10/05/2017

A Vingança de Zeus

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade. Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil. Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará...

10/04/2017

Domingo de Ramos

O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica,...

10/03/2017

Como o Melro no seu Dragoeiro

O nome de batismo era Armindo, mas “Rolhas” foi o que passaram a chamar-lhe, desde que a namorada o deixou e ele começou a pedir rolhas ao senhor Mário do Estrela — um restaurante na calçada da Ajuda —, ninguém sabia para quê. Desde pequeno, era um rapaz metido consigo, e o facto de ser muito magro e alto, também não ajudava a fazer amizades. O pai era carregador no mercado da Ribeira e a mãe vendia hortaliça, de manhã, na praça da Boa-Hora. Nem para uma coisa nem para a outra arranjaram, os pais, maneira de o entusiasmar. De vez em quando, a mãe conseguia que lhe dessem trabalho — carregador...

10/02/2017

Silêncio

Todos chamavam Plantão ao louco da pequena vila do Sabugal. Calcorreava a povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com exatidão. A última pessoa que lhe ouvira a voz, num dia mau de uns anos antes, desenganara-o: — N'o há cá pão pa malucos! Conhecido de todos, entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão, direito e parado. O visado, geralmente, puxava de uma moeda e dava-lha. Plantão recebia a moeda e retirava-se, com um ligeiro aceno de cabeça. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem...

10/01/2017

Ano Novo — Vida Nova!

É a noite de 21 de dezembro — a mais longa do ano que vai terminar em breve. No silêncio do seu quarto de solteiro, Luís fuma, embrenhado numa meditação encorajadora. Pressente-se o ânimo cósmico da mudança de ciclo, como promessa de renovação. Observando, absorto, o fio de fumo do cigarro, Luís toma a decisão. Inabalável: «No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são os mais...

10/12/2016

Pouca sorte

Há dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o sabe tarde de mais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me contou o que se segue: Foi aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo colega da Secundária, a quem na altura toda a gente chamava «Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de regozijo adequadas a um desencontro de mais de vinte anos, António fez a pergunta que o perdeu: — Então, vai tudo bem contigo? Gustavo, o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes, sorriu tristemente, antes de desenrolar...

10/11/2016

A Vida Continua

Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros. Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto...