Todos
chamavam Plantão ao louco da pequena vila do Sabugal. Calcorreava a
povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com
exatidão. A última pessoa que lhe ouvira a voz, num dia mau de uns anos antes, desenganara-o:
— N'o há cá pão pa malucos!
Conhecido de todos, entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se
a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão,
direito e parado. O visado, geralmente, puxava
de uma moeda e dava-lha. Plantão recebia a moeda e retirava-se, com
um ligeiro aceno de cabeça. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem ninguém conseguir
confirmar, que tinha sido seminarista e tinha ficado enlouquecido
entre os ditames da religião católica e os textos dos filósofos
niilistas. Dizia-se.
Era
uma figura que, pela sua presença constante, já não se estranhava
e até se respeitava, na sua loucura serena. Mas, certa vez, aí por
fim de janeiro, um rapazote de nome Inácio, querendo divertir-se à
custa dele, trouxe um velho violino sem cordas que encontrara no sótão e
deu-o a Plantão. Este ficou demoradamente a olhar para o instrumento, talvez relembrando antigas aulas de música, e passou a transportá-lo debaixo do braço. De vez em quando,
sentava-se na berma do jardim, colocava o violino na posição de
tocar e começava a menear a cabeça como se imaginasse as notas. E
ficava lá horas esquecidas.
Foi
desde essa altura, também, que o rapaz que lhe dera o violino, o
Inácio, começou a desatinar, a dizer que ouvia música na sua
cabeça e que era o Plantão que a provocava. Todos se riram dessas
declarações e gracejaram, dizendo que estava a ficar mais louco do que
o pobre Plantão.
No
sábado de Entrudo, Plantão transformou-se. Talvez influenciado
pelos vários mascarados que, sozinhos ou em grupo, percorriam
as ruas da vila, dizendo pilhérias e fazendo momices, Plantão passou
toda a tarde na rua principal, para trás e para a frente, a fingir
que tocava, sem arco, o seu violino sem cordas. Toda a gente se
surpreendeu com a transformação exuberante de Plantão, mas
acharam-lhe piada. Os mais novos, vendo nele um alvo fácil,
começaram a bombardeá-lo de longe com bolas de farinha e a
esguichá-lo com pistolas de água, que ele parecia ignorar, mas
foram rapidamente censurados pelos mais velhos. Pelo fim da tarde,
surgiu Inácio, de rosto enlouquecido, a berrar para o Plantão
parar, e a tentar arrancar-lhe o violino, intento de que ele se
esquivava. A cena, de tão concertadamente burlesca, levava os
transeuntes às lágrimas.
A pantomima
repetiu-se na tarde soalheira de domingo, entrecortada, uma ou outra
vez, pelas contradanças bem ensaiadas, que se exibiam nos largos e
nos cruzamentos das ruas, nesse longínquo início dos anos 60. As pessoas, agora, em vez de rirem, paravam a apreciar o rigor gestual e o espetáculo fisionómico
do violinista fictício. Inácio, não faltou, mas começava a deixar de ter piada, tão
deprimente era a sua cara, chorando e implorando para que Plantão
parasse de tocar.
Segunda-feira
fez-se intervalo nas brincadeiras, exceto Plantão que passou a tarde
“a ensaiar” na berma do jardim. Inácio não apareceu. Foi visto a vaguear, de olhar alucinado e mãos nos ouvidos, pelo caminho enlameado de uma ermida dos arredores.
Terça-feira,
Plantão foi a grande atração do Entrudo da vila. Parado e aprumado no centro do largo principal, revestido de uma dignidade
que metia respeito, deu o concerto da sua vida. Exibia tais meneios de corpo, tal virtuosismo de gestos e expressões, que
só faltava mesmo ouvir-se a música. No entanto, um ex-sargento que
tocara na banda da Armada, disse que reconhecia uma das músicas que
Plantão parecia tocar. Foi a apoteose. Toda a tarde Plantão tocou para quem o quis ver. De
Inácio, nem sinal.
Quando
as vizinhas se encaminhavam para a missa das sete, já em
quarta-feira de cinzas, depararam com Inácio caído junto à porta
da igreja a esvair-se em sangue. De cada ouvido ensanguentado, sobressaía uma cavilha de violino.
Joaquim Bispo
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Imagem:
Amadeo de Souza-Cardoso, Música
Surda, c.
1914–1915.
Coleção
Particular [Até
26/2/17, no Museu do Chiado, Lisboa]
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(Este
conto foi publicado no número 26
da revista literária virtual
Samizdat, de
março
de 2010.)
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