10/12/2023

Obra de misericórdia

 



Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio. Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

Filial?

Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do carcereiro, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

Sobrinha!

Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Pompeia! Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar atirado para o alto da jovem representada — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado do que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão dócil e sedosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

Chh! Com jeitinho!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo lá do alto tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para afinar o modelo final da sua escultura.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 42ª edição (novembro/dezembro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 85):

https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

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Outra versão deste conto tinha sido o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação de Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul.

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Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa.

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10/11/2023

O condutor de rebanhos

 


Um certo pastor de ovelhas foi imortalizado pelo grego Esopo, que contou como ele se divertia a enganar os vizinhos, gritando “Lobo!” sem justificação. De cada vez que gritava, os outros pastores corriam a acudir, em vão. Tantas vezes os enganou que, um dia, vieram os lobos, ele gritou “Lobo"!, mas ninguém o foi ajudar.

Ressabiado com o desaire, vendeu terras e rebanho e foi viver para uma vila distante. Instalou-se num casarão da rua principal — a Alameda Atlântica —, rodeado por outras casas de gente bem instalada na vida, mas com as traseiras para uma rua de casebres humildes — a Rua Terceira.

Neo — assim se chamava o anónimo pastor de Esopo — adotou ali o nome Búfalo Neo, e foi vivendo uma existência tão ou mais monótona do que a que vivia na serra, mas depressa embirrou com um orgulhoso vizinho das traseiras que cultivava tabaco e açúcar. O antigo pastor começou a espalhar rumores de que este vizinho, chamado Habano, tinha amigos arruaceiros de Leste e pretendia trazê-los para as suas plantações. Para manter o bom ambiente da vila, dizia Búfalo, o melhor era que os cidadãos honrados da rua mais nobre se unissem e obrigassem o suburbano a afastar os amigos, para não causarem mau ambiente.

Na verdade, os vizinhos, sem conhecerem o mau-caráter de Búfalo Neo, apoiaram as medidas propostas pelo distinto conterrâneo que denunciara as companhias de Habano. Contra vontade, este desistiu da ajuda de Leste, mas, à cautela, os notáveis da vila decidiram boicotar a sua atividade produtiva. A partir de então, o cultivador não poderia abastecer-se no comércio local, fosse qual fosse o ramo. Nem vender. Esperava-se que o garrote deste embargo económico o levasse a abandonar a vila, e a comunidade pudesse regressar a uma vida tranquila. O desgraçado cultivador gritava “Maldito seja Búfalo”, mas de nada lhe servia.

Passado algum tempo, Búfalo embirrou com outro vizinho. Queixou-se ele às autoridades da vila, de que então já fazia parte, que um tal Golias, arruaceiro contumaz, nas suas palavras, causava muitos incómodos a um outro de boa índole e seu amigo, chamado Moisés, que entretanto chegara à região, mas pretendia instalar-se na propriedade de Golias, com o argumento de que em tempos ali vivera. Búfalo cedo gostou dele, sobretudo porque entrevia a possibilidade de caçar naqueles terrenos sem autorização. Daí a defender as suas pretensões foi um passo. Moisés começara por aceitar ficar num descampado, mas, aos poucos, sentindo que Búfalo o apoiava incondicionalmente, foi ocupando o terreno de Golias, e agora já dizia que a propriedade era toda sua.

A princípio, o conselho local de homens sensatos não apoiou tão estranha reivindicação, mas Búfalo, que vinha a ganhar poder nos negócios da terra (tinha até criado uma organização de cariz mafioso de ajuda musculada mútua chamada Organização para o Tratamento Adequado de Nefastos), foi muito incisivo nas denúncias das reações agressivas de Golias e acabou por levar o seu intento avante. Já não estava em causa a maior ou menor razão de Golias, mas a sua fama de brigão. Decidiu-se manter uma aparente imparcialidade, mas, de cada vez que Golias levantava a voz a reclamar os seus direitos de propriedade, o usurpador agredia-o e clamava por ajuda das autoridades, que emitiam sempre o mesmo discurso: «Moisés tem o direito de se defender». Aos poucos, Moisés, o invasor, foi ficando com cada vez mais propriedade do expropriado Golias, que se viu confinado a um redil e dependente da caridade pública. Só lhe restava bradar “Maldito seja Búfalo”.

