10/01/2025

Fugas

 


O velho repisa, uma a uma, as escadas exteriores do lar de idosos, agarrado ao corrimão e, em passos miudinhos e hesitantes, avança pelo passeio afora. Vejo-o da minha janela, onde costumo postar-me para ter uma ilusão de contacto com o mundo. Não é uma visão invulgar, mas geralmente os velhos saem em grupo acompanhados por duas ou três funcionárias. Vêm apanhar um pouco de ar e de sol na pequena praceta ajardinada onde a autarquia instalou dois bancos de jardim. Creio mesmo que o lar se instalou naquele prédio por causa do esboço de jardim. Bem vejo que a diretora o mostra, quando uma nova família chega à procura de um lugar onde largar o familiar. Constatar que o lar até dispõe de um jardim sempre deve evitar alguns pruridos de consciência.

«Não sei. Parece a nossa rua, mas não tenho a certeza. Ela é que deve saber. Tenho de a encontrar. Não sei se disse que ia à mercearia. Talvez esteja ali à frente.»

Ver um velho a abandonar o lar sozinho espicaça-me a pouca curiosidade que ainda tenho. Estará a fugir? Ou só a espairecer? Tem ar de mais de oitenta anos, está de pijama, com um certo volume na zona da bacia, provavelmente uma fralda de adulto. Pesada, pelo aspeto. No seu passinho miúdo, já percorreu uns cinquenta metros, sem ninguém o travar. Olha decididamente para o início da rua, como quem leva um destino consciente.

«Era ali. Era ali a mercearia. Mas agora não está lá. Como é que isto aconteceu? Se calhar é mais à frente.»

Vejo-o parar e olhar em volta. Andará à procura de alguma coisa? Não andamos todos? Afasto-me da vidraça, para ele não me ver. Pouco depois recomeça a andar. A sua figura um pouco curvada de riscas azuis e cinzentas verticais não suscita a atenção de ninguém. Não passam carros, não há mais pessoas na rua.

«Deve ter ido ao pão. Se lá for antes de almoço, talvez a ti Quitéria ainda tenha. Pão de verdade, de quilo, bem firme. Senão, traz papo-secos...»

Bem faz o velho — pirar-se dali. Imagino que tenha sido bancário, ou empregado de balcão. Há nele qualquer coisa de solicitude. Imagino como se deve sentir desfasado do mundo. Cá fora, todos de olhos metidos no telemóvel, sem respeitar nada, nem ninguém. Lá dentro, só velhos de olhar parado, afundados em recordações. E funcionárias ríspidas e mandonas. Pirar-se, ir por aí afora, encontrar um pouco de coerência no mundo, um pouco de compaixão. Se calhar era o que eu devia fazer também. Estou aqui a fazer o quê? A espreitar a rua, a olhar para as árvores, para os automóveis que não passam.

«Não encontro a mercearia. Acho que vou já para casa. Ela já lá deve estar. Vou-lhe pedir pão com azeitonas — pão de côdea escura, azeitonas grossas retalhadas, a saber a sal.»

Uma funcionária já veio à janela espreitar. Tinha um ar apreensivo. Se calhar já deram pela falta do velho. Como a rua encurva ligeiramente, não conseguiu vê-lo, que já vai lá à frente. Voltou para dentro. Hei-de avisá-las ou deixo o velho escapar? A minha solidariedade vai para o velho. Talvez consiga alcançar o que deseja. Ele que goze uma réstia de ilusão de liberdade! E eu?

«É já ali a nossa casa. Parece, mas não sei bem; está esquisita. Está tudo diferente. Gostava que ela já lá estivesse. Ah, se me tivesse arranjado um pratinho de requeijão morno, com açúcar… Parece que já não o como há tanto tempo.»

E se fazem mal ao velho? É perigoso andar por aí. Não deve ter nada para roubar, mas nunca fiando. Há por aí muita malandragem. Maltratam só pelo prazer de ver sofrer. Se calhar ele ficava mais seguro no lar. Aonde é que ele vai, nesta idade? Agora foi abordado por dois tipos. Espero que não… Não; parece que estão só a conversar. A esta distância, não consigo perceber o que dizem.

O senhor precisa de ajuda? — pergunta um dos rapazes, estranhando as roupas e o ar atarantado do velho.

Simão Cordeiro dá pelo jovem, os seus olhos castanhos orlados de cinzento completam um rosto de desorientação e angústia. A voz sai-lhe sumida:

Quero a minha mãe!

Joaquim Bispo

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Este texto obteve o 1º lugar na modalidade Prosa em âmbito Internacional, no concurso Professor Mário Clímaco / 2019, da ALEPON — Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova — Brasil.

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Imagem: Fernando Namora, Árvores, 1964.

Coleção Casa-Museu Fernando Namora, Condeixa-a-Nova.

