Deolinda
obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho
de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já.
Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez
inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as
aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair
de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros
―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma
maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava,
além de aproveitar para espreitar umas montras e, sobretudo, ver
gente. O regresso, a subir, tornava-se um pouco penoso, sobretudo se
exagerava no peso.
Falava
a todas as vizinhas, mas demasiada proximidade incomodava-a, de
modo que não frequentava a casa de nenhuma, nem convidava ninguém
para a sua. Encontrava umas com os netos, outras a passear os cães.
Rejubilava sinceramente com os progressos das crianças,
cada uma já com personalidade própria, desde pequenas. À baila
vinham sempre as queixas das descuidadas noras ou dos cabeças-no-ar
dos filhos, mas sempre lhe parecia que todos os trabalhos que os netos exigiam eram largamente
compensados pela alegria de os mostrarem e se
envaidecerem com o êxito dessa exibição. A ela restava esperar ― já que o filho casara havia meses ―, mas também desesperar, porque ele e a jovem mulher tinham ido
viver para os Estados Unidos.
Duas ou três vizinhas ― todas viúvas, como ela, por sinal ―
enganavam a solidão com a companhia de um cão, mesmo que também
recebessem a visita esporádica dos netos.
A
Dona Ludovina “herdara” o cão do marido. Ele é que gostava de
animais e durante anos passeou um caniche preto.
Um dia o dono não acordou e ela assumiu a responsabilidade do bicho,
que, coitado, durante meses, em vez da azáfama habitual na espécie
de cheirar e marcar território no passeio, manteve uma atenção
angustiada a todos os homens com que se cruzava, na expectativa de
reencontrar o dono. A exigência de tratar do animal e de o
levar à rua três vezes por dia ajudaram-na, possivelmente, a seguir
em frente na nova condição de viúva.
Outra passeadora de cão ― a Dona Clara ―, viúva há mais de vinte
anos, executava apenas a
rígida rotina de casa–trabalho–casa, cinco dias por semana, desde que o filho casou e saiu de casa.
Mulher austera, amiga do rigor e da franqueza, tornou-se ainda mais
antipática quando se reformou. Era uma administradora do prédio
eficiente, que não descuidava reparações e limpeza, mas condómino
que se atrasasse no pagamento da respetiva comparticipação podia
estar certo de ouvir um remoque. O filho, percebendo
talvez o problema, ofereceu-lhe um pequeno cão de pelo curto, tipo
podengo. Foi remédio santo. A exigência de levar o bicho à rua, o
incontornável contacto com outros passeadores de cães e,
certamente, o adoçamento que um animal de companhia traz a um ser
humano transformaram-na, visivelmente. O “bicho de mato” que
tinha sido transmutou-se numa pessoa que se permitia ficar no passeio
a conversar com outras, a rir até, revelando uma simpatia simples, desconhecida nela, até então.
Foi
Dona Clara que primeiro lhe sugeriu um cão para companhia. Deolinda,
porém, não se via a ficar dependente de um animal, a ter de o levar à rua, quando lhe apetecia ficar simplesmente a ler ou a ver televisão. E
depois o cheiro! Ela até gostava de animais, pois fora criada na
província, com pai caçador, mas em sua casa sempre os cães tinham
sido confinados ao amplo quintal. Todas as casas que conhecia com
cães tinham um indisfarçável cheiro a covil.
Durante
algum tempo, depois de se reformar, Deolinda ainda manteve contacto
com as antigas colegas. Uma vez por mês, em média, saía com uma
das outras reformadas e, de longe em longe, acedia ao convite de um
almoço conjunto. Infelizmente, duas delas morreram e o grupo acabou por espaçar cada
vez mais os encontros.
Chegou
a inscrever-se na universidade sénior, para manter algum fluxo de
aquisição de saber, mas desiludiu-se. O mulherio parece que só lá
ia pela conversa e mantinha um zunzum no ar durante as aulas, quando
não chegava a atender telemóveis. Assim, não! Preferia ficar em
casa a ler.
Lia
muito, tanto que as estantes de casa estavam a abarrotar, mesmo
depois de levar caixas com livros para a terra. Começou a frequentar
a biblioteca municipal, que era uma alternativa quase perfeita. Tinha
um acervo extenso e variado, tanto de diversos livros recentes, como
dos clássicos, que muitas livrarias se abstêm de ter.
Nas
últimas férias ― se se pode falar de férias em relação a uma
reformada ―, além de uma semana na terra, tentou umas surtidas às
praias de Lisboa, mas a confusão que tais multidões causavam,
incomodavam-na, sem falar das angustiantes filas do trânsito no
regresso. Nos anos anteriores ainda passara uns dias numa praia
sossegada, com o filho, mas agora...
Fazia-lhe
falta a proximidade do filho. Estava muito constrangida pela
perspetiva de passar o Natal sozinha. Era o primeiro Natal sem ninguém. O marido morrera havia oito anos e agora também
o filho se afastara. As férias, enfim, mas o Natal! Onde o passar?
Como? Com quem?
Em
cima da data, resolveu passá-lo na terra ― uma aldeia do interior
beirão. Em vez de levar o carro, preferiu meter-se num autocarro
Expresso e ir tranquilamente sentada a ver a paisagem e a recordar os
tempos de faculdade, quando ia à terra todos os quinze dias.
Sentia-se um pouco triste e resolvera aceitar esse estado de
espírito, interiorizando-o e cultivando-o com recordações dos
tempos felizes. Por isso decidira passar o Natal na terra.
