10/10/2017

A Carta Anónima


Pouco antes do Natal, ao levantar-se, Otávio deparou com a seguinte mensagem, colada na porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas num pedaço de papel: «/ milhões / anjinhos / visitaram / chefe / guitarra / servida / niquinhos /».

Incompreensível como parecia, não lhe ligou grande importância. De qualquer modo, telefonou à mulher. Não tinha visto nada, quando saíra. Teria sido, com certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de algum arbusto. Ninguém. Atravessou o corredor e espreitou pela janela da sala. A rua estava deserta, ou antes, com os esporádicos passantes habituais. Nem sombra dos catraios.

Sentou-se no sofá e atentou melhor naquele conjunto de palavras alinhadas no papel. Seria algo para levar a sério? Hum! Parecia tão desconexo, sobretudo a parte final.
De repente, um sobressalto. Pareceu-lhe detetar uma ameaça; velada, mas grave. “Anjinhos” remetia abertamente para a outra vida, ou antes, a morte. E a sua guitarra escavacada e servida em niquinhos pareceu-lhe uma ameaça típica da Máfia.
Sentiu-se empalidecer.

O tempo do verbo na primeira frase — “visitaram” — fez-lhe temer por uma intrusão já realizada. Levantou-se de um salto e vistoriou a casa. Tudo em ordem. Aparentemente. Espreitou para o quintal. Rex, o cachorro, também estava vivo e de boa saúde. Estava entretido a remexer a terra. Nada parecia indicar que alguém tivesse entrado enquanto dormia. Aliás, Rex teria dado sinal.

Parou a admirar o seu dinamismo. Havia alguma coisa de estranho na maneira como se movimentava. Talvez a sua atitude furtiva. Observou-o melhor.
Foi então que percebeu que a azáfama em que estava empenhado tinha por objetivo enterrar vários pedaços de jornal, uma tesoura e um tubo de cola!

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Cruzeiro Seixas (1920– ), Galopando no sonho, escultura em bronze.

* * *


Outros:

  • O cordeiro do sacrifício — Como acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au meunier. — Se o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é fundamental … Ler Mais
  • A insuspeita sensualidade da massa  A razão porque os homens não são vistos mais vezes na cozinha a preparar rissóis, pastéis de massa tenra, filhós, pizas, folhados é, provavelmente, porque ainda não descobriram as virtualidades sensuais da manipulação das massas. Roberto não acolheu com muito entusiasmo a determinação da mulher de que nesse ano iriam passar o Natal com os pais dela, numa aldeia perdida das Beiras, … Ler Mais
  • A transmutação  Quando Cacilda deu por si, após um curto período de sensação de irrealidade, percebeu que se transformara numa árvore do jardim em frente de sua casa. Permaneceu de braços levantados, curiosamente sem esforço, e pernas bem metidas na terra, como quem tem medo de se mexer em uma situação de perigo. Não conseguia discernir sons nem imagens, mas a agitação do ar trazia-lhe muita informação… Ler Mais
  • O crítico de Arte  “Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte. Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para… Ler Mais
  • Confrontação  Após o jantar na Casa Vermelha — a mansão campestre do casal Morris em Kent —, o casal e o amigo Dante Rossetti ocupavam o serão, como habitualmente, reafirmando convicções sobre a genuinidade da pintura anterior a Rafael e planeando pôr em prática a arte para o povo, através da empresa de arts & crafts que tinham fundado. Morris, amigo de Engels e socialista assumido, idealizava … Ler Mais

7 comentários:

  1. ... cães destes, podem entrar nos restaurantes. Afirmo.

    ResponderEliminar
  2. Desde que abandonem certos comportamentos conspirativos… :)

    ResponderEliminar
  3. Cartas de condução só depois de fazerem o 12 ano, assim
    o sucesso escolar teria dias felizes.

    ResponderEliminar
  4. Carta só depois de fazerem o 12 ano de escolaridade.

    ResponderEliminar
  5. Ora... o Rex é famoso - nos anos noventa era comissário (ou deverei escrever Kommissar?) e andava a apanhar bandidos. Provavelmente agora na reforma está entediado e resolveu divertir-se à custa do Otávio.

    ResponderEliminar