— Como
acontecia frequentemente, o conselheiro Luís Galhardo almoçava
nessa quarta-feira no restaurante Valadares, em Lisboa, com o seu
amigo Vasco Corvelo, administrador principal do Banco Nacional de
Investimentos. Falavam de negócios e saboreavam um carpaccio de lagosta, antes da chegada do linguado au
meunier.
— Se
o Governo se decidir, finalmente, pela privatização da Caixa, é
fundamental que eu possa subscrever, pelo menos, setenta milhões de
ações — enfatizava Galhardo. Aparentava uns cinquenta e tal anos
enxutos, o olhar decidido, as sobrancelhas negras fazendo contraste
com o cabelo um pouco grisalho. — Quem entrar em força no capital
do banco do Estado, fica com uma posição excecional no mercado. E
um fluxo de dividendos inigualável. Nem a petrolífera é tão
apetecível.
— Eu
sei, Luís. É um dos últimos baluartes que o Estado mantém. Todos
os funcionários públicos lá têm conta. São valores baixos, mas
são milhões de contas. — Corvelo tinha um perfil físico mais
arredondado, o rosto rosado, um lábio inferior carnudo. — O teu
problema é o aval.
— Se
o Estado alienar vinte e cinco por cento, convinha-me atingir uma
quota de três por cento, o que deve rondar os setecentos milhões de
euros.
— Pode
ser que aliene só dez ou quinze… — avançava Corvelo, cuja
preocupação parecia ser a segurança dos empréstimos.
— Hmm!,
creio que irá bem acima. Repara que a dívida já é maior que o
PIB. Só para os juros precisam de uns oito mil milhões.
— Também
dependerá da cotação por ação, na oferta pública — ponderava
Corvelo, enquanto bebericava mais um pouco de alvarinho.
— Elas
devem valer uns dez, dez e meio — racionalizava Galhardo —, mas o
Governo vai fixar um preço mais baixo, com certeza, para que a
operação seja um êxito. E será tanto mais baixo quanto mais
incerta for a procura previsível, claro. Convinha que o mercado
desse a entender que não tem um interesse por aí além, para que o
preço não suba acima dos dez.
— Mesmo
assim, Luís, como é que queres atirar-te para setecentos milhões?
Que aval é que podes garantir?
— As
ações, Vasco! Só as da petrolífera estão a valer cento e oitenta
milhões. Todas juntas valem mais de trezentos milhões. Não é uma
garantia a cem por cento, mas, na prática, chega bem.
— Valem
trezentos milhões, mas em que dia e em que conjuntura? É um valor
virtual, Luís. Ações não são garantia segura e os bancos evitam
fazer grandes empréstimos sobre carteiras de ações, como sabes.
Preferem valores menos voláteis.
— Também
isso da garantia é uma exigência de segurança excessiva. Achas que
as ações da Caixa algum dia vão cair abaixo dos cinco euros?
Trezentos milhões é mais do que suficiente.
— É
chato! Vou ter um trabalhão para convencer os outros
administradores.
— Mas,
não és tu que mandas? — gracejou Galhardo.
— Não
é bem assim; só valho um voto. Tenho é alguma influência... Mas
preciso preparar bem a argumentação. Vou ter de apresentar uns
gráficos com o teu crescimento económico, e outros com os ativos
que já geraste para o banco.
— Vá
lá! Tu és capaz. — incitava Galhardo. — E já pensaste quanto é
que este negócio vai render para o teu banco, se o empréstimo vier
do vosso lado?
— E
também tenho de contar uma treta qualquer à comissão de
fiscalização da Bolsa!
— A
comissão quer é não ter chatices!
— Às
vezes, ainda me vêm uns pruridos, ainda acho tudo isto muito pouco
ético — confessou Corvelo, enquanto dava mais uma garfada no
linguado.
— Ética…
A ética não produz dividendos. A nossa missão é ganhar dinheiro
para nós e para os nossos — para a nossa família, para os nossos
amigos, para os grupos que fazem andar a sociedade. No teu caso, para
os acionistas. E nem sempre é barato ganhar dinheiro. Não te digo
quanto é que transferi para uma conta da sogra de um secretário de
estado. Eu tenho para mim, desde muito novo, que a gorjeta dá-se
antes do serviço e tenho-me dado bem com o sistema. Fui sempre bem
servido. Tu não queres ganhar dinheiro?
