10/05/2022

Amigos

 


Foi ao almoço, em casa da minha prima no Cartaxo, que o assunto da amizade foi levantado.

Pai, o Bruno quer que eu lhe empreste o street-skate — lançou o meu priminho Sérgio, logo no princípio do creme de ervilhas.

Porquê? Ele não tem? — retorquiu Estêvão, o marido da minha prima, meio desinteressado.

Só tem um dos básicos. Mas, como vai passar o fim de semana a Lisboa, quer ir ao passeio do Parque das Nações com uma máquina a sério.

E então, emprestas?

Achas? Só entrou na escola o mês passado. Eu sei lá se ele mo perde ou o estraga? — argumentava o Sérgio, para encobrir o egoísmo dos seus 13 anos.

Isso é que não pode ser — devolveu o pai. — Se estraga, tem de pagar. Ou comprar novo. Fora isso… Porque é que só entrou agora?

O pai veio trabalhar para cá. Acho que é técnico de máquinas na fábrica.

E esse Bruno já te emprestou alguma coisa? Ou é daqueles que só pede, mas nunca empresta? — tentava o pai avaliar o amigo do filho pelo critério da reciprocidade.

Ele é um egoísta; está sempre a dar desculpas. Só me emprestou três jogos para a playstation. E foi porque eu lhe pedi muito.

Mas, vocês não são amigos?

Sim — concedia Sérgio, a contragosto. — Mas eu mal o conheço…

Foi nesse ponto da conversa que eu intervim, aproveitando os momentos antes do prato principal.

A questão da amizade, e de como lidamos com ela, é das mais importantes, sobretudo para quem está a crescer, porque pode moldar toda a futura maneira de estar na vida. A História e a Literatura têm-nos fornecido inúmeros exemplos de amizades, desde Os 3 mosqueteiros, em que há um companheirismo igualitário, à amizade, digamos, assimétrica de D. Quixote e Sancho Pança.

Lá vem o momento Acontece — ironizou a minha prima, referindo-se ao extinto programa cultural da televisão.

Na verdade — continuei eu, ignorando acintosamente a provocação —, confunde-se frequentemente amizade com coleguismo. No coleguismo, há apenas confluência de interesses.

Então, e na amizade, não há interesse? — avançou Estêvão, fisgado no interesse, mas no interesse na conversa.

A amizade é algo bem mais desinteressado. Pode mesmo dizer-se que o interesse está afastado da relação de amizade. É uma afeição desinteressada, até altruísta, alicerçada na longa convivência anterior, na qual todas as provas de lealdade e honestidade foram superadas. A partilha é então praticada naturalmente, sem esperar contrapartidas. Vou contar-vos o que me aconteceu em 1976, quando fui às vindimas a França.

Imediatamente, cessaram as perguntas e a atenção redobrou. Histórias antigas eram o gáudio do Serginho, e até a restante família não as desdenhava.

Eu não ia bem às vindimas; ia a caminho de Inglaterra, zangado com o nosso país, mas aproveitei para fazer o caminho à boleia pelo sul de Espanha. Demorei quase um mês a chegar a França e quando lá cheguei estava com pouco dinheiro. Então, parei duas semanas numa quinta acima de Bordéus para me reabastecer de algum dinheiro.


«Na altura, ganhei uns 400 e tal francos.» — Algumas lembranças pediam passagem, mas nem todas encaixavam na coesão da narrativa.


Chateado com o frio que o início de outubro trazia e eu não previra, em vez de progredir, resolvi voltar. E, como antes, aconteceram-me as peripécias mais bizarras.


«Estive mais de duas horas à espera por uma ligação telefónica para Portugal.»


Entretanto, os anfitriões apresentavam um bacalhau com batata doce que devia estar suculento. O Serginho, esse, já estava preso à história.

A questão é que eu, para não gastar dinheiro desnecessariamente, continuei à boleia. Fartava-me de andar a pé, e aceitava todo o tipo de transporte. Antes de Bordéus aceitei boleia de uma ambulância, que entrou numa via rápida, mas logo a seguir ficou sem gasolina. O enfermeiro, em vez de me deixar ali, vestiu-me uma bata e fomos ambos à boleia buscar gasolina. Simpático, não?


«Para sair de Bordéus, andei 14 quilómetros a pé.»


Ainda nesse fim de tarde, a começar a chover e sem encontrar dormida a preços aceitáveis, o que me valeu foi um empregado português de um hotel, que me cedeu, de graça, o modesto quarto dele, porque nessa noite não dormia lá. Estão a ver o que é solidariedade, ajuda desinteressada?