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10/12/2024

Uma nova casa para o Homem

 


A comunidade era constituída por doze vizinhos. Habitavam uma encosta suave e viviam de vegetais e de alguma criação. A água era a grande riqueza de que todos careciam. Em estações húmidas, uma única nascente alimentava a várzea. Escorria para uma charca a céu aberto e represava, enquanto a escuridão era vagamente atenuada pela luminosidade espetral que se escapava da imensa bola do planeta vizinho. Em tempos secos, era preciso pôr bestas potentes a puxá-la da fundura do poço adjacente à presa. Quando o Sol se fazia ver, a temperatura subia um pouco e era tempo de libertar a água retida. Seguia por uma levada ao longo de sete ou oito nek, onde se bifurcava. Como se bifurcava em cada um destes ramais secundários e nos seguintes, até atingir as doze leiras dos moradores.

A água era pouca, era sempre pouca. Nunca passou pela cabeça de ninguém um sistema de rega automática — um fluxo contínuo de água para todos ao mesmo tempo. Havia que compartilhá-la à vez. Um único vizinho recebia toda a água que a represa vertia e conduzia-a para a sua plantação. Durante uma lonk completa. Não eram precisos mecanismos complicados para medir o tempo; uma rocha a pique com doze furos fazia a medição com o rigor desejado. Cada vizinho sabia que, quando a luz solar batesse no fundo do seu buraco, era tempo de cortar a água ao vizinho anterior e conduzi-la para o seu campo. Quando a sua vez estava próxima, postava-se a vigiar a pedra da rega. Depois, partia em corrida até ao ponto de corte. Cada gota perdida para o vizinho constituía uma perda para as suas plantas.

Goji andava desconfiado. As tufae de Andi cresciam mais e com mais vigor que as suas. Goji suspeitava que o vizinho trapaceava o sistema. Talvez abrisse a água para si, em período de defeso comum. É certo que, mesmo que não houvesse sol, quando o olho vermelho do grande planeta Zois se mostrava, havia luminosidade suficiente para trabalhar no campo. Embora esse fosse um interdito aceite por todos. Mas há sempre pecadores. Eram conhecidos casos antigos de vizinhos que tinham violado a proibição e tinham sido violentamente sancionados. Talvez houvesse novo pecador na comunidade.

No período carmim seguinte, Goji saiu para os campos. A várzea de Andi estava deserta, mas esplêndida de viço, naquele lusco-fusco rosado. E que bem organizada estava! Talvez a rega nem precisasse de acompanhamento. Goji calculou que aquelas tufae teriam quase o dobro de altura das suas. Admiráveis. Lindas. Pareciam ter sido regadas há poucas lonk. Dirigiu-se para a distante pedra da rega ao longo da vala que abastecia Andi. Umas passadas dadas, percebeu que o rego parecia bem mais seco que a várzea. Voltou atrás e, aguçando o olhar, pôs-se a sondar todo o perímetro do campo de Andi. Nessa altura, uma sombra escureceu por momentos o solo. Voltou-se e avistou uma massa escura e arredondada que cruzava lentamente o céu em frente do olho de Zois, mas que desapareceu daí a pouco. Goji não conseguiu dizer-se o que seria. Sentiu um arrepio. Tinha as suas superstições. Mas o empenho em descobrir o que se passava com a várzea de Andi era mais forte. Pouco depois, descobriu um indício prometedor: um estreito buraco no chão, no limite do campo. Podia chegar água por ali. Mas de onde vinha? E quando?

Daí a várias lonk voltou o sol. Goji batucou fortemente o pote sonante — uma enorme talha de barro seco —, a pedir reunião da comunidade. Iniciada a assembleia, expôs as suas suspeitas e as razões para elas. Começou por ver censuradas as suspeitas e foi acusado de má vizinhança. Convencido dos seus motivos, reafirmou e enfatizou a questão. O grupo acedeu por fim a visitar a várzea de Andi e a verificar o buraco suspeito. O caso revelou-se grave. Depois de sondagens e escavações, ficou a perceber-se qual o esquema fraudulento de Andi: um tubo captava furtivamente um diminuto fio de água no início da levada, de cada vez que a represa abria, e era armazenado numa cisterna subterrânea. Quando se iniciava o período de escuridão e ninguém andava pelos campos, Andi abria essa cisterna para a sua várzea, que estava preparada para uma distribuição uniforme automática.

A descoberta gerou uma violenta resposta do grupo defraudado. O visado ficou lívido ao perceber que tinha sido exposto e as consequências que daí adviriam. Logo ali lhe tolheram os membros e arrastaram-o para a pedra da rega. Um julgamento sumário ditou ser a ela amarrado e açoitado com doze vergastadas de cada um.