— Eu
quero, vou fazer os possíveis para que ambos ganhemos, mas não vais
sem resposta; há quem parece que não quer. Tenho um cunhado, que
encontrei há dias… É gestor de uma baiuca qualquer, na indústria.
Aquele homem deve viver só do trabalho dele, é impressionante. Se
visses com que carro ele anda!
— Por
que é que não o puxas lá para o banco?
— E
tentei! Propus-lhe um lugar de consultor. Nem precisava de lá ir.
Não quis. E ainda bem. O tipo é um bocado esquisito. Ainda me
criava lá algum problema, alguma contestação, alguma fuga de
informações, sei lá? Nem ele se sentia feliz a trabalhar para uma
empresa que tem o investimento de risco — a especulação, como ele
prefere dizer — como princípio produtor de riqueza. Há pessoas
que são felizes assim, o que é que tu queres?!
— Mais
razão me dás! A propósito — Galhardo baixou a voz —, foste
convocado para logo à noite?
— É
secreto… Não, não fui. Aliás, não sou um dos grandes
interessados diretos; tu, sim, queres atirar-te de cabeça.
— Não
sei quem vai lá estar. Aliás, é indiferente. Só espero que
resulte.
— Tu
acreditas que aquilo tem alguma influência positiva nos negócios?
— Olha,
eu sei é que os que lá vão obtêm graças. É curioso, é como dar
gorjeta adiantada.
— Era
preciso que Deus, ou lá que entidade é, se deixasse subornar com
sacrifícios.
— Na
Bíblia, dizem que sim. Deus gosta do cheiro de carne na brasa. Foi
por isso que o Caim matou o Abel.
— Como
assim, não foi uma briga?
— Ciúme!
O problema é que Deus deleitou-se com o sacrifício do borrego
assado do Abel; para as frutas e legumes do Caim, nem olhou. A
propósito, queres sobremesa?
Corvelo
olhou em volta, disfarçadamente, até descortinar o carrinho de
sobremesas.
— Noisettes
de morango com Porto; é isso. E tu?
Galhardo
soltou-se em riso.
— Desculpa,
lembrei-me duma coisa. Como será uma sobremesa de carne? — riu-se
de novo ao gesto lúbrico de Corvelo. — Não, falo a sério. Uma
empada de borrego? Um creme de cabidela? Deus bem podia ter honrado
alguma fruta do Caim para a sobremesa!
Após
uma pausa para mandarem vir sobremesas, voltou à conversa anterior:
— Para
mim, aquilo é importante, sobretudo, pela força que criamos em nós,
por sentirmos que estamos certos e que Deus está do nosso lado; e
por nos sabermos rodeados por amigos empenhados nos mesmos objetivos,
mesmo não lhes vendo a cara, não achas? A Ação ajuda os seus
filhos, como nós a ajudamos. Os membros da Ação são como irmãos,
não é… irmão? Olha, venham almoçar lá à minha quinta de
Sintra, no domingo, está bem? A Matilde está farta de me dizer para
vos voltar a convidar. Venham, que damos uma volta pela serra. Nesta
altura está toda florida e o cheiro das acácias é sublime.
Conforme
ditava a convocação cifrada, Galhardo chegou às onze e meia da
noite à Quinta da Dedaleira, ele próprio ao volante de um carro
pequeno. Envergava um albornoz negro com uma cruz de Cristo no peito.
Recolheu-se uns minutos a interiorizar o ambiente e o espírito
adequados à cerimónia em que iria participar. Antes de sair do
carro, colocou o capuz bicudo, também negro, onde só duas aberturas
ao nível dos olhos permitiam interação com o exterior.
Percorreu
uma alameda sinuosa em declive ascendente, iluminada pela lua,
ouvindo apenas os próprios passos, e entrou num túnel, disfarçado
por detrás da cantaria de uma fonte. Parou a adaptar a retina à
escuridão. Em vão. Resolveu ligar a lanterna do telemóvel. Não
havia motivo para se arriscar a tropeçar e cair. Pouco depois, ao
dobrar o cotovelo existente no túnel, vislumbrou uma luz ténue
vinda do poço vertical escavado na encosta e apagou a lanterna.
