10/12/2018

— Natal é todo o ano!



Todo o ano? Qual Natal, pai, o dos nascimentos ou o das prendas?
O nosso, que não fazemos outra coisa senão presépios, anjinhos e outras figurinhas alusivas, em barro.
Estas meias-pinhas não têm muito que ver com o Natal…
Meias, não, Tiago. As metades de baixo que estás a moldar… Pressiona bem esse barro no molde, para não ficar com falhas! Dizia eu, as tuas metades mais as de cima, ali da tua mãe, unidas e retocadas por mim, fazem pinhas inteirinhas e, depois de irem ao forno, ficam bem pitorescas.
Hum!
É uma peça de preço acessível, para oferecer como gentileza nesta época. Não é um presente de marido para mulher ou de avô para neto, mas é uma boa ideia para oferecer entre colegas de trabalho, ou entre amigas. Como sabes, há até empresas que as compram às dezenas para acompanhar outras prendas aos empregados.
Sim, eu sei, não é a primeira vez que venho ajudar; mas o que é que têm que ver com o Natal?
Tiago, o Natal reteve muitas das práticas das festas pagãs dos antigos, para festejar o solstício do inverno. Mantém uma grande ligação ao campo, à floresta. E pinha lembra floresta. Não é, Teresa?
Com certeza. E fogo. Sequinha, é a melhor acendalha que há. Nas aldeias, ainda hoje se acendem grandes madeiros, no adro da igreja. Já viste, lá na Amieira, o povo todo à volta da fogueira na noite de Natal! Pinha, fogueira e Natal andam associados.
E essas bolinhas?
Azevinho. Algumas pessoas também ornamentam as casas com ele, quer as ombreiras das portas, quer as lareiras e as mesas. Estas bagas, que hão de ser pintadas de vermelho, e estas folhas, aqui em cima da pinha, são de azevinho.
Salvo seja, mãe!
Olha que não estão nada más! Zé, tens aqui mais seis.
Aonde é que vamos passar o Natal, este ano?
Então, vamos à Amieira! O ano passado foram os tios que vieram cá…
À Amieira?! Ganda seca! Porque é que não vamos Algarve?
O Natal é a festa da família, Tiago. Se não estivermos reunidos nesta altura, só nos vemos nos enterros.
Tiago, esvazia bem essa metade! Se o barro ficar muito grosso, estala na cozedura.
Fogo! Os tios só me oferecem livros com histórias que não interessam nem ao Menino Jesus.
Se calhar não te fazia mal nenhum lê-los, em vez de estares sempre agarrado à consola de jogos.
Bela consola, esta! Estou todo consolado! Já deito pinhas pelos olhos!
Tiago Manuel! Não menosprezes este trabalho. Cada uma rende pouco, mas se vendermos seiscentas, como no ano passado… Dão mais do que meia dúzia de presépios como aquele ali, que já me leva uns cinco dias de trabalho. Ali, debaixo daquele pano húmido! A propósito, lembras-te de a tua mãe dizer que não era muito lógico o pastor, que vai oferecer o seu presente ao Menino, levar uma lebre no braço?
Sim, até apostaste com ela um lanche na pastelaria. As apostas forretas do costume! O que é que tu dizias, mãe?
Que fazia mais sentido ser um cabrito ou um borrego. Se é um pastor…
Pois! Mas o que me parecia ver na estampa da Adoração dos pastores era uma lebre. No domingo de tarde, enquanto estavas para o cinema, eu e a tua mãe fomos de propósito ao Museu de Arte Antiga tirar as teimas. Perdi! Sempre me tinha parecido uma lebre. Realmente, ver o quadro do Gregório Lopes, ali mesmo à nossa frente, é outra coisa! Fiquei convencido de que é um cabrito. Mas deve ser de uma raça que agora não é vulgar.
Não ganhei grande coisa nessa aposta. Se fosse o Euromilhões! Zé, o que é que tu gostavas que eu te desse, agora no Natal, se me tivesse saído muito dinheiro?
Uma autocaravana.
Assim, levas uma camisola, oh-oh!
Eu quero uma viola elétrica.
Para quê? Tu não sabes tocar!
Como é que eu posso aprender? A ver telediscos?
Já tens uma acústica, de madeira.
E toco! Mas a música agora tem de ter amplificação e encher o espaço.
Era só o que nos faltava — barulheira. Eu gosto pouco de barulho.
Então um leitor de mp4. Com auscultadores.
O que é que achas, Teresa?
Eu não me importo. Só tenho medo que ele fique surdo como o filho do vizinho. Andava sempre com aquilo nos ouvidos; nem dava por ninguém. E ao teu irmão, o que é que havemos de dar?
Isso é que é mais difícil! Ele já tem tudo. Também não lhe vamos dar uma moto de água, para andar na barragem, que é só no que ele fala agora!
Tem de ser uma coisa boa!
Mesmo que ele já tenha, mãe?
Uma camisola faz sempre falta. Mas das boas, que lá o frio até corta. Fancaria é que não. Como uns brincos de pechisbeque que o teu pai me deu uma vez.
Gostaste deles, confessa!
Eh! Estávamos casados só há um ano. Não ia dizer que não gostava ou que não queria. Estão para ali... Passa-me essa espátula, Tiago!
Já estou cansado…
E se fizéssemos uma pausa para lanchar, Zé?
Sabem o que me apetecia agora, com esta conversa? Uma filhó.
Ainda bem que falas nisso. Este ano, estamos a atrasar-nos. A ver se amanhã vou comprar farinha. No sábado que vem, amasso-as, e à noite fritamo-las.
Eu viro-as.
E eu espalho o açúcar por cima, posso?
Vai parecer o presépio.
Falta o burro e a vaca. Não querem convidar os vizinhos do rés-do-chão?
Tiago Manuel!
Tiago Manuel…

