10/03/2024

A última morada

  Respeita a minha última morada. Pelo teu exemplo, talvez respeitem a tua. Eburo estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal. Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica. Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos...

10/02/2024

O muro global

  Na reunião de Agenda da estação de televisão, já se notava a agitação própria do final. Tinham sido distribuídos os serviços de política nacional, os desportivos, os criminais e os de sociedade. Só faltava um fait divers. Alguém adiantou a informação de que o furtivo graffiter ShameU andaria a pintar um novo painel. Este artista de rua emergente tinha vindo a ganhar relevância e visibilidade com impressivas pinturas a spray de médio e grande formatos, sempre de temática provocatória. Não tão genial, nem tão difícil de encontrar como o quase mítico inglês Banksy, ShameU suscitava, no entanto,...

10/01/2024

Vencido

  Na distante China, tinha surgido mais um vírus. Como tantas vezes antes. Não costumava chegar cá e, quando chegava, não passava de uma gripe fugaz. Os chineses tinham lá aqueles ambientes insalubres. Víamo-los andar frequentemente de máscara, por causa da poluição, por causa de uma fuga química, por causa de um dos vírus deles. Agora, pareciam estar bastante aflitos, a fechar cidades e fronteiras, a controlar milhões de pessoas por meios eletrónicos. A mandarem-nas ficar fechadas em casa. O número de infetados começava a ser assustador. E o de mortos parecia irreal. Tudo por causa de...

10/12/2023

Obra de misericórdia

  Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato: — Duarte! Há quanto tempo! O que tens...