Desembocou
num ponto intermédio da escadaria espiral embutida na parede interna
do poço iniciático. Olhou para cima. A uns doze metros, via-se
parte da parede do poço iluminada pela lua cheia, enquadrando o
círculo de azul profundo do céu. Para baixo, escuridão. Ouviu
passos que desciam da parte superior. Estava na hora. Desceu, com
cuidado, os sessenta degraus que o separavam do fundo. Aí, o
diâmetro do círculo de chão marmóreo não ultrapassava os três
metros. Na sombra, percebeu cinco vultos silenciosos, de que só se
percebia o símbolo vermelho no peito, dispostos em semicírculo
junto à parede. Ocupou o seu lugar e aguardou.
Pouco
depois, chegou o irmão de quem ouvira os passos e outro companheiro
que surgiu da sua direita, da galeria que dava para o lago. Em breve,
os seus olhos estavam adaptados à escuridão e pôde perceber uma
banqueta almofadada e uma grande cruz em aspa encostada e fixada
quase verticalmente à parede curva. Ali, ocorreria o ritual que —
acreditava-se — desencadearia o mistério da ajuda divina para os
que a invocavam. Ele tinha algumas dúvidas, algumas reticências
íntimas, mas não podia dar-se à ousadia de as deixar emergir
demasiado. Não tinha bem a certeza de quem controlava o quê. Havia
demasiados mistérios na vida, apesar dos muitos mecanismos de
domínio e manipulação que já conhecia.
No
alto do poço, surgiu um halo de luz que se deslocava ao longo da
escadaria, fazendo as sombras das colunas desta viajar na parede
oposta. Era o cordeiro do sacrifício que chegava. Reparou que todos
os irmãos olhavam na direção da luz e percebeu uma certa
ansiedade. Um irmão, quase à sua frente, começou a cantar, muito
baixo e grave, quase em surdina, o Agnus
Dei.
Galhardo não teve dúvidas de que se tratava de monsenhor Benedito,
o responsável pelas aplicações financeiras do santuário. Todos
responderam, nas partes “aleluia” e “digno é o cordeiro”.
Pareceu-lhe reconhecer as vozes do presidente do Banco Central de
Negócios e do rival e vizinho, o milionário Ricardo Van Keizer.
Quando já se via que a luz provinha de um grande círio empunhado
por um irmão, começou a revelar-se a forma alva que o seguia. Era
uma jovem de branco, com um manto que lhe cobria o cabelo. Galhardo
pensou reconhecer, no irmão guia e ofertante, o passo oscilante do
ministro das finanças. Fazia sentido.
Chegados
junto da assembleia, este colocou o círio num suporte elevado da
parede e conduziu a jovem até à banqueta, na qual ela se ajoelhou,
de mãos postas e cabeça baixa. Monsenhor, seguido por todos, foi
baixando o volume da entoação do cântico até se fazer silêncio.
O ofertante puxou para trás o manto da rapariga, descobrindo-lhe a
cabeça e revelando uma longa cabeleira escura. Envolvendo a cabeça,
uma faixa púrpura com o logótipo da Caixa Geral de Depósitos
bordado ao nível da testa. Olhando para todos os companheiros
encobertos, através das aberturas do seu capuz, o ofertante
anunciou:
— Corpo
do meu corpo, sangue do meu sangue: eis aqui a escrava do Senhor!
— Avé,
Maria, cheia de graça! — saudou monsenhor, postado à frente da
donzela. — Glorioso será o fruto do teu ventre, que gerarás para
nós, para a glória de Deus.
— Faça-se
em mim, segundo o vosso desejo! — acedeu a inocente.
Monsenhor
colocou, então, a mão direita sob o queixo da jovem, introduziu a
ponta do polegar na boca dela e anunciou baixinho:
— O
Senhor entrará a ti e tu produzirás os frutos da tua fertilidade e
saciaremos a sede no teu úbere.
O
ofertante ajudou a jovem a levantar-se, conduziu-a com doçura e
encostou-a à cruz em forma de X. Fez descer a faixa púrpura, de
modo a cobrir-lhe os olhos e olhou, de novo, para todos os
circunstantes. Num gesto suave, puxou um laço que prendia a longa
túnica na zona do pescoço, soltando-a. Esta caiu ao chão,
revelando o corpo nu da rapariga. Era uma mulher jovem; “da idade
da minha filha” — calculou Galhardo. Os seios eram fartos e
estava rapada na zona púbica. Cada um dos dois irmãos que ladeavam
a cruz pegou num braço da jovem, amarrou-lhe o pulso com uma fita
também púrpura e ergueu-o até ao respetivo braço superior da
cruz. Os seios da jovem subiram um pouco e afastaram-se um do outro.
