocidental —, ao verem as águas invadirem em poucos anos as suas áreas de instalação, a cada ano um pouco mais acima. Refletiram em como estaremos em vias de viver tempos com problemas semelhantes — de que a subida das águas é só o mais evidente —, devido ao inquestionável aquecimento global.

Sabes que já se vão apanhando, nas nossas costas, peixes que antes só se encontravam em meios sub-tropicais? — adiantou Henrique. — Li há dias. Pescada do Senegal, sável africano, peixe-porco…

E questionaram a clarividência das respostas de agora, que não parecem muito diferentes das de então.

Nesses tempos, talvez se invocassem as divindades marinhas e se realizassem sacrifícios para que elas se tornassem propícias — conjeturou Paulo. — Agora vemos esforços igualmente inglórios e de aparência mágica, como é tentar travar o avanço do mar lançando para as praias ameaçadas milhares ou milhões de metros cúbicos de areia… Que o mar leva de seguida.

O Homem continua a não ter uma noção clara da sua pequenez, em face de forças desta amplitude. E se os oceanos subissem 100 metros em cinquenta anos? — dramatizou Henrique.

A conversa trouxera à tona da consciência alguma inquietação que habitualmente se mantinha submersa. Numa consulta ao smartphone, Henrique mostrou-se alarmado.

Está a acontecer. Olha para isto!

A notícia ecológica do dia era a separação de um iceberg de 6000 quilómetros quadrados, da placa antártica. Um vídeo aéreo mostrava uma falésia de gelo sobre o oceano, com uma extensão a perder de vista.

Diz aqui que é do tamanho do Algarve e que corresponde a mais de 1.100 quilómetros cúbicos de água — o cenho de Henrique carregou-se.

A conversa cessou. Mantiveram-se calados por muito tempo, olhos postos na água que até então sempre lhes parecera tão hospitaleira. A ténue sensação de estarem a prever o futuro — um futuro ameaçador — dava-lhes um aperto no peito.

Joaquim Bispo

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Imagem:

Luís Louro, Alice (na cidade das maravilhas), 2020.

Edição especial 25 anos. 

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10/09/2022

Semente

 


O mundo desabou para Cátia e Flávio quando souberam que não podiam ter filhos. O veredito dos testes de fertilidade, em que ambos tinham andado enredados nos últimos meses, foi o mais cruel: tinham de abdicar da aspiração de transmitir vida. E criá-la. De construir um homem ou uma mulher, desde o nada à vida adulta.

Casados havia oito anos, tinham vivido tranquilos quanto a esse aspeto. Quando o decidissem, o ventre de Cátia incharia, tinham por seguro. No ano em que ela fez 35, decidiram que era tempo de terem um filho. Não convinha adiar mais.

Foi o período de maior e mais livre intimidade do casal. Todos os anteriores constrangimentos de gravidezes indesejadas tinham ficado para trás. Já não era preciso usar preservativo, já não era preciso tomar a pílula. Ou interromper o coito, quando ela descansava da pílula e tinham acabado os preservativos. O desfrute mútuo fora profundo e total.

Passaram os meses, mas as tentativas mantiveram-se infrutíferas, no sentido literal do termo. Depois tornaram-se frenéticas e cada vez mais angustiadas. Pressentiam-lhes a inutilidade. Por fim, tinham entregado as suas dúvidas à ciência, que os desenganou de vez.

Não é uma notícia com que um casal, ainda na casa dos trinta, lide bem. Só uns dias depois começaram a recordar e a dar atenção ao que mal tinham ouvido da boca da médica: Flávio é que não podia ter filhos. A sociedade moderna, felizmente, já dispõe de “soluções” que permitem ultrapassar esta situação de esterilidade, quer pela inseminação artificial, com base num banco de esperma, quer pela adoção. E há tantas crianças à espera de um lar de verdade!

Durante semanas levantaram hipóteses e trocaram dúvidas. Era evidente para Flávio que Cátia deveria tentar ser mãe biológica, antes de enveredarem pela adoção. Ela só punha a reserva do dador que lhe calharia: podia ser muito feio, podia ter taras. E outros medos que a situação de ausência de controlo lhe levantava. A brincar, disse que, como o bebé não se ia parecer com o marido, o ideal era que fosse tão bonito como o seu ídolo musical Vicente del Cuore.

A ideia surgiu e fixou-se, como mancha de cereja em toalha de linho. Porque não? A ideia parecera absurda quando lançada, mas expressa por palavras passou a ter uma existência de possibilidade. Havia a possibilidade de Cátia obter o sémen de Vicente; porque não? Podia apiedar-se do problema de Cátia e doá-lo caridosamente. Ou podia agradar-se do corpo de Cátia, que era uma mulher bonita: corpo bem torneado, rosto oval, olhos azuis, cabelo castanho claro caído sobre o seio esquerdo. Assim Cátia conseguisse seduzi-lo. Quando a ideia ganhou vantagem sobre outras e as expulsou, Cátia passou mesmo a pôr a hipótese de sequestrá-lo e obter o sémen pela força do Viagra, caso outras soluções não resultassem. Flávio estava por tudo.

Como primeiro passo, Cátia definiu a inscrição no clube de fãs de Vicente del Cuore. Depois, aproximou-se do grupo que acompanhava o cantor a todos os espetáculos. Ficou logo um pouco desanimada quando soube que, daquele enorme grupo de trinta ou quarenta mulheres em que metade queria meter-se na cama com o ídolo, apenas duas se vangloriavam disso. E que del Cuore devia ser muito cuidadoso, pois usara preservativo em ambos os casos. Não valia a pena pedir-lhe ajuda procriadora. Nem iria ser fácil roubar-lhe o sémen.

Soube, no entanto, que o cantor, embora esquivo nos contactos de intimidade total, era pródigo em proximidades de prazer assimétrico: oito admitiram, com relutância envergonhada, que já tinham aceitado na boca do rosto a semente do irresistível ídolo pela qual a sedenta boca do corpo ansiava.

Por aí enveredou o seu plano. Pois que fosse na boca. Andaria sempre prevenida com um frasquinho de plástico. Se algum dia conseguisse o que antevia — e então isso parecia-lhe bem ao seu alcance —, disfarçadamente o verteria no frasquinho e de seguida, na casa de banho ou no carro, o introduziria em si, com um longo aplicador de plástico. Resultaria? Porque não?

Iniciou o jogo de sedução com olhares e sorrisos de coqueteria, na receção coletiva que o cantor sempre concedia às fãs depois de cada espetáculo. A que só ia em período de ovulação. Não queria desperdiçar a oportunidade, que provavelmente surgiria.

Uns sete meses depois, o artista deu pela flor que ela empunhava:

Minha querida, por si, pela beleza dessa flor que me quer oferecer, vou recebê-la a sós. Para me explicar por onde andou toda a minha vida essa sua beleza que suplanta a da flor.

O narrador dispensa aqui os pormenores sórdidos das técnicas e das manobras que um artista idolatrado usa de modo a transferir a veneração idealista de uma admiradora para práticas de submissão à sua vontade lúbrica. Neste caso, era um cordeiro que ingenuamente tencionava “comer” o lobo. Só que os lobos têm mais experiência que os cordeiros e antecipam as frágeis manhas das presas. Quando Vicente del Cuore percebeu que Cátia executava movimentos inesperados, logo após o orgasmo dele, deu-lhe um safanão que fez saltar o frasquinho e o seu precioso conteúdo para debaixo de uma cadeira. Levantou-se brusco e irado, abriu a porta do camarim e gritou pelo segurança:

Luís, tira-me já esta gaja daqui!

Cátia nem teve tempo de cobrir o peito. O segurança, entroncado e de braços tatuados, agarrou-a pelos cabelos, empurrou-a para outra divisão e obrigou-a a ajoelhar-se e a abocanhar o seu membro. Quando atingiu alguma excitação, forçou-a a dobrar-se sobre o tampo de uma mesa e penetrou-a brutalmente. A dor foi fina e cortante. Cátia gritou, mas levou um murro na cara, de través. Dois minutos depois foi abandonada no chão, ensanguentada, em lágrimas silenciosas.

Flávio levou muito tempo a conseguir que a mulher lhe explicasse o que tinha acontecido. Sentados no leito onde já tinham vivido tantas euforias, ela quase só chorava. Sentia-se humilhada e traída por todos, até pelo marido. Fora a sua infertilidade que a levara ali. Flávio mostrou-se revoltado e queria arranjar um grupo para dar uma sova no segurança de del Cuore. A não ser que ela fizesse queixa à Polícia. Cátia só tentava dormir. Não queria nem lembrar-se daquele animal.

O fisiológico, no entanto, segue o seu próprio caminho, sem cuidar das alegrias ou dos sofrimentos que pode desencadear no emocional. Um mês depois, Cátia soube que estava grávida.

Flávio ficou dividido: no fim de contas, era uma oportunidade de ela ser mãe. Que podia não se repetir. Cátia não via o lado útil da situação. Sentia-se magoada e atraiçoada até pelo seu corpo. Não era assim que imaginara ter um filho. Fruto de uma violação, como acontece nos cenários de guerra. Conseguiria amar e criar uma criança gerada naquelas circunstâncias? O que estava verdadeiramente em causa? Precisava de meditar profundamente.