A
casa que ali mantinha, e aonde ia umas três ou quatro vezes por ano,
pareceu-lhe mais silenciosa que habitualmente. Arejou-a, varreu-a e
deu-lhe uma arrumadela. Cada móvel, cada divisão, traziam-lhe à
memória um episódio conjugal, uma piada do filho. Fez um chá,
comeu umas tostas com compota e deitou-se. A cama parecia molhada, de
tão fria. Embrulhou os pés num xaile velho e demorou ainda um bom
bocado a adormecer.
O
dia seguinte, véspera de Natal, amanheceu escuro e frio. Deolinda
foi à mercearia comprar leite, pão e umas coisas para o jantar. O
almoço foi frugal e saiu a seguir, para tomar um descafeinado. Não
encontrou ninguém conhecido, só gente nova. Em tempos, não dava um
passo sem encontrar alguém de família.
Voltou
para casa, sem saber como ocupar o tempo. Se calhar, não tinha sido
boa ideia vir este ano à terra! Deambulou pelas divisões
silenciosas, a olhar as fotografias cinzentas: aqui, jovem, com o
marido, no casamento de um primo; ali sorridente com “os seus homens”, numa visita a Cáceres; mais além, o pai aprumado numa farda do tempo da tropa.
Lá
fora, começara a cair uma chuvinha miúda. Deolinda ficou um bocado
a olhar a rua vazia e a ver as gotículas de chuva a formarem
pequenos veios na vidraça. Assim eram os seus dias a escorrerem, não
sabia para onde.
Cozeu
umas batatas com grelos e uma posta de corvina. Há dez, quinze anos,
teria feito também uma boa sopa de feijão com hortaliça, uma perna
de borrego e umas rabanadas. Agora, tudo lhe fazia mal. Comeu o peixe
com pouca vontade. Não lhe sabia a nada. Deixou metade da posta.
Acendeu
o lume na lareira da cozinha e sentou-se a olhar as línguas das
chamas que consumiam mansamente os cavacos com que as ia alimentando.
Assim a sua vida se ia consumindo, placidamente, sem dramas, sem
objetivo. Aguentou-se por ali a cabecear, a fazer horas para a missa
do galo.
Junto
ao adro, o cheiro a madeira queimada, tão familiar, fê-la
lembrar-se dos antigos natais, quando ir conviver e aquecer-se junto
à fogueira de Natal era uma festa. Passou pelo bando de rapazes que,
indiferentes à chuva miudinha e gelada, mantinham uma algazarra
regada a vinho, junto aos madeiros em chamas, entrou na igreja, logo
reconhecida, e sentou-se junto à coxia.
Lá
estavam, parados no tempo, os santos da sua meninice ― Santo
António, a Senhora das Dores, São Sebastião, o Coração de Jesus.
Durante toda a missa foi recordando alguns episódios ligados a esta
igreja da sua terra ― o crisma, o casamento da tia Matilde, o
batizado do primeiro sobrinho, um dos primeiros afogueamentos, quando
reparou que um rapaz mais velho olhava para ela de uma forma
especial.
Quando
o celebrante levantou a hóstia, Deolinda sentiu-se muito
desamparada. Intimamente, implorou:
― «Sejas
Tu quem fores, ajuda-me; ajuda-me, por favor!»
A
missa acabou. Deolinda ficou ainda um pouco, ajoelhada, em
recolhimento. Aproveitando a porta aberta pelas pessoas que iam
saindo, entrou na igreja um gatinho ainda pequeno, molhado e
enregelado, a abrigar-se do tempo hostil. Era malhado de preto e
branco, parecia confuso e miava debilmente, entre o receio e o
queixume. Foi caminhando pela coxia central, enquanto o seu miado se
tornava mais suplicante, sobressaindo por cima da vozearia lá de
fora. Deolinda ouviu-o, mas, muito imersa no seu espírito, demorou a
surpreender-se. Quando olhou, o gatinho parara a olhar para
ela e a miar. Deolinda ficou paralisada a olhar para aqueles olhos azulados e
vítreos, como se lhe custasse a perceber o que via. Depois, pegando
no gatinho, aconchegou-o contra o peito, por dentro do sobretudo, e
desatou a soluçar convulsivamente. As lágrimas rebentaram
incontroladamente, como se estivessem há muito represadas.
Pouco
depois, o gatinho, confortado pelo calor do corpo de Deolinda,
começou a ronronar. Deolinda olhou em volta. Cristo crucificado
estava desfalecido no seu martírio, a Senhora das Dores e São
Sebastião olhavam os céus. Deu com os olhos nos olhos do Menino
Jesus, que estava ao colo de Santo António e sorria. Pareceu-lhe que
afastou o olhar, quando ela o fixou, e que a olhava, se ela desviava
o olhar.
Entretanto,
alguém tocou no braço de Deolinda:
― Então,
vizinha, deixe lá as tristezas, que hoje já é dia de Natal. Venha
comigo, que eu também vou para os seus lados.
Lá
foi Deolinda, sem ouvir a conversa da vizinha, com o gatinho junto ao
peito, tão apaziguada como nos dias felizes, tão realizada como
quando regressara a casa com o seu filho acabado de nascer, ao colo.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto obteve um 7º lugar no Concurso de Contos e Crónicas da
Universidade Metodista de Piracicaba, em 2011, e foi publicado, em
versão mais pequena, no número 24 da revista literária virtual
Samizdat, de janeiro de 2010, com o título “O Natal de Josefa”.)
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