Passado mais algum tempo, Búfalo voltou a tomar de ponta um vizinho — Eufrates —, que vivia num terreno barrento, com grandes dificuldades. Não se sabe bem se lhe cobiçou a olaria que administrava, ou se, simplesmente, não gostou da sua postura altiva, o certo é que passou a acusá-lo das maiores infâmias contra os próprios familiares, afirmando que escondia estricnina e outras drogas de destruição maciça com que pretendia envenenar os parentes.

O Grão Conselho, agora já presidido por Búfalo, em vista da gravidade das acusações, resolveu intervir de forma decidida e decisiva, e não de formas mais ou menos mitigadas como anteriormente. Enviou os bombeiros à procura dos venenos. Em vista dos resultados negativos, enviou uma brigada da Proteção Civil, que também veio de mãos a abanar. Já bastante irritado, o Conselho enviou uma força de intervenção da Polícia, com ordens para prender o assassino em potência e encontrar a todo o custo os tão perigosos instrumentos de morte. Os militares avançaram destruindo tudo à passagem e, na confusão criada, o virtual envenenador acabou por ser morto.

Para grande frustração do Conselho, no entanto, não foram encontrados os venenos temíveis. «Eles estão lá», afiançava Búfalo, que comandara pessoalmente a operação. Passaram dias, passaram meses, mas ninguém encontrou qualquer veneno. Os familiares de Eufrates clamavam “Maldito seja Búfalo”, mas, na falta do patriarca, passaram a viver na pobreza, acusando, à boca-cheia, o poderoso ex-pastor de ter inventado tudo para ficar com a olaria, que, em vista das dificuldades, a família teve de vender.

O resultado dramático desta operação de justiça preventiva maliciosa desencadeada por Búfalo Neo suscitou grande constrangimento em todos aqueles que tinham acreditado na veemência das acusações e que, piamente convencidos, tinham apoiado a operação punitiva que veio, ela sim, a revelar-se assassina. À socapa, passaram a referir-se-lhe como Neo Con.

Búfalo pareceu acalmar por algum tempo, mas foi sol de pouca dura. Certo dia, saiu-se com uma nova acusação. Segundo ele, Ming, um outro empresário que tinha há muito uma confeitaria no fim da Alameda do Oriente, estaria a roubar-lhe as receitas dos bolinhos da sorte, pelo que apelava a toda a população para que boicotasse a produção de doçaria do gatuno.

Foi a gota de água que faltava. O povo começou a murmurar, as figuras gradas da terra, escaldadas com o escândalo de Eufrates, e que não queriam conflitos com o poderoso empresário confeiteiro, abriu uma investigação. Enviou uma delegação à serra onde Neo fora pastor, que trouxe a notícia do caso das mentiras que, compulsivamente, lançara e onde era conhecido por Neo Trafulha.

O Grão Conselho reuniu-se de emergência e discutiu o problema de Neo Con, já como caso patológico. Já lhe chamavam Silly Con. Em vista das provas demolidoras, o Conselho percebeu que, para haver concórdia na terra, o intriguista tinha de ser afastado. Depois, mandou emendar a injustiça feita ao cultivador Habano, voltando ele a poder vender os seus produtos na vila; delimitou e atribuiu, por caridade, um bocado de terreno ao alucinado Moisés, apesar do seu comportamento desumano, devolvendo ao injustiçado Golias a maior parte da sua propriedade; obrigou o vigarista a devolver a olaria aos familiares do infortunado Eufrates e a indemnizá-los pelas agressões sofridas, e instituiu o livre comércio em toda a vila, quer de doçaria, quer de quaisquer outros produtos.

Búfalo Neo Trafulha Silly Con, em vista da grave derrota sofrida — em perda de poder, de prestígio, de credibilidade e até de grande parte da fortuna —, achou melhor voltar à antiga atividade de pastor. O seu amigo Moisés, olhado com asco por todos, preferiu ir com ele. “Talvez aprendam humildade com as ovelhas e moderação com o silêncio edificante das serranias”, comentava-se, mas, pode alguém ser quem não é?

Sabe-se, sim, que o vocábulo “trafulha” passou, desde então, a ter o sentido pejorativo que hoje conhecemos e começou a chamar-se Dia das Mentiras ao dia em que Trafulha acusou Eufrates, injustificadamente.

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Este é um final edificante, apropriado para terminar fábulas e nos deixar enternecidos com “a justiça que, apesar de tudo, reina no mundo”, mas, na verdade, o final é ficcional e as óbvias semelhanças na história com países, pessoas, acontecimentos políticos, militares ou geo-estratégicos não tiveram um final minimamente parecido com este, à data desta publicação.

