10/09/2021

Os ardis de Amaltescher

  Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender. Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos edifícios»...

10/08/2021

As mulheres da Ourela

  As mulheres da Ourela são o amparo da casa. Robustas e determinadas, ganharam admiração e proteção das deusas primordiais. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando...

10/07/2021

O cordeiro do sacrifício

— Como acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au meunier. — Se o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é fundamental que eu possa subscrever, pelo menos, setenta milhões de ações — enfatizava Galhardo. Aparentava uns cinquenta e tal anos enxutos, o olhar decidido, as sobrancelhas negras fazendo contraste com o cabelo...

10/06/2021

A transmutação

  Quando Cacilda deu por si, após um curto período de sensação de irrealidade, percebeu que se transformara numa árvore do jardim em frente de sua casa. Permaneceu de braços levantados, curiosamente sem esforço, e pernas bem metidas na terra, como quem tem medo de se mexer em uma situação de perigo. Não conseguia discernir sons nem imagens, mas a agitação do ar trazia-lhe muita informação óbvia e outra que ainda não sabia bem interpretar. O mesmo acontecia às subtis vibrações do solo que lhe faziam tremelicar as pernas. «O que terá acontecido?», surgiu na nebulosa da sua consciência,...