10/08/2017

Um dia de sonho

O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços. Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça,...

10/07/2017

O deserto de Atacama na minha cozinha

Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente. Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre...

10/06/2017

O Ar do Tempo

“Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.” Marinetti, Manifesto Futurista, 1909. Arrastando a brevidade da nossa existência na lama do nosso pequeno mundo, esfrangalhamo-nos de impotência, de cada vez que a tragédia nos atinge. Como seria perfeito podermos voltar atrás e alterar o que correu mal: aquela brincadeira de adolescente que teve consequências funestas, aquela nossa palavra impensada que comprometeu a nossa vida profissional, o episódio...

10/05/2017

A Vingança de Zeus

Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade. Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil. Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará...

10/04/2017

Domingo de Ramos

O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica,...

10/03/2017

Como o Melro no seu Dragoeiro

O nome de batismo era Armindo, mas “Rolhas” foi o que passaram a chamar-lhe, desde que a namorada o deixou e ele começou a pedir rolhas ao senhor Mário do Estrela — um restaurante na calçada da Ajuda —, ninguém sabia para quê. Desde pequeno, era um rapaz metido consigo, e o facto de ser muito magro e alto, também não ajudava a fazer amizades. O pai era carregador no mercado da Ribeira e a mãe vendia hortaliça, de manhã, na praça da Boa-Hora. Nem para uma coisa nem para a outra arranjaram, os pais, maneira de o entusiasmar. De vez em quando, a mãe conseguia que lhe dessem trabalho — carregador...

10/02/2017

Silêncio

Todos chamavam Plantão ao louco da pequena vila do Sabugal. Calcorreava a povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com exatidão. A última pessoa que lhe ouvira a voz, num dia mau de uns anos antes, desenganara-o: — N'o há cá pão pa malucos! Conhecido de todos, entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão, direito e parado. O visado, geralmente, puxava de uma moeda e dava-lha. Plantão recebia a moeda e retirava-se, com um ligeiro aceno de cabeça. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem...