10/04/2017

Domingo de Ramos



O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo. Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental, pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém oriental.
Em vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que for precisa contra os opositores à anexação do território palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado, como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os atos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.

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(Esta crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2009.)

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10 comentários:

  1. Gostei,muito bem transcrito.
    Por vezes tenho a tentação de pensar,no ariano
    (Por um lado vitimizam-se e por outro fazem o mesmo que lhes fizeram a eles)
    Parabéns Joaquim , Gostei.

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  2. O que se passa na Palestina é uma infâmia a arrastar-se perante os nossos olhos, durante toda a nossa vida.
    Abraço!

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  3. Gostei, Joaquim. Mais uma chamada de atenção para um conflito (Israel-Palestina) que parece não ter fim, devido à ganância dos homens (ai, o petróleo!...). Descrição feita num estilo leve, agradável. Parabéns. E um abraço, amigo.

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  4. E aquela vergonha humana não acaba...
    Abraço!

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  5. Pelo andar da carruagem,vamos embora e deixar ficar tudo na mesma,ou pior! Apetece-me dizer uma asneira...

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  6. É também esse o meu sentimento. E depois criticamos outros espectadores, de outros tempos, de outras situações aberrantes...

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  7. Há quem diga que a história não se repete. Eu penso que assim é... Mas, desde de então até ao presente, ou desde do presente até então, a "coisa" não mudou muito, pois não? pelo menos, parece...

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  8. Gostei e já mandei á minha mana que enviou a amigos no Brasil. Assim lá chegarão as magníficas crónicas. Parabéns.

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