10/12/2015

Colo

Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras...

10/11/2015

Esta Cidade não é para Frutos Secos

Paulina, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande castanheiro. ― Maior e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs. Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho. Um dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada. ― Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina. ― Sou uma Castanha da Índia...

10/10/2015

Crescer

Quando o telemóvel emitiu o trinado de nova mensagem, Susana saltou para o agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da turma. Nessa manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o sentir como uma maçada, a perspetiva de rever as amigas fizera-a pular da cama cheia de entusiasmo. Não foi preciso a mãe insistir para se levantar. Tomou duche de um jato e vestiu-se a correr. Irritou-se por não encontrar um soutien completamente confortável. Estavam todos a ficar pequenos. Escolheu um vestido rosa...

10/09/2015

Um som no escuro

Naquele setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes para espraiarem por paragens além-fronteiras o otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso. À noite, em Vitória, – já país basco –, a notícia do dia era a morte de mais um «carabinero». Pressentindo o fim iminente de Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados. Os viajantes petiscaram...

10/08/2015

Saudades da Minha Terra

Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e, depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la. Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei...

10/07/2015

Confinado

Gregório começava a vir a si. No seu cérebro baralhavam-se as cores e os sons. Muito lentamente, começou a distinguir umas de outros, estes a tornarem-se mais agudos e aquelas a ganharem formas. Começava já a aperceber-se da diferença entre um vermelho carregado e um azul quase negro, que deambulavam na sua retina. Agora, chegavam outras sensações de dor e de frio, sem conseguir, no entanto, saber donde vinham elas. Durante longo tempo, foi tomando consciência de todo o seu corpo. As cores tinham-se desvanecido e acabado por desaparecer, restando agora um escuro persistente; dos sons ficara...

10/06/2015

O Retrato do Juiz

O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro, mas não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos aspetos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas. Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam...

10/05/2015

A Luz de Delft

O que vou contar começou na semana após o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno, juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala, enquanto via televisão. Foi já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer, que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei...