Nos
tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos
homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente.
Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as
nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da
qualidade do argumentista da nossa realidade.
Há
tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter
filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais
cruel das respostas: o marido era infértil.
Para
qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu
físico, genético, ficará por ali, não se prolongará para lá
dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar
o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais
identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde
der: adoção,
barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última
alternativa, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi
isso que os membros do casal alemão decidiram —
ele de ascendência grega, 29 anos, e ela de idade semelhante —,
mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um
vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto
de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil.
Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de
dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será
que, a partir daí, o casal entregou
o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o
esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse
porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o
combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural,
três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não
sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos.
Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça
que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças
de responsabilidades futuras, é a ambição de todos os homens, pelo menos dos imaturos. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão
excitante perspetiva. Além disso, consta que a senhora é uma
estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar
2000 euros ao inseminador que, com 34 anos, não devia precisar de tal
incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que
obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na
verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele
argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do
propósito das inúmeras saídas noturnas do marido.
Neste
ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha
o melhor trabalho do mundo; a vizinha, sua mulher, confortava-se com a entrada
da receita extra; o grego esperava ter em casa, brevemente, uma
criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente,
ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a
impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais, e com dupla garantia para a cria. Pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a
ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade
biológica, em caso de futuras carências económicas da criança —
que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na
contabilidade genética inconsciente de cada um —
que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi
neste ínterim que Zeus —
quem mais? —
interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado.
Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil
compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais
poderoso, ou talvez tenha ficado roído de inveja da sorte olímpica do
vizinho —
porque
ele, apesar de ser o todo-poderoso
deus dos deuses, tem de tomar formas
de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou à
deusa que deseja.
Bem
que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a
senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não
merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas
de trabalho, o casal infértil começou a duvidar da eficácia dele para
terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as
habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora
—
também o vizinho era infértil —
só que, desta vez, com consequências ainda mais devastadoras.
O
alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens
para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha
traído, como os seus filhos não eram seus e —
supremo golpe —
não poderia vir a tê-los.
Podemos conjeturar que ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tenha tentado desculpar-se
com Odin, disfarçado de padeiro ou de técnico de televisão por cabo, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu
o divórcio.
Do
casal greco-alemão de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, propriamente dita, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de
resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso
dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um
processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos,
os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo
contrato.
O
vizinho, que também pode vir a precisar, não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra —
salvo seja —
conforme combinado, mas que nunca
garantiu a consecução do projeto.
O
caso estava
para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele
tomámos conhecimento, através do jornal Bild —
porque pela boca de Zeus jamais o
saberíamos…
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Nikias Skapinakis,
Leda e o Cisne
(?), Coleção Berardo (?).
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(Esta
crónica foi publicada no número 27
da revista literária virtual Samizdat, de abril
de 2010.)
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