Há
dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o
sabe tarde de mais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me
contou o que se segue:
Foi
aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo
colega da Secundária, a quem na altura toda a gente chamava
«Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de
regozijo adequadas a um desencontro de mais de vinte anos, António
fez a pergunta que o perdeu:
— Então,
vai tudo bem contigo?
Gustavo,
o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes,
sorriu tristemente, antes de desenrolar o seu manto de frustrações
e infelicidade:
— Sabes
lá?! Não tenho sorte nenhuma. Tudo me corre mal.
— Não
me digas! Não tens trabalho? — preocupou-se António.
— Tenho,
mas mal dá para sobreviver. Sou o responsável pela fotocopiadora do
meu serviço...
— Mas
isso deve dar um ordenado muito baixo! Não tens tentado progredir?
— Aquilo
lá é um covil de mafiosos. Fazem o joguinho só entre os
amigalhaços.
— Mas,
tens concorrido? Ou nem concursos fazem?
— Concorrer?
Para quê? Está tudo cozinhado. Uma vez experimentei, mas disseram
que eu não tinha perfil.
— E
tu, tens-te valorizado? Voltaste a estudar? Fazes cursos
profissionais?
— Tenho
lá dinheiro para isso!
— Mas
o teu serviço não faz cursos de atualização e aperfeiçoamento?
— Falaram-me
nisso duas vezes, mas já sei como é. É só para justificarem meter
o sobrinho do chefe ou o primo da secretária. Para fantochadas
dessas não contem comigo!
António
começava a ficar sem ideias para melhorar a vida do amigo.
— Tens
filhos, casaste?
— Sim,
casei, mas não correu bem. Seis meses depois de casarmos, ela voltou
para casa da mãe dizendo que «preferia não voltar a ver homem
algum, do que viver com um falhado destes». Diz-me se isto não
magoa! A minha vida é um vale de lágrimas. Mas ela tem razão, eu
não presto — choramingou Gustavo.
António
sentiu-se desconfortável com o amigo a lacrimejar à sua frente.
Olhou em volta a medir o impacto nos presentes.
— Olha,
Gustavo, anda daí apanhar ar. Claro que tu tens valor, toda a gente
tem.
— Não
sei, António. Os outros passam-me sempre à frente. Nasci para
sofrer.
— Nada
disso. Só precisas é de um empurrãozinho. Amanhã podes ir à
baixa, aí às dez horas? Vai ter comigo que eu vou ver o que se pode
arranjar.
No
dia seguinte, Gustavo apareceu às dez e meia.
— Eh,
pá, desculpa. Não estou habituado aos transportes cá para baixo.
— Tudo
bem. Olha, estive a falar aí com um diretor, disse-lhe que eras um
gajo porreiro, a ver se te arranjava qualquer coisa para começar,
mas que fosse melhor do que responsável da fotocopiadora. Ele disse
que estão a precisar de um operador, só para meter dados, para já.
Sabes Excel? Aquelas folhas de cálculo do Office — especificou
António, ao ver a cara de incompreensão do amigo. — Informática…
— Ah,
não; nunca liguei a computadores.
— Não
faz mal, eu dou-te uma ensaboadela. É muito intuitivo. Não podes
meter férias lá nesse emprego para vires uma semana à experiência?
Enquanto
Gustavo não conseguia um tempo, foi aprendendo uns rudimentos de
Excel no computador do amigo. Quando ia lá a casa, tecia sempre
comentários elogiosos às pinturas de António, que este tinha
espalhadas pela casa.
— Tu
és genial! Eu também gosto de pintura mas não tenho jeito nenhum.
— Já
experimentaste alguma vez?
— Sim,
uma vez comprei umas aguarelas no supermercado e estive a pintar, mas
saiu uma borrada…
— Mas,
se gostas, porque é que não vais para um desses cursos de pintura,
que até as juntas de freguesia têm?
— Isso
é um dom. Ou se nasce com ele ou não.
— Olha
que eu melhorei bastante nesses ateliês. Dizem que uma obra é muito
mais transpiração do que inspiração. O jeito melhora com a
prática. E as técnicas ajudam.
— Ná,
não é para mim. Eu escrevo é uns poemas e uns contos. Já tenho uns sete ou
oito. Estão lá arrumados numa gaveta.
— A
sério? Gostava de ver isso!
— Não,
não! Não estão grande coisa. Não tenho coragem de os mostrar a
ninguém. São só para mim.
— Se
quiseres publicar, terás que os mostrar a alguém… — ironizou
António. — E escrever muitos mais. Os escritores conhecidos dizem
que escrevem todos os dias.
— Gostava
de ser escritor, mas não tenho muita pachorra para escrever. E,
mesmo quando estou entusiasmado, às vezes bloqueio, por não saber
muito bem o que hei de escrever e como.
— Mas,
se achas que gostas de escrever, porque é que não investes nessa
área? Mesmo que seja só para teu prazer. Quando se anda satisfeito,
até a vida profissional corre melhor. Há muitos livros práticos,
há workshops, há clubes de leitura. E há as faculdades.
Não fazem escritores, mas fornecem ferramentas muito importantes.
— Tirar
um curso? Estás parvo! Não tenho dinheiro para isso, nem estou para
passar anos a polir os bancos da universidade só para escrever.
Quando quero, escrevo, mesmo que não saia muito bem. Acho que é uma
questão de sensibilidade, mais do que técnicas ou conhecimentos.
— Eu
só queria ajudar! — arrependeu-se António.
Uns
tempos depois, Gustavo chegou a fazer a tal experiência na empresa
onde António trabalhava, mas não passou de uma semana. O diretor,
de mãos na cabeça, veio ter com António, queixando-se que o amigo
ficava parado a olhar para o ecrã, que introduzia dados trocados,
que não tinha apetência por conhecer novas funcionalidades do
programa. Pediu desculpa, mas que assim Gustavo não podia ficar.
Quando
António comunicou a decisão ao amigo, este mostrou-se muito
abatido:
— Comigo,
corre sempre tudo mal. Eu não te disse que não tenho sorte nenhuma?
Felizmente, posso voltar para o mesmo trabalho com a minha
fotocopiadora, que essa conheço eu bem. Mas já me disseram que o
meu chefe soube desta escapadela e me vai cortar as horas
extraordinárias. Já viste a minha pouca sorte?!
— Eu
só queria ajudar! — desculpou-se António com ar pesaroso, mas por
dentro ria impiedosamente.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
António Dacosta, Serenata Açoriana, 1940.
Centro
de Arte Moderna / Gulbenkian, Lisboa.
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(Este
conto foi publicado no número 25 da revista literária virtual Samizdat, de fevereiro de 2010.)
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