Com meia dúzia de pancadas que ecoaram pelo espaço cilíndrico do
poço, os dois confrades pregaram as pontas da fita ao madeiro. A
seguir, fizeram o mesmo às pernas: afastando-as, prendendo os
tornozelos com fitas e pregando estas aos braços inferiores da cruz.
A
jovem mulher mostrava-se dócil e submissa. Ofereceu, em voz suave:
— Tomai
e comei; este é o meu corpo!
Monsenhor
aproximou-se de punhal em riste. Parou junto ao cordeiro da imolação,
contemplando o seu corpo indefeso. Ergueu o punhal apontando-o ao
pescoço, enquanto a mão esquerda segurava o queixo virado para
fora, e susteve-se. Galhardo pensou reconhecer a mesma posição em
que já vira representado Abraão sacrificando o seu filho Isaac, no
momento em que um anjo interveio e evitou o sacrifício. Parecia que
monsenhor estava a dar tempo ao anjo para intervir. A jovem inclinou
mais a cabeça para a sua direita, oferecendo o pescoço branco.
Galhardo
conhecia a jovem, das suas ligações mecenáticas à arte. Era
artista de performance
e já trabalhara várias vezes para a Ação. Ela e o marido cobravam
uns poucos milhares de euros por uma sessão destas, sigilo incluído.
Monsenhor encostou o punhal ao pescoço da jovem. Sob a lâmina
surgiu um fio de sangue. Monsenhor fê-la deslizar em torno do
pescoço nu, pressionando o botão que expulsava do recipiente do
cabo sangue de galinha. Grossos veios vermelhos escorreram do
pretenso golpe no pescoço unindo-o ao baixo-ventre e escorrendo pela
face interior da perna direita, qual gargantilha de múltiplos
pendentes longos e sangrentos. O sacrifício estava consumado. A
jovem, em voz baixa, voltou a sussurrar:
— Este
é o meu sangue. Tomai e bebei!
Seguiu-se
a fecundação ritual, por cada um dos oito comensais. Monsenhor
aproximou-se, abriu o albornoz, agarrou os pulsos do cordeiro e
encostou o corpo nu ao da vítima. Fez um movimento para a frente com
a pélvis, exclamando:
— Abundante
seja o fruto do teu ventre!
Galhardo
foi o penúltimo. Sentiu a tensão suave do peito da jovem a ceder ao
peso do seu, sentiu os sexos encostados, viu à frente dos seus olhos
o símbolo de três letras do corpo financeiro desejado. Um início
de ereção manifestou-se. Fez o movimento ritual.
— Abundante
seja o fruto do teu ventre! — completou monsenhor.
Pouco
depois, descia a figura arcangélica, pela escadaria. Era alto, de
cabelos louros ondeados. Envergava um longo manto de brocado em tons
de amarelo e vermelho. Na mão direita, um cetro da Ação, no ombro
esquerdo, uma pomba de rabo de leque branca. Aproximou-se da mulher;
a pomba voou para a cabeça da escolhida. O delegado da Ação soltou
o manto, revelando o corpo nu, musculado e ginasticado. Adotou a
mesma posição que os irmãos, havia pouco, executando suaves
enleios das ancas. Monsenhor começou a cantar “Forte, forte é o
Senhor”, acompanhado por todos. Pouco depois, o enviado penetrava o
corpo exposto da eleita, manifestando ritmadas e enérgicas
contrações dos glúteos. A assembleia em semicírculo, arrebatada,
mantinha uma atenção intensa. O ato não durou mais de minuto e
meio. O corpo cansado quedou-se em comunhão física com o corpo do
desejo, o rosto tombado no seu ombro. Monsenhor retirou um círio
aceso e, ainda cantando, dirigiu-se para o exterior, pela caverna do
lago, seguido pelos outros irmãos, em fila cerimonial.
