10/04/2022

A confraria do macho ibérico

  Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente. Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa...

10/03/2022

A final olímpica

  Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66. No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica...

10/02/2022

As tentações de São Batráquio

  Ao depararem-se com uma capelinha perdida junto à desolada foz do Sorraia, poucos saberão as peripécias por que passou o santo do seu orago. São Batráquio nasceu em Sarilhos Pequenos numa família de apanhadores de amêijoas. Moço calado e solitário, desde cedo manifestou problemas de relacionamento e comportamentos desviantes. Era presa frequente de terrores noturnos e várias vezes desapareceu de casa, sendo sempre encontrado escondido em locais isolados, como casebres em ruínas ou abrigos de pescadores em canaviais. Mostrando-se avesso à apanha de bivalves, acabou por aceitar tarefas...

10/01/2022

Meia dúzia de safanões

  «O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?» Enquanto os colegas analisavam o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação...

10/12/2021

Um gesto ou dois

    O homem tinha a cara enrugada, poucos dentes e um aspeto decrépito. Teria bem mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o por um misto de piedade e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é, o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam “cheios” — prenhes —, mas também ajudava em inúmeras outras tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água para acartar. Era por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e “de comer”. Ficou a dormir num catre...