Por
mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito
importante para mim, culturalmente.
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Há
dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com
a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a
Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir
um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, semioficiais e de
preparação que o mundo do futebol promove para corresponder à
procura do público condicionado e arrecadar mais uns milhões em
direitos televisivos.
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Gosto
de ver uma ou outra partida que envolva a seleção, desde que o
desempenho seja leal, pujante e criativo, mas daí a engolir todos
os produtos que a sobre-produção descarrega...
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Mudei
para a SIC, com vontade de perceber porque se começou a falar
tanto e tão de repente em comboios e transporte ferroviário.
Será
que vem
aí mais uma conta para pagarmos? Em vão: estava a falar o
treinador do Benfica, talvez tentando distrair os adeptos das más
notícias recentes...
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Lembrei-me do orgulho benfiquista da década de 60, por não ter jogadores estrangeiros. Era sentido como uma espécie de brio
bairrista, mas nacional, de ganhar com a prata da casa, sem ajudas, nem truques, nem jogadas menos claras de qualquer tipo.
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Mudei
para a TVI, resignado a ouvir mais algum caso pungente de pequenez
e corrupção, dos
muitos
que vão atingindo tantas
instituições insuspeitas. Em vão: estava a falar o novo
presidente do Sporting.
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Não
sem que eu vislumbrasse, de memória recente, um espetáculo medonho de autocratas, bandos de
arruaceiros, tumultos, agressões, alarme social.
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Mudei
para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente,
com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das
subversões que os intervenientes do sistema vão
usando
para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez
indemnizar o corrupto do dia. Em vão: um painel de peritos
discutia compenetradamente um duvidoso fora-de-jogo que um árbitro
validara, certamente por incumbência de quem lhe pagou, dizia
um.
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O
futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para
alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para
praticar ou
para
ver,
mas não para discutir o desempenho dos intervenientes.
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Mudei para a TVI-24 para ver com os meus olhos as ameaças do regime de Trump aos juízes do Tribunal Penal Internacional, por estes tentarem julgar os criminosos de guerra americanos. Em vão: um painel de entendidos altercava, aos
gritos, sobre a gravidade e as consequências a tirar do caso da
espionagem à Justiça, feita por membros do Benfica.
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Acho
divertido, mas dramático, que os desgraçados
que ganham o salário mínimo, ou menos, acicatados por máquinas de radicalização de que estas trupes são os testas de ponte, se esfarrapem a vitoriar, acéfala e infundadamente, bandeiras, símbolos e panteões risíveis, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira com aspetos obscenos de anti-desportivismo por parte de dirigentes, e de desigualdade social, em relação aos seus milionários ídolos.
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Mudei para a RTP-3 só para confirmar que as potências em conflito na Síria continuam a declarar fazê-lo para defender o povo sírio, enquanto continuam a tentar travar a chegada à Europa da vaga de desesperados migrantes resultante. Em vão: um painel de especialistas perorava sonolentamente sobre as tarefas do Sporting para ultrapassar a crise em curso.
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É
inacreditável a quantidade de horas que variados painéis
de comentadores
gastam
a falar de futebol, às vezes de um jogo ou de uma jogada apenas.
Acreditem ou não, às vezes relatam
um jogo que só eles estão a ver, mas não mostram… Com certeza
que têm espectadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares
de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que
falam, apenas
falam, de um espetáculo que é eminentemente visual.
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Já
sem grandes esperanças de escapar ao futebol e aos seus
tentáculos, mudei para a RTP-2.
Foi aí que, após ter
percorrido
o longo e
estreito carreiro atrás descrito,
tive
oportunidade de assistir a um programa sobre “endocrinologia e
ambiente” e os efeitos nefastos que um meio-ambiente
cada vez mais poluído
tem para a saúde. Muito interessante e pedagógico, e certamente
mais
enriquecedor para cada um dos outros espectadores, se
não estivessem
presos à mesmice do chuto na bola. Por
mim, pelo contrário, se
não fosse a
omnipresença televisiva do
futebol tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!
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Joaquim
Bispo
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Imagem:
Jan Vermeer, O astrónomo,
1668.
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10/09/2018
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