Há
muito, muito tempo, quando os homens viviam ao ritmo das estações,
houve um ano em que a primavera se atrasou para além do habitual.
Passou março, abril ia adiantado e nem sinais dela.
O
verão, lá dos pomares que habitava, olhava, olhava e os campos que
vislumbrava mantinham-se desolados, gelados, batidos pelo vento.
Temendo pela eclosão das sementes e preocupado com o que pudesse ter
acontecido à primavera, resolveu procurar o outono para lhe
comunicar o que estava a acontecer e decidirem o que fazer. Muniu-se
de uma coroa de raios solares e pôs-se a caminho. Em breve atingiu
as florestas onde o outono vivia. Este ficou muito preocupado com o
que o verão lhe contou e sugeriu que fossem falar com o inverno, que
vivia numa gruta rochosa numa montanha a norte. Talvez ele soubesse
alguma coisa ou pudesse ajudá-los a procurar a desaparecida. Pôs
pelos ombros uma ampla capa de folhagem castanha, vermelha e amarela
e puseram-se a caminho. Andaram, andaram por campos vazios e
silenciosos e prados de plantas cinzentas e murchas. O vento
assobiava gélido e selvagem. A progressão ia-se tornando mais
penosa, por serras escalvadas e desfiladeiros atulhados de neve. Ao
fim de uns dias, chegaram finalmente à caverna do inverno.
Entraram.
O frio parecia mais intenso, o escuro era medonho. Ao fundo de uma
galeria, encontraram o inverno agitando as suas asas de morcego sob o
seu manto de nuvens negras, atarefado com o funcionamento do enorme
fole que soprava os ventos agrestes por sobre os montes e os vales.
— Inverno!
— bradou o outono, que era quem tinha mais contactos com ele — já
viste a primavera este ano?
O
visado virou-se lentamente e, de cabeça baixa, mirou os visitantes
por baixo das sobrancelhas nevadas.
— Ó
entes tresloucados, o que fazeis por estas paragens? Abrigai-vos aí
nessa côncava, que não estais habituados a estes frios.
— Não
te preocupes connosco, que estamos protegidos — a voz possante e
clara do verão encheu a caverna. — O que nos preocupa é que já
estamos a chegar a maio e ainda não vimos a primavera.
O
inverno imobilizou o fole e aproximou-se dos visitantes.
— Não
te abespinhes, verão! Sei que és jovem e sanguíneo mas a
hospitalidade é um dos meus princípios. Sim, já a vi. A pobrezinha
está lá dentro, deitada. Mas, descansai um pouco. Sentai-vos.
— Que
lhe fizeste, velho perverso? Abusaste dela? — a coroa do verão
faiscava.
O
inverno olhou-o com indulgência. Juntou uns cavacos e acendeu uma
fogueira.
— Esqueces-te
que é minha filha? — murmurou. — Está um pouco atrasada, só
isso. A juventude não tem o sentido das responsabilidades! — a sua
voz parecia denotar algum desapontamento, enquanto lhes servia um
ponche quente.
O
outono, mais cordato, sorveu um trago e indagou:
— Mas
diz-nos, inverno, que se passa com ela para deixar assim as plantas e
os animais em completa desorientação?
— Ela
esteve no outro hemisfério, como faz todos os anos, mas desta vez
parece que conheceu lá alguém interessante — um tal a quem chamam
El
Niño
— e só voltou há meia dúzia de dias. Vinha exausta e toda
alvoroçada, de modo que eu achei melhor ela descansar uns dias antes
de reiniciar as suas tarefas. Esperai que eu vou chamá-la!
Enquanto
se afastava para a zona mais escura da caverna, o verão mostrava-se
inquieto:
— Acreditas
nele?
— Não
sei. Vamos esperar. Mas, se for verdade, acho incrível que a menina
tenha ficado no bem-bom, para lá da licença, e que, chegada aqui, o
papá ainda ache que a filhinha precisa de descansar. Não é
espantoso?
— Claro!
Eu acho que isto não pode continuar! Ou bem que se assumem
compromissos ou não!
Pouco
depois, entrava a jovem, deslumbrante num vestido de pétalas de
amendoeira e uma tiara de flores amarelas de giesta que acentuavam o
azul celeste dos olhos.
— Oh,
que queridos! Preocupados por minha causa! — beijou ambos, ao mesmo
tempo que lhes fazia uma festinha no rosto. — Estava cansadíssima.
Foram umas férias e tanto! Fiz falta?
Afastada
a crispação e posta a conversa em dia, a primavera despediu-se. Com
as suas asas brancas elevou-se nos ares, sob o olhar embevecido do
trio. As nuvens negras rasgaram-se e dissiparam-se, o céu azul
apareceu e o sol beijou os prados, os pomares e os bosques. Do alto,
começaram a cair pétalas de todas as cores que esvoaçavam e
pousavam delicadamente sobre todas as plantas. Os talos esqueléticos
em que elas tocavam começaram a lançar rebentos que se abriam em
folhas e flores. Cheiros adocicados flutuavam ao sabor da brisa
suave. Nuvens de abelhas, besouros e gafanhotos cruzavam os ares em
azáfamas surpreendentes. Passarada de todos os tamanhos e cores
revoluteava a alimentar-se, a acasalar, a construir ninhos. Os seus
inúmeros chilreios misturavam-se com as cegarregas de grilos e
cigarras e o coaxar das rãs.
A
temperatura era agora fresca mas amena, os campos fervilhavam de
cores e vida e os homens estavam felizes. Atrasada, mas fulgurante,
tinha chegado finalmente a primavera.
Joaquim
Bispo
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Ilustração
de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
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(Este
conto foi publicado na revista CAIS, em maio de 2007, e no número 15
da revista literária virtual
Samizdat, de abril de 2009)