Joaquim Bispo
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Imagem: Gregório Lopes, Adoração dos pastores, 1541.
Museu Nacional de Arte Antiga — Lisboa.

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10/11/2018

Saramago em Concerto




Na última passagem de ano, desloquei-me com o grupo familiar habitual ao espaço fronteiro à Torre de Belém, onde a autarquia prometia música e fogo de artifício. A surpresa foi muito agradável. Até à meia-noite, atuou um conjunto muito curioso: formado por três violas, bateria, piano e três metais, só tocam músicas dos Beatles, copiam-nos em tudo, até nas roupas. Dão pelo nome de “Get Back Beatles” e são brasileiros. O esforço rende resultados: abstraindo-nos um pouco, quase acreditamos que estamos a ver e a ouvir os autênticos, quarenta anos depois, em Lisboa, todos vivos e jovens.
Admirei-os por terem conseguido arranjar um nicho de mercado original e rendoso.
Este revivalismo vem acontecendo com outras formulações. Tomei conhecimento de que, num clube privado, um grupo fazia a passagem de ano só com a banda sonora de uma novela brasileira. Uma passagem de ano temática.
Sempre atento às oportunidades de ganhar dinheiro com a literatura, dei por mim a pensar como se aplicaria o conceito ao ramo literário:
Seria possível encher um pavilhão, a pagar, para ver um autor a criar um conto? Várias câmaras captariam a folha onde o escritor alinharia as palavras, apresentando em grandes ecrãs panorâmicos com que palavras começava, quais cortava, mostrando o conto a nascer e a crescer, paulatina, mas inexoravelmente. Outras câmaras mostravam que apoios consultava, que palavras procurava nos dicionários, que partes ia aproveitando. Seria de evitar que o escritor usasse computadores, que embora tornassem a história visualmente mais limpa, fariam desaparecer as partes rejeitadas, que no papel se conservam riscadas, como cicatrizes do lutar literário. Quando muito, uma secretária, bonita e eficaz, iria passando a computador, e mostrando em ecrã próprio, a história num evoluir limpo. O frenesim no público aumentaria, à medida que algumas variantes da história eram abandonadas, nem sempre recompensado com uma variante mais interessante. Por fim, a história atingia o seu fim e o público rebentava em aplausos, a cujos “bravo” e “bis” o autor se mostrava surdo.
Numa fase de esgotamento da receita, o espetáculo podia incluir, como novidade e complemento, a apresentação em ecrãs próprios do desenrolar da tempestade cerebral do autor, através de sensores encefalográficos, podendo o público assistir ao saltitar constante da atividade cerebral, acendendo uma ou outra área, convenientemente identificadas pelo nome e pela atividade que desenvolvem.
Daria para encher um pavilhão com dez mil pessoas?
Para um público mais restrito e conhecedor — em sala-estúdio —, o escritor podia produzir uma história “à maneira de” um autor conhecido. A história seria totalmente nova, mas faria lembrar, irresistivelmente, o autor de referência. Para os melhores resultados, não faltaria quem levantasse a suspeita de que o escritor se limitara a transcrever um inédito desconhecido do autor emulado, conseguido sabe-se lá por que ínvios meios.