Durante uma semana ouviu o seu íntimo, atenta e honestamente. Depois tomou a sua decisão.


Joaquim Bispo


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Com o título Sémen, este conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__oEste conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018:

https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__o

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Imagem: A. Grancho, Transmutação, 2017.

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10/08/2022

A selva

 


Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos, organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas. Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um. E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.

Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos, e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então. Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma declaração por maioria absoluta.

Muitas e muitas reuniões do Conselho já aconteceram ao longo dos milénios. Da maioria não restou memória, mas de outras foram guardados registos, geralmente em cascas de árvores ou numa escrita indecifrável em campos pedregosos. Por exemplo, há uns sessenta anos, foi realizada uma reunião a pedido dos castores. Decorreu numa mata contígua a um rio nórdico. Dado o início, um castor barbado com ar envelhecido, tomou a palavra:

— Caros companheiros silvícolas, estamos fartos de cortar e transportar árvores de sol a sol, sem a ajuda de ninguém. Há milénios que o fazemos, sem lamúrias da nossa parte, nem razão de queixa, da vossa. As barragens vão-se construindo, com esforço nosso, que ninguém reconhece, mas com grande beneficio para todos. Continuaríamos a fazê-lo sem queixumes, se as condições não estivessem a mudar. Mas estão. Os nossos filhos precisam de acompanhamento, as nossas famílias precisam de atenção. Os tempos são de cuidados e apoio ao desenvolvimento dos jovens e de maior convívio familiar. Não podemos, não queremos, chegar a casa tão tarde e de ânimo derrubado por tanto trabalho. Daí, que chegámos a esta situação limite, em que temos de ser bem claros. Das duas, uma: ou alguns dos excelentíssimos grupos aqui presentes se comprometem a ajudar-nos a construir as barragens, ou não as tomem como certas; porque não cortaremos nem mais um galho depois do entardecer. Gostaria que refletissem bem se querem os rios represados, de modo a servirem todos, ou se querem deixar a água ir-se embora.

Gerou-se um burburinho, mas que era habitual em cada Conselho. Algumas poucas vozes manifestaram-se a favor dos castores, mas a grande maioria estava até escandalizada com a desfaçatez daquela reivindicação. Ao fim de pouco mais de meia hora, estava o consenso formado. Um gato gordo e lanudo foi o encarregado de resumir a superior posição conjunta do Conselho:

— Oiçam lá, amigos dentolas — declarou ele —, não venham para aqui com essa moda dos homens, das oito horas de trabalho, que aqui não há regras nem regulações; aqui é a selva!

A reunião foi dada por encerrada e não se falou mais nisso.

Há quarenta e tal anos, foi a vez da passarada granívora pedir a reunião do Conselho. Decorreu num campo de restolho ressequido de centeio. Um pardal empertigado, mas nervoso, explicou a reivindicação da classe:

— Como sabem, recentes acontecimentos da área humana e suas decorrências provocaram uma grave rutura na já enfraquecida produção agrícola. Semeou-se muito menos, pelo que houve poucas searas. Temos estado a viver à míngua. Esquadrinhamos campos e mais campos, mas, entre grãos soltos e respigos, não conseguimos enganar a fome. O que reivindicamos é uma mesada, um papo mínimo de grãos, para podermos viver com dignidade, sem andar a pedir nem a roubar.

Como sempre, muito burburinho, alguma discussão e a sábia decisão do Conselho.

— Ó companheiros dos bicos curtigrossos — explicou o falcão encarregado de divulgar a determinação —, vocês até podem ter muita razão, mas não se percebe quem iria buscar tanto grão, nem aonde, ou onde se iria armazenar, e quem iria administrá-lo… Um tal pacto social obrigaria à criação de uma organização enorme, que iria agravar o problema. Além disso, vêm aqui fazer reivindicações, mas nenhum ser que viva na selva pode reivindicar quaisquer direitos. Isso de salários mínimos são modas dos homens. Aqui, cada um que trate de si; é a selva. Quem não aguenta arreia… Porque não se tornam carnívoros?

A reunião terminou com muitos piados tristes e outros irados, mas a vida na selva prosseguiu como antes.

Outras vezes se reuniu entretanto o Conselho da Selva, mas o plenário de há uns cinco anos foi especialmente participado e demorado. Fora solicitado por um amplo conjunto de animais, com as seguintes queixas:

— Tem havido muitos incêndios, há zonas em que o pasto, com a seca, desapareceu, mas há outras que se mantêm férteis — expôs um coelho. Seria sensato que se reservasse uma parte do pasto das zonas fartas, para apoiar as que o não têm.

