10/07/2020

Obsessão


Fernando Nunes tinha a certeza de que as forças encobertas não deixariam passar aquela ocasião, não iriam ignorar aquele descuido fatal da sua segurança. Morreria nesse dia e sabia como, só não sabia de onde surgiria o golpe decisivo.
Não era supersticioso. Ou, pelo menos, achava que não era. Aliás, fazia questão de mostrar que não ligava a gatos pretos, nem se inibia de abrir guarda-chuvas em casa ou de passar por baixo de escadas. É certo que o fazia com algum acinte e esforço de racionalização. Sabia perfeitamente que certas superstições radicavam em sabedoria prática, que tinha degenerado em norma dogmática de difícil justificação e muito pouco questionamento. Usava, no entanto, de um cuidado redobrado nessas situações potencialmente nefastas. Agora, o caso era perigoso.
Esse esforço de racionalização vinha já da infância e da juventude. Então, muitas vezes se sentia compelido a contar os passos entre dois pontos da rua. Se errasse por muito, sentia-se ameaçado. Como se sentia em transgressão, se pisasse alguma separação dos blocos de pedra de alguns passeios mais nobres. Tinha de fazer um esforço para decidir que nenhum perigo advinha se errasse o cálculo ou se pisasse alguma dessas separações, mas continuava o jogo mental, ao mesmo tempo lúdico e sinistro, com as entidades que tudo veriam e estariam certamente atentas às suas falhas. Era uma ameaça mais intuída que percebida, com origem indeterminada, mas obviamente sobrenatural. Nunca as vira, mas sabia que estavam sempre lá, a espiar-lhe os movimentos, a julgá-lo.
Certa vez, num teste vocacional da adolescência, um psicólogo apontara-lhe uma personalidade esquizotípica. O relatório falava em crenças estranhas e pensamento mágico influenciando o comportamento, fuga da realidade e ruminações sem resistência interna, mas não ligou muito nem ficou preocupado, porque pressentia que tudo correria bem se fosse cuidadoso.
Naquele dia, Fernando fora descuidado. E os descuidos podem ser ciladas das forças obscuras. Sabia-o e temia o que aí vinha, necessariamente. Os apaziguamentos de racionalidade chocavam com o perigo da situação. Que parecia simples e prosaica. E, no entanto, continha um alto grau de ameaça.
Qual era a situação? Não tendo encontrado em qualquer estância de materiais, em Lisboa, as placas de fibra de madeira, da largura que necessitava para construir o interior de um roupeiro, na sua casa na terra, mandou cortá-las numa grande superfície de Santarém.
A satisfação por ter conseguido encontrar o que necessitava deu lugar a uma grande apreensão, ao perceber que não conseguia acomodar as placas maiores na bagageira do seu carro, mesmo dobrando os bancos traseiros. Como bom suburbano, resolveu alojá-las no lugar do “pendura”, com o banco um pouco reclinado.
Percebeu logo o perigo que tais placas, à solta no habitáculo do carro, representavam, em caso de acidente. Com as suas massa e inércia, deslocando-se abruptamente no mesmo espaço que ele, seriam como cutelos cortando carne num talho. A decapitação seria o resultado mais piedoso.
Sentiu-se ridículo, ao apertar o cinto de segurança ao grupo das quatro placas de um metro e setenta. Imaginou o sarcasmo das forças emboscadas nos meandros das subtilezas sobrenaturais: tesas, as placas lembravam um esqueleto a seu lado.
Tomou a A1, a caminho da Mealhada, com o coração apertado. Havia que fazer um plano, para minimizar as hipóteses de intervenção das forças obscuras. Havia que manter uma velocidade moderada, para baixar as possibilidades de acidente, por pneu rebentado ou despiste. Havia que evitar uma velocidade demasiado baixa, para não ser abalroado. Muito tenso, mas atento, ia tomando consciência dos quilómetros percorridos ― perigo passado ―, mas apreensivo pela enorme distância a percorrer.