De qualquer modo, não se trataria de um paralelo perfeito com estes “Beatles”. O que eles fazem não é criar música com o estilo “Beatles”, nem recriar, com estilo próprio, as músicas originais. Isto seria escrever uma história conhecida com palavras próprias. Eventualmente, introduzindo uma peripécia, ou alterando outra, de maneira a potenciar a emoção que a história já transmite. O público que conhecesse a história iria achar que esta versão era mais épica do que a original, por exemplo, ou que não respeitava a intensidade da relação entre os protagonistas. Uma opção a considerar.
O que eles fazem é imitar os Beatles e as suas músicas, ao mais pequeno pormenor. O equivalente literário seria um escritor transcrever, palavra por palavra, uma obra literária de um monstro das letras. Onde residiria o interesse do público? Talvez a confirmar a sobreposição perfeita da história. Os mais puristas trariam exemplares da obra em execução e comparariam, ponto a ponto, o virtuosismo do escritor-reprodutor. Não se lhe exigiria, claro, que nunca tivesse lido a obra — como Borges fez com Pierre Menard —, mas que não lhe escapassem as reticências cheias de segundos sentidos, nem o rigor dos itálicos. Depois dos aplausos, haveria sempre alguém que comentaria: «Viram onde ele pôs o travessão, quando Gregor Samsa percebe que é um inseto? Já vi o Fritzl executar este conto com muito mais virtuosismo, sem falhar uma vírgula. Não há executante de Kafka como ele!»
Pensando bem, a reprodução em literatura tem o seu maior público na leitura. Basta comprar o livro; mas por que não ir ao concerto? Já imaginaram um concerto de Saramago ou uma audição de Machado de Assis? Aí, um diseur pode obter algum efeito de arrebatamento no ouvinte: a clareza cristalina da voz, as entoações insinuando significados, as pausas dramatizando silêncios — alguém que transmita toda a potência dos diálogos, como quando o cantor arranca emoções da audiência, que faça o pensamento do público vogar por regiões etéreas, quando percorra os bons nacos de prosa narrativa, qual solista a desenvolver a parte instrumental.
Com o fenómeno das editoras antropófagas — que se fazem pagar edições de autor, que fingem distribuir —, a solução pode passar pelos concertos. Quem sabe se alguns escritores iniciantes, mas muito promissores, virão a obter divulgação e início de reconhecimento público, fazendo a primeira parte de grandes concertos de escritores famosos?

Joaquim Bispo
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Imagem: Fico Molina, José de Sousa Saramago, sem data.
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(Esta crónica foi publicada no número 25 da revista literária digital Samizdat, de fevereiro de 2010.)
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10/10/2018

És Feliz?



Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a naturalidade das coisas quotidianas.
Um avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança que tenho dele é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha vivido sempre na aldeia — exceto a passagem por França, na I Guerra Mundial — e cuja informação se fazia nos mercados, nas conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo dele era calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A curiosidade de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse hoje, ele parado nos cinquenta e tal anos da fotografia da parede, bem mais novo do que eu agora? Como nos relacionaríamos, se convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas? A sua ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia reverente, vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos era sagrado?