No
dia seguinte, Galhardo tomava o pequeno-almoço no alpendre quando
recebeu uma chamada do seu amigo Corvelo:
— O
Governo anunciou agora que vai privatizar vinte e cinco por cento da
Caixa ao preço de oito e meio cada ação. Parabéns! Sempre vais
conseguir levar a tua avante!
— Hurra!
— rejubilou Galhardo. — Não vejo a hora de pôr as mãos naquele
banco! Agora só dependo de ti para conseguir o empréstimo.
— Fica
descansado; já comecei a tratar de tudo. Penso que para a semana já
tenho notícias para ti. Boas, com certeza!
— Ótimo!
Outra coisa, já falaste com a tua mulher por causa do almoço de
domingo?
— Sim,
sim! Ficou muito agradada com o convite. No domingo, lá estaremos
para o almoço, com todo o gosto. Cumprimentos à Matilde.
O
almoço constituiu um ensejo de maior aproximação dos amigos e
também das suas esposas. Tantos interesses comuns elas encontraram
que combinaram um salto de uma semana a Nova Iorque, para ver umas
peças na Broadway, e para compras, claro.
Conforme
tinha prometido, Corvelo tinha um empréstimo de setecentos milhões
aprovado pela direção do Banco em menos de uma semana. A assinatura
do contrato fez-se na sexta-feira, de manhã, na sede do banco de
Corvelo, desculpando-se este com a insuficiência da garantia para a
taxa de juro ser um ponto mais alta que o esperado pelo amigo.
Galhardo compreendeu e aceitou, admitindo para si que até daria
mais, desde que isso lhe permitisse aceder a uma fatia da Caixa. Em
privado, revelou a Corvelo:
— Quero
agradecer-te por este empréstimo e pelo esforço que fizeste para o
conseguir. Para te mostrar quanto estou reconhecido, quero
convidar-te para uma sessão especial de que vais gostar, tenho a
certeza. Eu depois confirmo as datas. Não marques nada para aqueles
dias em que a Matilde e a Zizi estiverem para fora!
Na
tarde do dia seguinte, um dia quente de princípio de primavera,
Galhardo ligou para a rapariga da performance no poço iniciático:
— Como
está, menina Paula? Não me conhece, ou antes, nunca nos falámos,
mas eu sei que faz performances
especiais, para grupos muito selecionados. Foi uma pessoa altamente
colocada que me deu o seu número. Estou a ligar-lhe, exatamente,
para saber se está disponível para uma performance
temática, deste sábado a oito dias, numa quinta em Sintra.
A
primavera passou lenta e majestosa pela quinta de Galhardo e por toda
a serra de Sintra. Impercetivelmente, os mantos amarelos das acácias
deram lugar a matizados de castanho e verde profundo e as brisas de
odores adocicados trazem agora cheiros sensuais de feno e madeira.
Correu
bem a escapada a Nova Iorque de Matilde e da nova amiga. Voltaram
radiantes e dispostas a outras aventuras por outras capitais de
compras. Correu bem a escapadela de Galhardo e do amigo na recriação
do episódio bíblico de "Susana e os Velhos". Ficaram com vontade de
aprofundar o estudo da Bíblia e selecionar outros episódios
inspiradores.
Correu
bem a privatização parcial da Caixa. O Estado encaixou quase seis
mil milhões, o que permitia ao Governo aliviar por algum tempo o
garrote inexorável da dívida. Correu bem a Galhardo a aquisição
de ações da Caixa, apesar do receio de que os investidores
estrangeiros, nomeadamente os fundos de pensões americanos,
entrassem em força na operação, mas o Governo reservou dois terços
do alienado para os investidores nacionais. Galhardo, sozinho,
subscreveu e obteve os setenta milhões de ações que pretendia,
pelos quais pagou seiscentos milhões. Nos primeiros quinze dias, o
preço por ação manteve-se a subir, confirmando os palpites
otimistas de Galhardo que aproveitou para acumular, aplicando os
restantes cem milhões do empréstimo que ainda não tinha usado.
A
partir daí, não correu tão bem a investida acionista de Galhardo.
