Caros
circunjacentes:
A
minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções,
o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos:
O
mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo.
Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca afora, espontâneo e
veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou
prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas
acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço
essencial do asfalto faz colidir os interesses particulares. Então,
nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios,
sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da
racionalidade, são considerações sobre as características ou os
hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro
da sua família. São expressões belicosas cuja significação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por
exemplo,
«Rastilho curto!», o que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele.
No
entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável,
o vitupério não precisa de coincidir, morfologicamente, com um
vocábulo de semântica obscena. Para tanto, basta a entoação colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível
como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu
antagonista em estupor, como touro lidado: «Ó meu caro amigo: Vodafone!»
A
forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a
encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado
local, diversos dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se
adequam melhor às características do enxovalhado. As notícias da
política internacional são um manancial de expressões com
sonoridades e construções ortográficas que sugerem conotações
soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma
feirante verberar outra, nos seguintes termos: «Vai pà Bósnia, sua Herzegovina!» Se fosse agora, talvez dissesse «Vai Bachar al-Assad com Brexit, sua Guaidó!», o que me parece
de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.
Outro
significado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é
“palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo,
pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era
“inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que
o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um palavrinho, como
pirilau de menino. O do pai chama-se
Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma
substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se
Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e
significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela
aspiração de cinzas vulcânicas”.
O
mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de
medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença
Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das
crueldades — é a “doença psicológica que se caracteriza pelo
medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”.
Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação
da sua própria enfermidade!
Estes
vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérfido
subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem,
numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica,
também posso autoqualificar-me como
Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só
não faço uso por abominar redundâncias.
A
terceira aceção de “palavrão” é “expressão pomposa e
empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo.
Locuções grandiloquentes e/ou de sentido ininteligível são sempre
de coartar em comunicações a grandes auditórios, ainda que
académicos. Por mim, cultivo o discurso despretensioso, matizado
apenas por vocábulos lhanos e percetíveis por todos.
Tenho
dito!
Joaquim
Bispo
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Por
seleção em concurso literário, este texto integra — páginas 35 a 36 — a 13ª edição (jan./fev. de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:
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Imagem:
Rafael Bordalo Pinheiro, O
Manguito, c. 1884.
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