Se bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um mês. Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de lazer caseiro, aos de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe as maravilhas do meu tempo e indaguei-o sobre muitos aspetos do dele. Levei-o velozmente pelos lisos tapetes das autoestradas do país, mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o Tejo, mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o pelas avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros. Ele mostrava-se um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou especialmente da televisão por cabo. Devorava sobretudo as notícias. Embora se admirasse com os telemóveis, o computador e a internet, ficava particularmente desconfiado com o microondas e divertido com a máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo e às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às lágrimas. Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as várias utilizações dos plásticos. Apreciou o serviço de aconselhamento médico pelo telefone, a que tive de recorrer. Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a frescura das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das cores fortes e dos tamanhos surpreendentes.
Finalmente, chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e — cito de memória — disse-me:
«Amaro, meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família e o teu mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender para um homem do meu tempo. Custa-me a crer que os homens foram à Lua, que desvendaram as entranhas da vida, que criaram certas maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo isso, mas continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos. As guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há milhares de pessoas a morrer de fome — que conceito abominável —, enquanto nos países ricos se destroem milhares de toneladas de alimentos, para não deixar baixar os preços. As cidades estão cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em pequenos espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem exercer uma profissão na sua área de estudos. Os jovens apenas arranjam trabalhos precários, às vezes, escravatura encapotada, com nomes pomposos como “estágio não-remunerado”.
E, no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já não trabalhas, recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde, podes fazer o que quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos cronistas, como tens brincado aos bloguistas e aos contistas. Passas demasiado tempo ao computador. Tens mais amigos na internet do que na “vida real”. As novidades tecnológicas vêm, envolvem-te e passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que nunca ouves, rádios, cento e tal canais de televisão, dos quais vês meia dúzia. A oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que idealizavas? Parece-me que estás esquecido dos sonhos da adolescência. Diz-me: és feliz?»
Antes que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora. Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter estado mais tempo com ele!

Joaquim Bispo
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Imagem: Adriano Sousa Lopes (1879-1944) (Artista oficial do Corpo Expedicionário Português durante a Iª. Guerra Mundial), Aprés une Attaque de Gaz (Depois de um ataque de gás),  Musée de la Grande Guerre du pays de Meaux.
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(Esta crónica integra a coletânea resultante da edição de 2013 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.)
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10/09/2018

Os benefícios do futebol



Por mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito importante para mim, culturalmente.

Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, semioficiais e de preparação que o mundo do futebol promove para corresponder à procura do público condicionado e arrecadar mais uns milhões em direitos televisivos.



Gosto de ver uma ou outra partida que envolva a seleção, desde que o desempenho seja leal, pujante e criativo, mas daí a engolir todos os produtos que a sobre-produção descarrega...

Mudei para a SIC, com vontade de perceber porque se começou a falar tanto e tão de repente em comboios e transporte ferroviário. Será que vem aí mais uma conta para pagarmos? Em vão: estava a falar o treinador do Benfica, talvez tentando distrair os adeptos das más notícias recentes...



Lembrei-me do orgulho benfiquista da década de 60, por não ter jogadores estrangeiros. Era sentido como uma espécie de brio bairrista, mas nacional, de ganhar com a prata da casa, sem ajudas, nem truques, nem jogadas menos claras de qualquer tipo.

Mudei para a TVI, resignado a ouvir mais algum caso pungente de pequenez e corrupção, dos muitos que vão atingindo tantas instituições insuspeitas. Em vão: estava a falar o novo presidente do Sporting.



Não sem que eu vislumbrasse, de memória recente, um espetáculo medonho de autocratas, bandos de arruaceiros, tumultos, agressões, alarme social.

Mudei para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente, com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das subversões que os intervenientes do sistema vão usando para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez indemnizar o corrupto do dia. Em vão: um painel de peritos discutia compenetradamente um duvidoso fora-de-jogo que um árbitro validara, certamente por incumbência de quem lhe pagou, dizia um.



O futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para praticar ou para ver, mas não para discutir o desempenho dos intervenientes.