Joaquim Bispo

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Uma versão desta fábula foi selecionada em concurso literário para integrar a coletânea de contos “Esopo Revisitado”, da Editora Olympia, Brasil, 2019.

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Imagem:

Ilustração de “O jovem pastor e o lobo”, fábula de Esopo.

Ilustrador não identificado.

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10/10/2023

Um planeta B

 


— O dinheiro que o Estado já meteu nos bancos, desde a crise de 2008, dava para construir 100 hospitais — atirou Carlos, como quem bate um trunfo na mesa de sueca. — O Público diz que são dezoito mil milhões de euros.

Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.

Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.

Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?

Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.

Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.

Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!

Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...

Cuidado! — exclamou Luís.

Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.

Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…

Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.

Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?

Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:

Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.

Como foi possível, não é?

Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.

Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.

Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.

Fiu! — assobiou Carlos.

Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro de 2020; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.

Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.

Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.

Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.

És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!

Olha o Eugénio! Que é feito?

Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?

Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.

Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.

Flat Com? O que é isso? Imobiliário?

Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…

Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.

Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?

Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.

Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.

A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.

Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.

Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?

A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.

Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.

A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.

Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.

É um falhanço da escola — corroborou Carlos. — Não consegue fixar os ensinamentos transmitidos, muito menos um modo de pensamento racional. As provas da esfericidade da Terra dão-se em Estudo do Meio, no 4º ano do ensino básico. Básico!

Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube — continuou Luís, claramente escandalizado. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.

No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.

E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!

Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!

Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.

Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 41ª edição (setembro/outubro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 87 a 90):


https://drive.google.com/file/d/1wPLcRgJ6Fq-QxtODn9PNxe_rxtrJ6xkR/view


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Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.

Odivelas.

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10/09/2023

Os vertiginosos dias de uma escritora diletante

 

Quando a inspiração chegou, a escritora ainda dormia. Eram nove horas de sábado.

Keravnós, o muso relutante, já estava habituado a escritores. Com o seu ar vagamente monástico, a fazer lembrar Afonso Cruz, sentou-se num cadeirão de canto e esperou. Eram quase onze horas quando a escritora apareceu, mole e olheirenta, e foi logo para o computador.

Estás com pica para escrever?

Ah, que susto! — sobressaltou-se a escritora. — Olá! Sim, mas primeiro vou enviar uns mails, ver as notícias e consultar as entradas no meu site. É só uns minutos.

Três quartos de hora depois, o muso voltou à carga, com bonomia:

E agora, podemos começar?

Ó pá, deixa-me só enviar mais uns mails.

Mas não tinhas já enviado?

Já te expliquei que eu envio mails de divulgação do meu último conto publicado para milhares de endereços. E não posso enviá-los todos logo, porque o sistema só permite cem de cada vez. E também há um limite diário. Aguenta um pouco!

O muso respeitou o envio de mais um pacote de divulgação. Logo depois:

Porque é que não publicas um livro e já evitas esse trabalhão?

Keravnó, as editoras não querem saber dos meus contos. É por isso que optei pela divulgação virtual.

...vnós, Keravnós! — corrigiu o muso. — Se calhar, é porque não prestam… Comercialmente falando, claro!

Ó caríssimo transportador da inspiração — matraqueou a escritora —, eu não preciso de sarcasmos desses! Mas Vossa Senhoria pode atirá-los à vontade, sabe porquê? Porque os meus contos estão fartos de ser reconhecidos em dezenas de concursos literários. Concursos não mentem.

Achas? Queres dizer que comprovam que os teus contos têm qualidade?

Quero acreditar que sim. Só que as editoras não arriscam. Se eu fosse uma figura pública era mais fácil. E também podia pagar uma edição, mas as editoras depois querem que seja o escritor a vender os livros aos amigos. E isso eu não quero. Prefiro enviar-lhes os contos de graça.

Já pensaste em desistir?

O gozo que me dá escrever não tem igual. Sobretudo, saber que sou lida. Desistir está fora de questão. As novas tecnologias permitem-me contornar a barreira entre escritor e leitor que as editoras, paradoxalmente, significam. Obtenho cerca de duzentas, trezentas entradas em cada conto. Tomaram muitos livros ter esta saída!

Dá-te gozo escrever ou ser adulada? Imagina que enviavas os mails e ninguém te ia ler!