A expedição a Europa não era a primeira. Várias outras tinham explorado os satélites de Júpiter, com especial atenção para os que apresentavam água. A de 1989 tinha sido especialmente fértil em dados geológicos, mas agora — 2032 — as preocupações eram de outro tipo: avaliar as condições de habitabilidade, quer de Europa, quer de Io, Ganimedes e Calisto, e iniciar a instalação da primeira colónia terrestre. Os outros satélites não pareciam ter dimensão nem características propícias para uma colonização em massa.

Seis cientistas rumaram a Júpiter — viagem dura, nunca tentada por missões tripuladas. Cinco anos durou a viagem, com rotação de períodos de semi-hibernação induzida. Por fim, à aproximação ao gigante gasoso, todos assumiram a vigília. Depois de umas semanas de órbitas a Júpiter, quatro partiram num módulo intermédio para orbitar Europa e só depois três fizeram a descida numa sonda independente. Todo o cuidado era pouco.

Pousaram a sonda numa zona predefinida, cujos registos indicavam presença de água. Havia esperança que essa provável água tivesse criado condições para o aparecimento de vida, ainda que apenas vegetal ou pré-vegetal. A zona situava-se na face sempre voltada para o planeta gigante, mas que naquela altura não estava iluminada pelo sol. Em coordenação com o membro que ficara em órbita do satélite, os cientistas iniciaram medições e registos. As condições apresentavam-se prometedoras: alguma água, sim, temperaturas baixas, mas não impeditivas de vida, algum oxigénio não biológico. Uns dias jovianos depois, decidiram a primeira saída.

Um casal de cientistas saiu, rodeado de cautelas. A gravidade é baixa, exigiu alguma adaptação. Durante uns dias, fizeram pequenas explorações locais, limitadas em tempo e extensão. Parecia possível a existência de vida. Redobraram cuidados, para perturbarem ao mínimo o que quer que pudessem encontrar. Aos poucos, alargaram a extensão da área explorada. Então, certa vez, ao atingirem o limiar de um vale, confirmaram emocionados o que constituía o objetivo daquela viagem: a existência de vida em Europa. Pequenas áreas planas mostravam-se cobertas do que parecia uma viçosa penugem vegetal. Claramente com acesso a água. Naquele momento de aperto na garganta, só os olhares brilharam, no isolamento relativo dos estanques fatos de exploração. Como conseguiram, comunicaram o achado à cientista, que, na sonda, atenta a uma miríade de pequenos ecrãs, já tinha intuído o que os companheiros tinham encontrado. Logo depois — quase os pisaram —, acreditaram estar perante uma incipiente forma de vida animal: uma dúzia do que pareciam minúsculos pulgões movimentava-se em volta de uma pedrinha pontiaguda, à qual um deles parecia amarrado. Cautelosamente, efetuaram registos visuais, bioquímicos e físicos preliminares, cientes do momento histórico que viviam. Umas horas depois, já a bordo da sonda, lançaram, solenes e orgulhosos, a novidade em direção ao Sol.

Hoje é um grande dia para a Humanidade! — proclamou a bióloga Jennifer, enfaticamente. Depois de uma pausa adequada ao momento, continuou: — Europa possui vestígios de água e revela-se propício à vida. Não devemos esperar encontrar formas de vida inteligente, mas registámos formas vegetais e animais, claramente, elementares... — nova pausa. — A colonização está ao nosso alcance! Um pequeno satélite nos confins do Sistema Solar, uma nova casa para o Homem!

A resposta da Terra, a mais de setecentos milhões de quilómetros, chegou hora e meia depois: um grito em uníssono da enorme equipa em rede protegida por máscaras. Em direto para todos os meios de comunicação mundiais. A ecoar em todos os lares em confinamento social. Um mesmo sentimento de comunhão fraterna e de esperança unia todos os homens. Não havia tempo a perder.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos 22 selecionados para compor a coletânea “O Espantoso Mundo da Antecipação” da Elemental Editoração, Brasil, 2020.

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https://pt.scribd.com/book/464486683/O-Espantoso-Mundo-da-Antecipacao

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Imagem: Henri Matisse, O ramalhete, 1953.

Museu Hammer (Universidade da Califórnia), Los Angeles.

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10/11/2024

Cadeias

 

Em todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para levar a um casamento.

O ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem retorno ganhava o centro da angústia conformada.

Passam dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem, parece mais que justo; resolvem dar-lha.

Inesperadamente, a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la. Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se, conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.

Não te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora: que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.

O sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se retrai:

Não sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives, perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar com esta pulseira, não quero.

Mas porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a própria pulseira. Outra como esta.

Mas eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.

O sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso, quase uma blasfémia ou um pecado.

Tia, não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes honrar a memória da sua irmã — argumenta.

Ela acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.

Que fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro, felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.

Manda escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia, ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que pensar que decidiu.

Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 para integrar uma coletânea literária.

