Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.
Alvorada
O
mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados,
sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se,
cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de
branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só
o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.
Então,
nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma
singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma
nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua
essência e formou um pensamento.
E
um manto verde cobriu a Terra inteira.
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Crepúsculo
— As
informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu
variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades
de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a
atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando
penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua
libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a
evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que
devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto
vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de
chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação
infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que
delas se alimentavam. O calor tornou a vida
impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares.
Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e
escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de
muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50
milhões que restam — retiraram-se para junto
dos polos. Creio
que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.
Joaquim
Bispo
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(Estes
minicontos foram publicados no número 15 da revista literária
virtual Samizdat, de abril de 2009.)
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