10/09/2017

O papa-jornais


Na minha rua existe uma personagem singular — um devorador de jornais. Traga todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas dos cafés, quer os que o vento empurra rua afora. Uma vez por outra, já o vi até debruçado pela abertura do Papelão.

Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria que o caracteriza.

A mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.

Todas estas queixas recorrentes desapareceram há dias, repentinamente, como que por influência dos astros. Quando saí de casa para comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à volta do papa-jornais. Todos gorjeavam a utilidade da sua preferência gastronómica para o asseio do bairro, e sugeriam que esta figura grada da terra devia dar nome a um dos camiões do lixo. E lamentavam-no com lágrimas sem sal e meias-de-leite. O que o vitimou — aventavam —, teria sido a sua sofreguidão por notícias e uma indigestão há muito esperada. Ou a deglutição imprudente de um tablet ou outra similar engenhoca eletrónica. Por mim, suspeito mais da toxicidade das notícias falsas. E das deturpadas.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Hugó Scheiber, Lendo Notícias no Banco, [antes de 1950].

* * *

Outros:

  • Meia dúzia de safanões  «O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos … Ler Mais
  • As tentações de São Batráquio  Ao depararem-se com uma capelinha perdida junto à desolada foz do Sorraia, poucos saberão as peripécias por que passou o santo do seu orago. São Batráquio nasceu em Sarilhos Pequenos numa família de apanhadores de amêijoas. Moço calado e solitário, desde cedo manifestou problemas de relacionamento e comportamentos desviantes. Era presa frequente de terrores noturnos e várias vezes … Ler Mais
  • A confraria do macho ibérico  Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não … Ler Mais
  • Amigos Foi ao almoço, em casa da minha prima no Cartaxo, que o assunto da amizade foi levantado. — Pai, o Bruno quer que eu lhe empreste o street-skate — lançou o meu priminho Sérgio, logo no princípio do creme de ervilhas. — Porquê? Ele não tem? — retorquiu Estêvão, o marido da minha prima, meio desinteressado. — Só tem um dos básicos. Mas, como vai passar o fim de semana a Lisboa, quer ir ao … Ler Mais
  • A final olímpica  Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande … Ler Mais

2 comentários:

  1. No meu feed de noticias vários amigos meus partilharam uma noticia, que remetia para outra noticia que falava sobre um estudo que analisava vários outros estudos que concluiam que as notícias virais podem causar tal destino. Nao sei contudo se estes estudos foram corrigidos para a correlacao entre noticias virais e falsas. Concordo portanto que nao se pode excluir essa toxicidade.
    RIP Sr. Papa-jornais, paz à sua alma

    P.S. - Vou já partilhar a notícia da morte do Sr. Papa-jornais, de certeza que todos estarao interessados em saber (já agora se se souber detalhes sobre onde o Sr. faleceu, a fazer o quê e com quem seria muito mais interessante para a notícia e teria muito mais visualizacoes - se deixar um caozinho órfao ainda melhor).

    ResponderEliminar
  2. Mr. Didi, obrigado pelas achegas sobre o interesse da classe científica pelas notícias virais e/ou falsas. Creio que as falsas tenderão a tornar-se mais virais do que as verdadeiras. Embora sendo e parecendo falsas (contêm uma série de características que levam um leitor atento a desconfiar), são mais espetaculares e logo mais apetecíveis do que as verdadeiras. E parece que “o pessoal” prefere o espetáculo à verdade… Divulga-as alegremente, como se acreditasse que podem ser verdadeiras. Talvez não acredite, mas prefere-as porque lhe parece que tornam o mundo mais interessante.

    N.B. – O malogrado sr. Papa-jornais faleceu no dia de S. Nunca, à tarde, na Rua onde Judas perdeu as botas, sem número, de motivo desconhecido. As autoridades competentes já estão a investigar.

    ResponderEliminar