Mudei para a TVI-24 para ver com os meus olhos as ameaças do regime de Trump aos juízes do Tribunal Penal Internacional, por estes tentarem julgar os criminosos de guerra americanos. Em vão: um painel de entendidos altercava, aos gritos, sobre a gravidade e as consequências a tirar do caso da espionagem à Justiça, feita por membros do Benfica.



Acho divertido, mas dramático, que os desgraçados que ganham o salário mínimo, ou menos, acicatados por máquinas de radicalização de que estas trupes são os testas de ponte, se esfarrapem a vitoriar, acéfala e infundadamente, bandeiras, símbolos e panteões risíveis, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira com aspetos obscenos de anti-desportivismo por parte de dirigentes, e de desigualdade social, em relação aos seus milionários ídolos.

Mudei para a RTP-3 só para confirmar que as potências em conflito na Síria continuam a declarar fazê-lo para defender o povo sírio, enquanto continuam a tentar travar a chegada à Europa da vaga de desesperados migrantes resultante. Em vão: um painel de especialistas perorava sonolentamente sobre as tarefas do Sporting para ultrapassar a crise em curso.



É inacreditável a quantidade de horas que variados painéis de comentadores gastam a falar de futebol, às vezes de um jogo ou de uma jogada apenas. Acreditem ou não, às vezes relatam um jogo que só eles estão a ver, mas não mostram… Com certeza que têm espectadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que falam, apenas falam, de um espetáculo que é eminentemente visual.

Já sem grandes esperanças de escapar ao futebol e aos seus tentáculos, mudei para a RTP-2. Foi aí que, após ter percorrido o longo e estreito carreiro atrás descrito, tive oportunidade de assistir a um programa sobre “endocrinologia e ambiente” e os efeitos nefastos que um meio-ambiente cada vez mais poluído tem para a saúde. Muito interessante e pedagógico, e certamente mais enriquecedor para cada um dos outros espectadores, se não estivessem presos à mesmice do chuto na bola. Por mim, pelo contrário, se não fosse a omnipresença televisiva do futebol tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!

Joaquim Bispo
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Imagem: Jan Vermeer, O astrónomo, 1668.
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10/08/2018

A primeira refeição do dia


A primeira refeição do dia é a mais importante.
(Dos sites nutricionistas)

Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos, pratos quentes.
Acho que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite, e o prato com queijo e carnes frias, iam para a mesa esvaziá-los, voltavam a recarregá-los, uma e outra vez. Abarrotavam tigelas com flocos de milho, de amêndoa, com fibras, com mel, chocolate e fruta. Juntavam leite, iogurte, café, sumos de frutas. Equilibravam pirâmides de fatias de Emmental, chaminés de Chèvre, com a ajuda de morros de Roquefort, acompanhados por arquipélagos de ovos quentes, salsichas fritas e barris de sumo de laranja para empurrar.
Filas de empregados afadigavam-se a repor as provisões nas mesas do bufete. Dezenas de pares de olhos espiavam a sua chegada à porta da copa. Hordas de pretensos esfomeados escudados em pratos vazios preparavam-lhes emboscadas no primeiro ângulo de mesa. Homens da Michelin em banha lançavam-se sobre os acepipes, como gaivotas sobre sobras de peixe, engolindo fatias de salmão fumado enquanto bicavam os adversários mais próximos. Por vezes disputavam a mesma tira de bacon frito ou, em gesto rápido, surripiavam a tosta mista que o vizinho se atrasara a retirar da bateria de tosteiras. Rebatiam com saladas de tomate, de couve roxa, de beterraba. Ou com travessas de ananás, pêssego, melão e maçã.
Ai do que não fosse ligeiro e audaz. Quando chegasse à mesa das carnes frias, já só encontrava um ou outro grão de pimenta; quando chegasse à mesa dos queijos já só sentia o cheiro. O seu empenho incidia então no desenvolvimento de táticas mais eficazes de captura de víveres no fornecimento seguinte.
Por fim, mitigavam a fraqueza com uns doces: potes de compotas, salvas de bolo-mármore, taças de tiramisu, tigelas de mousse de chocolate, travessas de leite-creme.
Quando pareciam saciados, começava a fase de aprovisionamento, porque o dia de visitas turísticas na capital e arredores se adivinhava longo e desgastante. Fileiras de sanduíches recheadas de salpicão, queijo flamengo, pasta de atum, ovo mexido e picles — para desenjoar — alinhavam-se obedientes em camadas sobrepostas no fundo das malas de mão e das mochilas. Alguns convivas preparavam tantas que se esperava encontrá-los a vendê-las nos pontos turísticos mais frequentados, para pagar a viagem. As que sobrassem ainda deviam dar para acabar com a fome em algum país do corno de África.
Budapeste é bonita, mas o melhor são os pequenos-almoços. Inolvidáveis. Ainda esta noite voltei a sonhar que me deliciava com almôndegas à húngara que apanhava às mancheias. Acordei mesmo a tempo de evitar aquela parte desagradável dos garfos espetados nas costas da mão…

