O
pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos
teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito
intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O
cliente já devia ter ido buscar o quadro, mas não
havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não
que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato
inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos
aspetos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das
suas obras mais conseguidas.
Desde
novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de figuras, umas
cândidas, outras austeras, umas históricas, outras, que podíamos
esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável.
Manobrava os pincéis com destreza, como se já tivesse muitos anos
de prática. Quase sempre fazia as misturas das cores na paleta mas,
em obras de maior arrebatamento, aplicava as cores puras diretamente
na tela, em empastamentos de força cromática avassaladora.
Com
o tempo, percebeu que o retrato próprio era das imagens que as
pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género,
adotando Columbano como referência. Ao seu “atelier”
da
rua de S. Paulo, em Lisboa, acudiam militares, magistrados,
catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em fundo escuro e damas
vistosas em “toilettes”
requintadas nasciam nas suas telas. Os olhares eram sempre
inteligentes, a pose sempre nobre e elegante.
Ultimamente,
a clientela já não abundava mas Júlio, de sessenta e três anos
escorreitos, gostava do que fazia e tencionava continuar a trabalhar
indefinidamente.
O
último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a totalidade do
trabalho, mas Júlio aceitara apenas metade; o resto seria pago
contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre
pontualmente às nove da manhã, no seu fato preto impecável, e
mantinha-se firme na pose escolhida, durante as duas horas da sessão.
Era de poucas falas, mesmo no pequeno intervalo que faziam a meio.
O
rosto, que era a parte mais delicada e a que dava mais trabalho, foi
nascendo, mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a
pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e
espessas. Ao fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do
juiz acenderam-se na tela como se fossem reais. Pouco depois, Júlio
disse ao cliente que só faltava rematar os fundos e que podia ir
buscar o retrato daí a uns dias.
Tinha-se
passado mês e meio e o juiz não aparecia.
O
retrato estava muito realista. Júlio olhava-o e não conseguia
evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não
ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada, rabiscados num
papel. Pensou em telefonar-lhe, mas das Informações disseram-lhe
que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o
cliente, pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá
chegado, foi perguntando até encontrar a casa do juiz. O que
descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente,
ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem ele nem ninguém.
Perguntando à vizinhança, soube que a casa estava abandonada desde
que o juiz morrera, havia quinze anos.
Júlio
deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou, sem tomar conta das
horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair. Se havia
coisa com que não sabia lidar era com o sobrenatural.
Desde
então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a traumática
revelação, só voltou ao “atelier”
uma única vez. Tornar a encarar aquele olhar foi aterrador. Podia
jurar que o juiz o olhava de cenho mais carregado, num misto de
tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a parede, mas
Júlio continuou a pressentir a intensidade do olhar através dela.
Sentiu medo. Saiu rapidamente, ofegante, sem saber o que fazer, sem
vontade de voltar.
Em
casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de pintar. Foi
falar com um amigo, vizinho do “atelier”,
que há tempos se propusera comprar-lho para alargar a sua loja de
aprestos marítimos. Fizeram negócio, depois de o amigo aceitar
ficar também com o recheio.
Júlio
recolheu-se à sua pequena casa de Montemor, sobranceira ao vale de
Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem conseguido.
Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não
consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender
que intuito teve ele, ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o
retrato.
Por
um desses dias, na sua casa de Azeitão, Armando Magalhães
levantava-se da mesa e improvisava um pequeno discurso para uma dúzia
de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
― Meus
queridos, é com agrado e enorme orgulho que celebro convosco a
próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem
sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os
nossos negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora
pode gozar uma bem merecida reforma. Era um grande artista. Vejam
como ele captou o olhar austero do tio ― apontava Armando o quadro
na parede. ― Aliás, quero fazer um agradecimento muito especial ao
tio Jerónimo, pelo esforço que fez de ir todas as manhãs a Lisboa
e assumir tão bem aquela personagem. Sem a sua ajuda, talvez não
tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a
expansão do nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado
tio! E faço questão, é claro, que fique com o quadro. Bem o
merece! De qualquer modo, estamos todos de parabéns. Por isso, peço
que me acompanhem num brinde.
Armando
levantou um copo e pronunciou a fórmula habitual:
― A
família é a nossa fortaleza!
Todos
se levantaram, de copo na mão, respondendo em coro:
― À
família!
O
brinde terminou com uma longa salva de palmas, que comunicou, ao
espírito de cada um, o enternecimento de quem se sabe participante
no bom sucesso de um projeto comum.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto obteve um 3º prémio ex-aequo de um concurso de contos
promovido pelo site Ora,
vejamos…,
em 2007, integrando a respetiva coletânea, e foi
publicado no número 19 da revista literária virtual Samizdat, de
agosto de 2009)
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Imagem:
Columbano,
Retrato
de Abel Botelho [escritor],
1897
Lisboa,
Museu do Chiado (Museu Nacional de Arte Contemporânea)
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