Sem te conhecer, primo Mário? Fogo!

Lá fora, um compatriota é um meio amigo. No dia seguinte, ia eu caminhando pela berma da estrada, no meio de uma paisagem deslumbrante de verde, quando vi que outro caminhante se aproximava. Era outro português que vinha das vindimas. Chamava-se Zé Duarte e era um tipo surpreendente. De 26 anos — menos dois que eu — e cabelo comprido, muito alegre, disse que tinha andado quinze dias à procura de vindimas, sem êxito, e tinha gastado a “massa” toda.


«Logo aí, desconfiei que podia ser mentira, talvez com medo de que eu o “cravasse”.»


Disse que tinha 6 passaportes conseguidos quando se lhe acabava a “massa”. Ia aos consulados portugueses, dizendo que fora roubado, e aí pagavam-lhe a viagem de regresso, davam-lhe dinheiro para comida — 200 ou 300 francos — e novo passaporte. Partilhei logo com ele uns “comes” e cigarros. Nada de mais, se pensarmos que éramos ambos portugueses e jovens e estávamos na difícil condição de “penduras”.


«Nada de mais, realmente. Mas se ele me tivesse pedido dinheiro? Hum, não sei, não!»


Nessa noite, depois de algumas boleias, ora separados ora juntos — numa delas, fui eu que intercedi por ele, que ia na estrada depois de uma boleia —, alugámos um quarto baratinho com cama de casal e lá jantámos também uns “comes” que comprámos.

Assim, sem o conheceres, primo? — estranhou o jovem Sérgio.

Pois, arrisquei, mas confiei no bom tipo que parecia ser. Aliás, eu é que pressionei, porque ele queria dormir numa gare ou num prédio em construção, como tinha feito nos últimos dias. Disse que só tinha 100 francos.


«Arrisquei, reconheço! Devo ter confiado no esconderijo em que tinha o grosso do dinheiro — um bolso falso de umas calças que iam no fundo da mochila.»


Deixa lá agora a história, senão não comes nada — ralhou a minha prima. Realmente, quase todos estavam a acabar e eu a meio do bacalhau.

Desculpa; está ótimo. A batata doce dá-lhe um toque exótico — redimi-me.

Concentrei-me na tarefa degustativa, enquanto os restantes faziam alguns comentários, realçando a imprudência de me relacionar tão proximamente com um desconhecido, ainda por cima com indícios preocupantes. A minha cabeça, entretanto, debitava lembranças.


«Era possível dormir por 60 escudos em Portugal, 100 pesetas em Espanha e 12 francos em França. A peseta estava a cerca de 50 centavos e o franco a cerca de 8 escudos. Muitos bancos espanhóis e franceses não aceitavam escudos, devido à proximidade temporal da revolução portuguesa. Só se podia sair do país com um máximo de 7500 escudos. Nas fronteiras havia que passar por uma alfândega e por um controlo de polícia.»


Quando atacámos o queijo de pasta mole, continuei.

No dia seguinte, a partir de Bayonne esteve sempre a chover. Resignámo-nos a apanhar um autocarro e depois o comboio para Hendaye e dali para Vitória, já em Espanha, tentando esgotar os últimos trocos franceses. O tempo das moedas nacionais tinha destas bizarrias. Na estação de Hendaye, o nosso grupo cresceu: um casalito francês pediu-nos ajuda para passar a fronteira, porque não tinha passaporte.


«Ele talvez tivesse, mas era um menor de 17 anos. Ela nem idade, nem papéis. Ambos a fugir aos pais.»


Em Irun — a fronteira espanhola — o Zé disse-lhes para seguirem ao longo da gare e da linha e saltarem o muro, para não passarem na alfândega. Pouco depois, apareceram do outro lado da estação, já na parte espanhola, mas ainda cheios de medo.

Andavas metido com boa gente... — ironizou Estevão.

Quando se passa por situações precárias, está-se mais disponível para ajudar outros em situações semelhantes. Esse foi um dos meus dias mais longos. Começámos por esperar três horas pelo comboio. Eu distribuí os meus “comes” e fomos os quatro até Vitória.


«O Zé tinha “erva” e o francês mostrou-se interessado em comprar. Foram ambos fumar um “charro”. Voltaram eufóricos.»