A escritora baixou a cabeça, pensativa.

Aí, não sei! Agora não quero pensar nisso. Vou fazer uma pausa para almoço.

Mas quando é que tu escreves?

Tenho tempo. Só quando tiver a história toda articulada na cabeça.

Ok! Mas toma atenção que não és o centro do mundo; tenho muita gente à espera; cada vez mais…


Pelas duas da tarde, Keravnós voltou à carga:

É agora?

Oh, agora estou mole. Deixa-me fazer uma pausa para ver a minha série. Depois falamos: mas primeiro vou enviar mais cem mails.

Hora e meia depois:

E agora?

Oh, que chato! Tá bem… Eh, pá, mas hoje não dá muito jeito. Tenho que escolher o conto para um concurso que termina depois de amanhã.

Isso é rápido, não?

Nem por isso. Tenho de ver que número de páginas pedem, se o tema é livre ou não. E, sobretudo, se exigem ineditismo. Se não exigirem, tenho muitas dezenas de contos; já inéditos são menos de vinte. Depois de escolhido, tenho de o voltar a ler com atenção. Há sempre coisinhas para alterar. Olha, porque é que não voltas amanhã? Aí víamos isso com calma.

Vê lá se não te arrependes…


No dia seguinte, às nove da manhã, Keravnós apresentou-se ao serviço. Instalou-se no cadeirão que já conhecia e entreteve-se a folhear a Odisseia que estava por ali. A olheirenta e desgrenhada escritora apareceu pelas onze e meia.

Bom dia! — cumprimentou o muso em tom festivo.

Ai, que parvo! Não me apareças assim.

Vamos à obra?

Já te disse: a primeira coisa é enviar mails, depois ver quantas entradas tive no meu site, depois mais mails, depois almoço, depois série. Depois… O que não falta são tarefas: responder a quem me comentou, pesquisar concursos... Ó pá, hoje não dá. Tenho de publicar um conto num site coletivo. Já sei que conto vou publicar, mas tenho de revê-lo mais uma vez e escolher uma imagem adequada para o ilustrar, geralmente, uma pintura. Volta amanhã, se te der jeito! Mas só depois das sete, que amanhã é dia de trabalho.

Amanhã não sei se posso, mas diz-me ao menos que tema pensas tratar. Também tenho de me preparar!

Não desarmas; és incrível! Quero falar sobre a situação especial da mulher; da sua traiçoeira condição física, digamos assim. Há dias, pensando nisso, surgiu-me a ideia geral do tema: “enfrentar o mundo com uma vagina”. Não sei de onde me veio a ideia.

Keravnós sorriu subtilmente.

E é tudo?

Tenho vindo a desenvolver a ideia. De “enfrentar” adveio-me a ideia de confronto, guerra, armas. E de como o espírito agressivo do homem macho se alimenta da testosterona e da imagem potente do pénis. Para o homem, o esplendor do seu pénis ereto só é comparável à majestade de uma espada refulgente erguida em glória. Ora o equivalente “feminino” da espada é… a bainha. “Enfrentar o mundo com uma bainha” deverá ser o título, para não ser tão sexualmente explícito.

Interessante! É por causa dessa ideia que andas a ler a Odisseia?

Sim, como é que suspeitaste? Lembrei-me da Penélope. Em que outra mulher famosa é tão evidente a impotência física feminina, perante a ausência da espada do marido? O que pode ela fazer com uma bainha? Pode muito, mas não numa lógica de confronto e violência. Terá de ser através da suavidade e da astúcia: a arma dos “fracos”. E é a astúcia que Penélope vai usar. Mas amanhã falamos melhor. Tens tempo?

Se já sabes o que vais escrever, escuso de cá vir…

Tens de vir! Entre esta ideia, que nem sinopse é, e uma história intensa e luminosa há uma multidão de aspetos a criar e a articular. Vá lá! Não me abandones agora. Preciso de um início que desperte curiosidade imediata, de uma trama com peripécias engenhosas, mas verosímeis, de um clímax intenso e de um final surpreendente e inspirador.

Vamos a ver... Às seis da tarde tenho uma miúda talentosa do Norte, que está agora cheia de pica. Talvez ela se despache! Senão, começa sem mim! Pelo menos, podes continuar a ler a Odisseia. A pesquisa dá sempre bons resultados.


Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos 20 selecionados no concurso literário do Motus — Movimento Literário Digital, da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e integra — páginas 35 a 38 — o número #3 da revista digital Motus de outubro de 2019.

https://issuu.com/motus-unipampa/docs/motus3

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Imagem: Aaron Shikler, Mulher lendo, 1922.

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10/08/2023

A Grande Extinção

 

O sol iniciava o percurso descendente sobre a área predominantemente agrícola que será conhecida, sessenta e cinco milhões de anos depois, por Lourinhã e se estende bem para dentro do espaço que será mar no futuro. Em todos os ninhos urbanos terminaram já as diligências alimentares do período zenital, exceto no ninho de Albbano. Alddina mantinha quentes as fatias de ovos de anquilossauro com caules tenros de rhynia, enquanto, inquieta, espreitava o caminho, na esperança da chegada iminente do companheiro. A certo momento, resolveu pedir ajuda ao filho de ambos, através do comunicador.

Não te preocupes, mãe. Assim que o encontrar, aviso-te — sossegou-a ele.

Alccino transpôs rapidamente a distância até à exploração pecuária do pai. Com o olhar percorreu as suaves ondulações cobertas de polipódios, onde pastavam pachorrentamente uma dúzia de torossauros. Não viu a silhueta altiva do pai, um parassaurolofo corpulento, mas um pouco dobrado pela idade. Entrou na chocadeira central, e os funcionários disseram que ficara abatido quando soubera de mais três eclosões goradas.

Após um tempo de caminhada atenta pela vertente da ladeira, alcançou o alto da colina. Cheiros adocicados embebiam-no. Por momentos, abstraiu-se do que o trouxera ali. Olhou a toda a volta. Para norte, a vista admirável e querida do seu Vale Fetal, com o verde de vários matizes a colorir a distância até à vertente oposta e mais além. Para sul, a dois vales de distância, as manchas redondas e ocres dos ninhos urbanos da povoação. Mais perto, os vales dos vizinhos e amigos Esppinos e as suas explorações pecuárias de alamossauros, os enormes herbívoros ternos e pachorrentos. Seria possível que o pai tivesse vindo visitar os amigos?

Veio-lhe à memória outro episódio de há muitos anos, quando uma epidemia lhe matara dezenas de animais. Nessa altura, foram descobri-lo amodorrado numa enorme rocha lisa virada ao sol do oeste, de onde se avistava o mar e aonde só se chegava por uma vereda.

Também agora foi encontrar o pai alapado na Pedra do Poente em grande prostração. A crista, habitualmente alaranjada, era agora cinzento-esverdeada. Não parecia ferido, só abatido. Aproximou-se suavemente. Queria ajudá-lo, não invadir a sua privacidade.

Então, pai! Estás aqui! Estávamos a ficar preocupados...

Não obteve reação. Albbano mantinha um olhar de enorme tristeza perdido na lonjura.

Não fiques assim, pai! — disse Alccino cheio de ternura. — São só mais três ovos gorados. Já aconteceu muitas vezes.

Alccino comunicou com a mãe a sossegá-la e continuou a tentar animar o pai, com argumentos racionais. Finalmente, Albbano começou a falar em voz baixa, pausadamente.

Não são só mais três ovos gorados, filho, nem só mais um animal morto! Nós estamos a extinguir-nos. O ambiente está envenenado com os compostos de irídio que servem para tudo. As crias não conseguem romper a casca. Está cada vez mais dura e inquebrável. E não é só com os animais. Como já te contei algumas vezes, para tu nasceres houve que quebrar a casca artificialmente. Nós, os parassaurolofos, praticamente já só nascemos de crustatomia. Se não fossem os cuidados obstétricos, desaparecíamos. O panorama geral é preocupante. As crias não conseguem romper a casca, os ovos não são fertilizados, as populações de todas as espécies estão a diminuir a um ritmo assustador. Todos os anos desaparecem muitas espécies para sempre.

Calou-se, por momentos, a ganhar alento. Alccino respeitou o silêncio do idoso.

A destruição da vida no planeta, tal como a conhecemos, está a tomar proporções gigantescas. Dantes, além, avistava-se o tremeluzir da superfície do mar. Agora, o que se vê são reflexos de objetos a flutuar. Mantas de lixo a cobrir enormes áreas de oceano. Há quanto tempo lá não vais? É triste, deprimente, apetece não voltar lá mais. Como nos deixámos chegar a esta situação? Estamos mesmo em perigo, acredita!