Joaquim Bispo
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Imagem: Josefa de Óbidos, Cesto com bolos e toalha, 1660.

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10/07/2018

A Estátua sem Rosto




O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas «(…) mingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)», mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugurações.
Ribeira de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máquinas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D. Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.
Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câmara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente, alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; el-rei D. Moniz não tem cara nem nariz», o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por ele fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além de uma mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra, não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.
A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
Não — continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram — cavou fundo no grupo de decisão.
Mas, afinal, ganhou? — interveio o repórter.
Não ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos — uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o caracteriza está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
Exatamente! Estes são os caracteres com que se pronuncia D. Moniz.
Não sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da população que não tinha estado presente.
Na verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.
Mas você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr. Albano.
Um espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

Joaquim Bispo

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(Esta ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)

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Escultura: Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).

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10/06/2018

Santos Populares



— Foi aqui que nasceu o António, em 1195, onde está agora esta igreja com o nome dele. — O homem de cabelo crespo e barba alargava o gesto enquanto caminhava. — Uma fidalga deu-o à luz a 15 de Agosto.
Então, por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho? Amanhã. — estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta esbranquiçada.
É o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar cunho religioso a umas festas das colheitas que havia na altura. Mas esta noite é que são as grandes festas populares.
Bonita igreja!
O povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruida através de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas, e pediam umas moedas, como ainda hoje.
Já era venerado!?
Sim, e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns olhares irónicos às suas roupagens.
Ó, João, ele teve alguma formação? — perguntou o mais velho.
Estás mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá era bom!
Mas ele não era franciscano?
S. João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
Pedro, ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos que foram evangelizar os gentios de Marrocos e que foram mortos pouco depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos. Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
Ah, sim?! — O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras do companheiro.
Agora entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
Rumou também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
Bela terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas agora ninguém me tira Roma!
Os ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou fama a converter heréticos.
Já havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a procurar mesa e perguntou a S. Pedro:
Sentamo-nos?
Sim, sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se, pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
Estou impressionado! — S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
E ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em todos os bairros e faz-se uma competição de danças ao som de marchas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça para baixo ou roubam-lhe o Menino. — S. João não se continha e ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando lhe acontecia tal percalço. — Os pedidos são tantos e, às vezes, tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S. Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
Também ouvi dizer que fez carreira militar…
Essa é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma aparelhagem começou a tocar uma música popular.
Tratam-no bem na arte? — S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter parte das largas mangas no prato.
Sim. Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
Aos peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
Sim, mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos “irmãos pássaros”!
Acabada a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S. João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe muito sério:
Pedro, tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S. Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam um táxi e S. João acompanhou S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
Dá cumprimentos ao Chico! Diz-lhe que vou visitá-lo a Roma assim que acabarem as festas por aqui.
Depois, rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto. Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha pressa, que ainda faltava uma dúzia de dias para as festas em sua honra.

Joaquim Bispo

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Imagem: Nota de vinte escudos, 1964, Portugal.

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