10/09/2018

Os benefícios do futebol



Por mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito importante para mim, culturalmente.

Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, semioficiais e de preparação que o mundo do futebol promove para corresponder à procura do público condicionado e arrecadar mais uns milhões em direitos televisivos.



Gosto de ver uma ou outra partida que envolva a seleção, desde que o desempenho seja leal, pujante e criativo, mas daí a engolir todos os produtos que a sobre-produção descarrega...

Mudei para a SIC, com vontade de perceber porque se começou a falar tanto e tão de repente em comboios e transporte ferroviário. Será que vem aí mais uma conta para pagarmos? Em vão: estava a falar o treinador do Benfica, talvez tentando distrair os adeptos das más notícias recentes...



Lembrei-me do orgulho benfiquista da década de 60, por não ter jogadores estrangeiros. Era sentido como uma espécie de brio bairrista, mas nacional, de ganhar com a prata da casa, sem ajudas, nem truques, nem jogadas menos claras de qualquer tipo.

Mudei para a TVI, resignado a ouvir mais algum caso pungente de pequenez e corrupção, dos muitos que vão atingindo tantas instituições insuspeitas. Em vão: estava a falar o novo presidente do Sporting.



Não sem que eu vislumbrasse, de memória recente, um espetáculo medonho de autocratas, bandos de arruaceiros, tumultos, agressões, alarme social.

Mudei para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente, com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das subversões que os intervenientes do sistema vão usando para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez indemnizar o corrupto do dia. Em vão: um painel de peritos discutia compenetradamente um duvidoso fora-de-jogo que um árbitro validara, certamente por incumbência de quem lhe pagou, dizia um.



O futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para praticar ou para ver, mas não para discutir o desempenho dos intervenientes.

Mudei para a TVI-24 para ver com os meus olhos as ameaças do regime de Trump aos juízes do Tribunal Penal Internacional, por estes tentarem julgar os criminosos de guerra americanos. Em vão: um painel de entendidos altercava, aos gritos, sobre a gravidade e as consequências a tirar do caso da espionagem à Justiça, feita por membros do Benfica.



Acho divertido, mas dramático, que os desgraçados que ganham o salário mínimo, ou menos, acicatados por máquinas de radicalização de que estas trupes são os testas de ponte, se esfarrapem a vitoriar, acéfala e infundadamente, bandeiras, símbolos e panteões risíveis, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira com aspetos obscenos de anti-desportivismo por parte de dirigentes, e de desigualdade social, em relação aos seus milionários ídolos.

Mudei para a RTP-3 só para confirmar que as potências em conflito na Síria continuam a declarar fazê-lo para defender o povo sírio, enquanto continuam a tentar travar a chegada à Europa da vaga de desesperados migrantes resultante. Em vão: um painel de especialistas perorava sonolentamente sobre as tarefas do Sporting para ultrapassar a crise em curso.



É inacreditável a quantidade de horas que variados painéis de comentadores gastam a falar de futebol, às vezes de um jogo ou de uma jogada apenas. Acreditem ou não, às vezes relatam um jogo que só eles estão a ver, mas não mostram… Com certeza que têm espectadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que falam, apenas falam, de um espetáculo que é eminentemente visual.

Já sem grandes esperanças de escapar ao futebol e aos seus tentáculos, mudei para a RTP-2. Foi aí que, após ter percorrido o longo e estreito carreiro atrás descrito, tive oportunidade de assistir a um programa sobre “endocrinologia e ambiente” e os efeitos nefastos que um meio-ambiente cada vez mais poluído tem para a saúde. Muito interessante e pedagógico, e certamente mais enriquecedor para cada um dos outros espectadores, se não estivessem presos à mesmice do chuto na bola. Por mim, pelo contrário, se não fosse a omnipresença televisiva do futebol tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!

Joaquim Bispo
*
Imagem: Jan Vermeer, O astrónomo, 1668.
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8 comentários:

  1. Pão e circo!
    ...
    está tudo dito

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  2. Sim, é uma explicação plausível.

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  3. O amigo Joaquim, por certo deve ver pouca televisão...estranho que só agora tenha reparado naquilo que é o pão nosso de cada dia!!!
    O futebol dá share e share é publicidade e publicidade são Cristinas Ferreiras num lado, e noutro lado uma série de correspondentes da RTP espalhados pelo mundo para darem notícias, a maioria das vezes já conhecidas, que saem bem caras aos tugas que pagam impostos, infelizmente poucos.
    Abraço do aperaltadodalcains.

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  4. Não, Aperaltado, já há muito que reparei na omnipresença do futebol no espaço televisivo, porque há muito que isso é uma realidade deplorável. A prova é que “este” texto foi escrito em 2005, para o meu blog de então, e publiquei-o no site da revista eletrónica Samizdat, em versão adaptada à época, em maio de 2014.
    «O futebol dá share» e é dessa evidência que me queixo.
    Abraço!

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  5. Infelizmente o futebol tomou conta dos meios audiovisuais. Mas fefelizmente para mim tenho a RTP 2 como refrefúgio televisivo.

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  6. Realmente! Tem vindo a apresentar um conjunto de programas excecional. Às vezes, saborosas surpresas.
    Abraço!

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  8. Faz-me confusão vocês não gostarem de futebol .

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