Fez uma pausa, a rememorar, a organizar leituras.

Eu vou-me informando, sabes! Já houve outras épocas da Terra com indícios semelhantes e que resultaram em enormes extinções. A maior foi há 185 milhões de anos, que fez desaparecer 96% das espécies marinhas e 70% das terrestres. Devido à gravíssima situação que atravessamos, os cientistas já falam na Extinção em massa do Cretácico, a época atual, ou a Quinta Extinção. Estão registadas cerca de oitocentas espécies que se extinguiram nos últimos quinhentos anos, mas, como a maioria não está documentada, os cientistas calculam que é mais provável que se tenham extinguido entre vinte mil e dois milhões de espécies, só no último século. E, tendo em conta os limites do conhecimento atual, a taxa anual de extinção pode chegar às 140.000 espécies. Estamos no limiar da catástrofe.

Alccino agachou-se, abatido pela força terrível dos números.

Mas, pai — reagiu —, não são só teorias malucas de tipos que veem um mosquito e lhes parece um alamossauro? É que eu nunca ouvi falar disso…

Não, Alcci, quem afirma que a extinção atual é um facto são cientistas conceituados entre os seus pares. Dão conferências, mostram dados, mas parece que ninguém os ouve. E dizem mais; dizem que somos nós — a espécie dominante —, que estamos a provocar a extinção em curso. Com a caça intensiva, a introdução de organismos perigosos para os nativos, a destruição dos ambientes naturais, a desflorestação, a sobreexploração agrícola, a poluição, o envenenamento com agrotóxicos e hormonas pecuárias. Infelizmente, o que está na raiz de todos estes problemas é o crescimento populacional contínuo da nossa espécie e o consequente superconsumo. Já viste que os animais, sobretudo os grandes, não têm áreas onde possam viver em liberdade? O planeta está praticamente todo ocupado por nós...

Mas sempre houve espécies a desaparecer de maneira, digamos, natural…

Sim, só que com a nossa ação, a que alguns também chamam natural, mas de extensão e intensidade avassaladoras, a perda de biodiversidade é dez a cem vezes mais rápida. E seremos nós que acabaremos por pagar um preço demasiado alto, pela rápida diminuição do único conjunto de vida que conhecemos no Universo. Ficaremos sozinhos. Sem a concorrência que vencemos, extinguimo-nos também. Foi uma má opção termos dado ouvidos ao venerado texto que nos aconselhou a multiplicar-nos e a prevalecer sobre todos os outros companheiros de viagem desta nave cósmica.

Isso não pode ser assim tão dramático, pai. Nós somos a espécie mais bem sucedida de toda a história do planeta...

Este sucesso começa a parecer demasiado catastrófico. Quando deteriorarmos o planeta a um nível irreversível, seremos nós a extinguir-nos. Ironicamente, essa pode ser a solução para o planeta e para a vida que restar: livrar-se de nós.

Albbano calou-se. Pai e filho mantiveram-se pensativos ainda por algum tempo. Talvez por ter desabafado, Albbano começou a sentir-se com forças para regressar. Em passos brandos, porque anoitecia e a vereda podia ser traiçoeira, dirigiram-se para o ninho, em silêncio. Por cima do horizonte, ia nascendo o cometa, que, havia semanas, iluminava as noites em todo o mundo, fazendo os agourentos predizer desgraças iminentes. A majestosa cauda ocupava já boa parte do lado nascente do céu. Caminhar para aquele esplendor celeste não atenuava a sombra de preocupação com a saúde do pai com que Alccino vinha a cismar.

Alddina recebeu-os ainda apreensiva, mas já calma. Depois de uma refeição ligeira, Albbano aninhou-se. Alccino chamou a mãe e agacharam-se a conversar.

Mãe, o pai não está bem. Fez-me uma conversa completamente alucinada. Só fala em fim do mundo e em catástrofes. Temos de o levar ao cuidador mental.

O olhos de Alddina humedeceram. Em esgar, pronunciou:

Já há algum tempo me tinha apercebido de que algo não estava bem, mas não queria admitir. Deve ser excesso de trabalho. Meu querido Albba!

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos selecionados para a 40ª edição (julho/agosto de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 92 a 95):

https://drive.google.com/file/d/1G4TeTsjwPjDlu8mb5xDhUbiNF-TyToIY/view

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Imagem: Parassaurolofo. Da Internet.

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