O Zé todo o caminho cantou todas as canções e mais uma, desde revolucionárias portuguesas, algumas da autoria dele, até egípcias, brasileiras e chilenas. Não se calou durante o tempo todo, enquanto os franceses e quatro espanhóis que iam no mesmo compartimento, vindos das vindimas, adormeceram. Em Vitória, à uma da manhã, todos os hotéis estavam cheios — disseram-nos — e os que tentámos estavam fechados.


«Não podíamos ir para a gare, por causa da miúda que tinha medo de ser apanhada pelos flics [polícias].»


O Zé sugeriu dormir debaixo de um viaduto, eu alvitrei ir andando até amanhecer, mas chovia um pouco e acabámos por entrar na porta de um prédio e dormimos na entrada: eles metidos nos sacos de dormir, ela sentada num saco e encostada a outro e eu sentado num degrau e reclinado sobre a mochila, e depois deitado em cima de um tapete de arame.


«O francês pagou por “erva”, que daria para fazer talvez uns dois cigarros, 400 pesetas, contadas ali na obscuridade e no silêncio imposto de uma entrada de residências.»


O frio não foi nada meigo. Posso garantir-vos que é das piores maneiras de passar uma noite.

Então, e a solidariedade e a amizade que tens estado a apregoar? — voltava ao ataque Estêvão. — Eles no saquinho e tu ao frio!

Estávamos todos irmanados no sacrifício e continuávamos juntos, que era o principal. Não havia era sacos para todos… — tentei eu a justificativa pelo circunstancial.

E depois, primo?

De manhã, nada se via ainda e já havia muitas pessoas a passar na rua. Alguém começou a descer as escadas do prédio onde estávamos e eis-nos a levantar de um salto, a arrumar as coisas e a “cavar” porta fora. A rapidez não foi suficiente porque o fulano que desceu viu bem que tínhamos saído do prédio e que tínhamos ar de ter estado por ali “acampados”. Os outros voltaram a deitar-se. Eu apenas me sentei — o frio era muito e eu ansiava pelo dia. Outros moradores desceram, mas dessas vezes sem reação da nossa parte. Daí a bocado, fomos para a estrada e separámo-nos. Nunca mais vi os jovens franceses.

E o outro gandulo? — mais uma “farpa” do Estêvão.

Até Burgos, ora intercedia eu por ele, ora ele por mim. O pior é que caía uma chuva gelada, de que nem a toalha que pus pela cabeça protegia. Na última boleia, no quentinho do carro e com a noite mal dormida, o sono atacou-me bem. Em Burgos, fui trocar 1000 escudos por pesetas e nem me despedi do Zé, pensando que voltaria a encontrá-lo mais tarde, mas não.


«Estava cansado, chateado com o frio e talvez temesse que o dinheiro do Zé acabasse e ele se “pendurasse” em mim. Pequenices pessoais que mesmo aquela tão especial viagem ainda não conseguira apagar.»


Nunca mais o vi. Como gostava de o reencontrar para reavivar estas memórias! Daí para a frente, talvez pela falta do otimismo do Zé, talvez pelo frio, não aguentei muito. Vesti mais uma camisa — o que perfazia uma camisola interior, duas camisas, uma camisola de gola alta e um casaco de malha —, mas apesar de me abrigar atrás de uma árvore, o frio entrava-me por todos os lados. Fui tomar um café à gare dos comboios e lá fiquei a cabecear com os cotovelos apoiados numa mesa. Depois, comprei bilhete para Portugal. Que se lixasse a sovinice. E a boleia e Espanha e mais o frio. Estava “pelos cabelos”. Às 11 da noite estava na Guarda.

Ó Mário — chateou-se a minha prima, que às vezes não é “boa de assoar” — achas que isso são histórias edificantes para o Sérgio? Andar feito vagabundo, a acamaradar com tipos sem eira nem beira?


«E não ouviste tu o que eu pensei entre aspas!»


Se calhar, afastei-me do assunto principal. O que eu queria mostrar é que podemos ajudar alguém, ser solidários e amigos, mesmo que não conheçamos bem esse alguém. Há sempre uma incerteza no primeiro contacto. O reverso é: como podemos ser generosos e magnânimos, sem nos arriscarmos a ser usados e abusados? O que achas, Sérgio?

Sim, vou emprestar o street-skate ao Bruno. Já antes me tinha decidido. Mas se ele mo estragar, nunca mais lhe empresto nada.

O licor de ameixa após o café soube-me maravilhosamente.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Georg Baselitz, Os Grandes Amigos, 1965.

Museu Städel, Frankfurt am Main, Alemanha.

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