O
homem tinha a cara enrugada, poucos dentes
e um aspeto decrépito. Teria bem mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe
já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o
por um misto de piedade
e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é,
o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam
“cheios” — prenhes —, mas também ajudava em inúmeras outras
tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água
para acartar.
Era
por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e
“de comer”. Ficou a dormir num catre...
10/12/2021
10/11/2021
O passeante invisível
Em 10.11.21
por joaquim bispo

Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém
se deparou com ele ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Mas
nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível
por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram,
indubitavelmente, projeções
da figura fantástica do
passeante invisível.
Outros garantiam ter
ouvido sons abafados, momentâneos
arrastamentos como de
passos,
que comprovavam que ele se passeava por ali.
A
cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Físicas e
organizativas. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver.
Estarem juntos dá conforto e segurança,...
10/10/2021
O Mestre
Em 10.10.21
por joaquim bispo

No
dia em que comerdes desse fruto,
se
abrirão os vossos olhos;
e
sereis como deuses,
conhecendo
o bem e o mal.
Gn
3,5
― Professor,
quando é que nos mostra
as suas últimas pinturas? ― lançou Gisela, juvenilmente
provocadora.
― Não
as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes ―
gracejou o professor de Pintura III ―,
mas terei
muito gosto em mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra.
Tinha
uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas ―
sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto ― e,
sobretudo, dava gosto ouvir as suas...
10/09/2021
Os ardis de Amaltescher
Em 10.9.21
por joaquim bispo

Amaltescher
é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão
entender.
Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos
Albertianos — um movimento que tinha como referência os
ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma
imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores
do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de
arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado
representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as
arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos
edifícios»...
10/08/2021
As mulheres da Ourela
Em 10.8.21
por joaquim bispo

As
mulheres da Ourela são o amparo da casa. Robustas e determinadas,
ganharam admiração e proteção das deusas primordiais. A sua
aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas
da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras
junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de
obter complemento económico fora da pequena agricultura de
subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da
sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em
grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos,
balançando...
10/07/2021
O cordeiro do sacrifício
Em 10.7.21
por joaquim bispo

— Como
acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava
nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu
amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de
Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au
meunier.
— Se
o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é
fundamental que eu possa subscrever, pelo menos, setenta milhões de
ações — enfatizava Galhardo. Aparentava uns cinquenta e tal anos
enxutos, o olhar decidido, as sobrancelhas negras fazendo contraste
com o cabelo...
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