Devido a investimentos ruinosos do banco que suportava o seu rival
Van Keizer, tornou-se claro, ao longo da primavera, que esse banco
corria o risco de falência. Dizia-se que os administradores eram
apenas homens de mão de Van Keizer para esvaziar o banco,
desapossando liminarmente os depositantes. Acontecia que alguns dos
maiores depositantes eram organismos do Estado, atraídos por juros
muito tentadores e pelo prestígio de sucesso de Van Keizer. Assim
sendo, o Estado, na posição desconfortável de perder milhares de
milhões se o banco falisse, resolveu nacionalizá-lo, assumindo os
prejuízos, mas tomando em mãos a gestão do banco para não perder
tudo o que lá tinha metido por interpostos organismos. Argumentou
com o perigo de uma derrocada geral do sistema financeiro do país,
mas Galhardo pensou que o facto de Van Keizer pertencer à Ação
também teria pesado na decisão do Governo, embora nada mais pudesse
fazer que conjeturar.
As
perdas do banco nacionalizado eram bem maiores do que a princípio se
pensou e, aos poucos, todo o encaixe que o Estado tinha realizado com
a privatização de parte da Caixa foi metido no banco de Van Keizer.
Na verdade, as perdas repercutiram-se nos outros bancos, o que fez
cair as cotações das ações de todos. As da Caixa não foram
exceção, caindo em três meses para menos de seis euros. Dadas as
dificuldades gerais e da Caixa em particular, esta decidiu não
distribuir os dividendos previstos para esse ano. O que tinha custado
a Galhardo setecentos milhões valia agora menos duzentos e
cinquenta, sem qualquer retorno. A sua garantia de trezentos milhões,
que tinha parecido ser mais que suficiente, levou um rombo, quando
também as ações da petrolífera caíram, devido à instalação
próxima, no Alentejo, de uma fábrica de produção em massa de
carros elétricos.
Desta
vez foi Corvelo que convidou Galhardo para almoçar. Ainda antes de
chegar o rosbife à hortelã, Corvelo encetou o assunto quente:
— A
tua posição é insustentável, tens de reconhecer. Acho que desta
vez arriscaste de mais. Estou a ser pressionado por toda a
administração e não há outra volta a dar, senão executar a tua
garantia, para cobrir as perdas.
— Eu
sei que a coisa está feia, mas não achas que a Ação me podia dar
uma mão, como deu ao Van Keizer?
— É
também por isso que tinha de falar contigo. O principal diz que tem
de haver sacrificados, alguém que possa ser apontado como culpado.
Usou especificamente o termo “cordeiro”. Ele acha que deves ser
tu, por jogares um bocado fora do grupo.
“Cordeiro!”
Galhardo sentiu-se encurralado. O ímpeto predador de há poucos
meses estava agora transformado em docilidade impotente.
No
dia seguinte, compareceu à reunião convocada pelo banco de Corvelo.
Uma dúzia de olhos severos anunciou-lhe que iam executar a garantia
e tomar posse das ações da Caixa, que Galhardo subscrevera, dado
que, tudo junto, mal dava para cobrir o empréstimo, sem falar nos
juros. Que era só assinar um molho de papéis que lhe puseram à
frente.
A
sala de reuniões do nono andar era grande e estava desagradavelmente
fria, devido ao ar condicionado. “Lá fora, o ar está morno”,
pensou. Vistas de cima, as árvores do parque fronteiro pareciam
colchões, fofos e penugentos. Juntou o maço de papéis que os
abutres tinham posto à sua frente, bateu-os, alisou-os, avaliou a
sua leveza, o seu volume e dividiu-os em dois molhos iguais, um em
cada mão. Estava a poucos metros da janela; podia tornar-se um Ícaro
dos tempos modernos, se quisesse. Queria? Teria coragem?
O
toque de um telemóvel distraiu-o momentaneamente dos seus
pensamentos. Corvelo atendeu, ouviu durante uns segundos e deixou
escapar:
— Forte
é o Senhor!
Quinze
dias depois, na sua quinta de Sintra, Galhardo, reconhecido e já
recuperado dos momentos tensos que tinha vivido, oferecia ao ministro
uma performance temática — "O rapto de Perséfone". A mitologia
grega também era interessante.
Joaquim
Bispo
*
Este
conto, de 2010, obteve o 7º lugar no Concurso Literário Osório Alves de
Castro, da UFOB — Universidade Federal do Oeste da Bahia —,
Brasil, em 2016.
*
Imagem:
Josefa de Óbidos, Cordeiro
Pascal, c. 1680.
Basílica dos Congregados, Braga.
Foto:
Didier Rykner
*
* *