Antes que houvesse oportunidade de se iniciar a vozearia, o presidente da mesa — um javali —, mandou avançar o segundo orador.

— Há muitos rios poluídos — alegou um sável —, os nossos irmãos têm de se deslocar para águas não poluídas, mas onde a comida não dá para todos — os que estão e os que chegam. Seria inteligente criar uma bolsa de comida para distribuir pelos carenciados.

Novo gesto rápido do javali, novo orador.

— A população cresceu, mas cada vez são menos as zonas livres de pesticidas, que envenenam larvas, insetos e minhocas — explicou um melro. — Os recursos, como estão distribuídos, não dão para todos. Deveríamos encontrar uma solução que permitisse que todos pudéssemos viver. Não faz sentido, nos tempos tão civilizados em que estamos, que uns vivam bem, sem dificuldades, sem preocupações de aonde ir buscar a comida, e que outros sobrevivam cada dia na angústia da fome.

— Sabem o que ouço dizer aos homens? — interveio um cão. — Como é público, eles inventaram máquinas para tudo, de modo que muitos serviços são feitos por elas, e os trabalhos que exigem mão humana já não chegam para todos. Não se trata de não quererem trabalhar; é que ora uns, ora outros, muitos são obrigados a ficar sem trabalho. E os subsídios de desemprego, que deviam tapar os buracos no sistema, afunilam e deixam muitos homens de fora. Em risco de fome. Como nós. Ouço-os discutir e dizer que as sociedades humanas e organizadas não deviam ser tão ferozes com os seus desempregados; que têm a obrigação humanitária e racional de criar condições de vida para todos; que deviam inventar um sistema em que cada ser humano tivesse acesso a uma distribuição mínima, só por estar vivo. Para se manter vivo. Quer tivesse trabalho ou não. Posso garantir-vos que eles estão a pensar seriamente nisso. Mas, é claro, eles são inteligentes.

Gerou-se uma algazarra diluvial. O caso não era para menos e suscitava o desagrado, quando não a revolta, de grande parte do auditório. Foi precisa a intervenção áspera do presidente, para trazer alguma contenção à reunião.

— Tanto quanto sei — continuou o cão —, essa distribuição mínima, a que chamam Rendimento Básico Incondicional, será uma prestação atribuída a cada pessoa, independentemente da sua situação financeira, familiar ou profissional, e suficiente para permitir uma vida simples, mas com dignidade. Para evitar a penúria extrema, raiz de todas as indignidades. Os homens querem mesmo aplicar essa solução, que só não avançou ainda porque estão a tentar encontrar um equilíbrio entre um contributo doador, que não seja desmotivador, e um envolvimento recebedor suficiente, mas que não gere ganância.

— Isso não faz nenhum sentido, na selva! — adiantou-se um lobo. — Nós nascemos na selva e nela queremos continuar a viver. É na selva que desenvolvemos o nosso estado natural. Alimentamo-nos, procriamos, sobrevivemos. Conhecemos os nossos amigos, conhecemos os nossos inimigos, sabemos aonde procurar comida, sabemos onde nos esconder. Nós devemos manter impoluta a nossa natureza. Leis, direitos, proteções especiais só viriam desvirtuar-nos. A nossa lei é a da sobrevivência, que não é uma lei; é um estado. Os mais fortes comem os mais fracos, os mais espertalhões sobrevivem melhor do que os menos astutos. Com genuinidade, com luta pela vida, com ferocidade e esperteza. E é assim que deve ser.

Esta intervenção provocou um ribombar de aplausos e clamores de entusiasmo, perante os olhares desanimados dos queixosos, e praticamente determinou o parecer final do Conselho.

— Meus amigos — leu o bufo real, muito compenetrado —, todos sabemos que a vida é difícil para quem vive na selva e que por isso muitos gostariam de experimentar soluções abstrusas, que lhes parecem boas, mas sabemos que é o idealismo a falar. Sempre assim vivemos, sempre preferimos a selva às malucas derivas dos homens. Não há nenhum homem que goste de viver na selva mais do que nós. A selva é um ambiente natural. Não tem leis. A preocupação que temos com os outros é se pertencem à nossa cadeia alimentar. E se os comemos é sem rebates de consciência, sem hesitações, sem rancor. E ninguém fica incomodado com isso. Cada um faz o que quer, se puder. Cada um tenta sobreviver como pode. É o nosso amado modo de vida. Sabemos que pode parecer cruel, mas tem a beleza inigualável da autorregulação. Nem todos vivem bem, nem todos sobrevivem, mas é assim; é a selva.

Desde então, não tem havido reuniões extraordinárias do Conselho.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Alberto Giacometti, O cão, 1951.

Museu de Arte de Seattle, USA.

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