Olhando pelo retrovisor, a dezena de carros que avistava pareciam-lhe uma matilha em sua perseguição. Algum deles podia estar tomado pelo inimigo. Podia embater no seu carro, violentamente. Ou podia, simplesmente, dar-lhe um pequeno toque lateral. Seria o suficiente para o carro entrar em descontrolo e dar meia dúzia de cambalhotas. Nem queria pensar no que aconteceria dentro do habitáculo.
Depois de Fátima, um camião lá à frente em marcha mais lenta podia ser a barreira contra a qual seria encurralado por aquela carrinha compacta que vinha lá atrás, em alta velocidade; mas passou. Ao ultrapassar o camião, Fernando viu os cilindros metálicos. Podia ser agora: os tubos soltarem-se e invadirem a estrada ou mesmo caírem-lhe em cima. Passou. Pareceu-lhe ouvir um zumbido na zona do pneu dianteiro direito. Um rebentamento seria fatal. Era agora? Abrandou um pouco.
Perto de Pombal, tentou fazer um exame de consciência: afinal, como tinha conduzido a sua vida?; merecia ser castigado? Claro que sim! Tantas vezes fora reles e perverso, tantas vezes tratara mal as outras pessoas, tantas vezes fora pouco honesto. Sim, certamente seria castigado. Mas, morto? Sentiu pena de deixar de viver já. Tinha ainda tantos planos, tantas coisas mal resolvidas. Viver era tão bom. Gaita! Sempre suspeitara de que era demasiado bom para durar. Deve haver sistemas de reequilíbrio no Universo.
Apesar do veredito, decidiu ir à luta. Iria continuar com a condução defensiva e estar atento a todos os tipos que mudassem de direção, sem fazer piscas.
Como que reagindo ao seu desafio, um nevoeiro progressivamente mais compacto formou-se, ao passar nos vales baixos próximos de Condeixa. Agora nenhuma precaução podia salvá-lo. Ligou máximos, ligou luzes de nevoeiro e os quatro piscas, tentando fazer-se ver, já que não enxergava mais do que uns quinze metros à sua frente. As mãos ferravam-se-lhe no volante, os olhos no nada da estrada, e sempre controlando o retrovisor. Em vão. Sem referências de nenhum tipo, parecia ter passado para outra dimensão, uma dimensão que não era deste mundo. Esperava o embate a qualquer momento. De que é que estavam à espera? Uma enorme tristeza invadiu-o. Sentiu que não podia nada contra estes inimigos.
Uma dezena de quilómetros depois, o nevoeiro esfumou-se de um momento para o outro. Passou Coimbra e começava a acreditar que talvez se safasse. Se calhar, os traiçoeiros tinham mudado de ideias. Ou estariam a fazê-lo acreditar que estava a salvo, para então lhe aplicarem o golpe fatal e se comprazerem com a surpresa no seu rosto?
Já depois da Mealhada, teve de tomar as estreitas e sinuosas estradas para a sua Antã da Serra, no meio da serra do Buçaco. Ali, as velocidades eram diminutas, mas a probabilidade de um choque ou uma saída de estrada era bem maior. Devia ser agora. Pareceu-lhe que as tábuas já se moviam nas curvas. Sentia outra vez uma nostalgia do que ia deixar. Como era belo o mundo. Aquela serra era gloriosa. Que pena ir embora agora. Se calhar, tinha de ser.
Mas não. Para grande espanto seu, chegou a casa sem qualquer percalço, sem qualquer mazela. Manteve-se ao volante, no carro parado, envolvido pelo silêncio local, tentando equacionar a situação. Como era possível? Tanta tensão, tanta concentração nas últimas duas horas e o terrível clímax não surgira. Obviamente, tinha sido agraciado com mais uma vida. Agradeceu mentalmente, por descargo de consciência, não sabia a quem. Só o zumbido nos ouvidos e alguns estalos do motor a arrefecer lhe responderam. Aliviado, racionalizando o caso, concluiu que não havia razão para ser supersticioso. Mas tinha de ter mais cuidado.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 192 a 194 — a antologia “Adentre-me – O Almanaque do Suspense” da Editora Jogo de Palavras, em 2019: https://www.jogodepalavras.com/antologias

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Imagem: Agesandro, Atenodoro e Polidoro (cópia atribuída), Grupo de Laocoonte, c. 27 dC.
Museus do Vaticano, Roma.

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