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Imagem:

Topa Topera (Tiago Estrelinha), Mural dedicado à mulher da Nazaré, 2022.

in Jornal das Caldas, 24 de Fevereiro, 2022.

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10/10/2024

O desconhecido

 

As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganhado uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Joaquim Bispo

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Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense uma organização conjunta com a Alma Azul , em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

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Uma versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição (julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view

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Imagem: André Dinis, Muzinga (capa de livro de banda desenhada), 2024.

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10/09/2024

A culpa

 

Quando preparava a torrada do pequeno almoço, no primeiro dia de férias na terra, o homem cortou-se. Aquele golpe trouxe-lhe à memória um longínquo episódio que estava enterrado sob camadas de esquecimento: devia ter já vinte anos quando ele e um dos melhores amigos de então, tinham pela última vez marcado a canivete os respetivos símbolos tribais numa árvore junto à ribeira. Era então a zona de banhos da juventude, sobretudo estudantil, à falta de uma piscina municipal, só construída trinta anos depois. Recorda que, por aqueles dias, alguma coisa se quebrou naquela amizade, mas tem ideia de que nunca chegou a saber o porquê. O que não impediu um sentimento de culpa que permaneceu. Teria sido uma palavra infeliz?; um ato mal-entendido? Talvez uma questão de saias. Lembrava-se que o amigo catrapiscava uma jovem, mas que não levou o intento adiante.

A tropa chegara abruptamente para toda a gente. Cada um seguiu rumos diferentes e nunca mais se viram, nem souberam um do outro.

O homem decide que nessa mesma manhã irá à ribeira, nesta fase de balanços de vida que atravessa.


Há muito que o homem não se aventura sozinho por aquele ermo. Vai contemplando as formas imperfeitas que um falcão desenha no céu luminoso da manhã de agosto, enquanto caminha. Um ténue halo de poeira, que só o falcão vê, sobe do antigo caminho dos moleiros. O caminhante avança resoluto por aquele trilho rural entre muros baixos, alguns derrubados. Passa muito das dez horas e o calor já promete torrar cada vivente. Aqui e ali, giestas e sargaços secos comprimem aquela senda abandonada, até restar quase só uma vereda. Em tempos, passavam por ali carroças e carros de bois; agora, talvez só pequenos rebanhos e algum caminhante desavisado.

O temerário tenciona passar as horas de maior calor no Pego da Azenha, um troço pitoresco da ribeira que desliza, relutante, a uns três ou quatro quilómetros da sua terra. Em adolescente gostava de se refrescar ali, banhar-se, brincar na água. Há quarenta anos, a corrente estava represada e criava uma piscina natural, com a graça de estar pontilhada de rochas arredondadas pela correnteza.

Avista ao longe o vulto de uma criatura que vem na sua direção. Estranha a presença, sente alguma apreensão. A agricultura está extinta na zona, a pastorícia está reduzida a cercados onde o gado fica por sua conta. Quem mais se aventurou por aquele percurso solitário com o calor a tornar-se já desconfortável?

O homem toma consciência do total isolamento em que está mergulhado. Não estava à espera. Apesar de ter sido criado no campo, desde a partida para a tropa que se tornou um urbano-dependente. Já não tem familiaridade com o espaço rural, muito menos com os seus habitantes. Recorda a navalha que todos usam.

Porque foi lembrar-se disso? Não há nenhuma razão para temer outro homem que ande por ali. Em alguns bairros arredados dos centros das cidades, aí, sim, acredita que há que ser cuidadoso. A figura, de ar envelhecido, talvez devido à barba grisalha, caminha com calma, mas determinação, ajudada por um pau tosco.

O visitante abranda o passo, para fazer coincidir o cruzamento com uma zona mais larga do caminho, em que terá havido um charco no inverno. Controla o outro de olhar baixo. Avança pelo carreiro que contorna pela direita a terra seca gretada; o desconhecido pelo outro lado. No ponto em que estão mais afastados, o homem levanta o olhar, sem levantar o rosto; o outro para, mirando o oponente, sem se voltar.

O homem sente um incómodo, um presságio de perigo; parece-lhe reconhecer aquele rosto carrancudo escondido pela barba. Diria que, se fosse mais novo, poderia ser ele próprio. Um arrepio surpreende-o. O olhar do outro é intenso e acusador. Sem palavras, sem ameaças, aquela presença domina-o com as maiores acusações, as mais fundas imputações de culpa. Luta para afirmar, garantir, convencer-se da sua inocência. Em vão. O olhar duro do estranho não lhe dá oportunidades de fuga.

Desculpa! — acaba por articular.

O olhar do outro desarma, acalma, adoça. Baixa por momentos o rosto, depois encara o caminho e recomeça a andar, no mesmo ritmo calmo de antes.

O homem desaba em si. Sente um grande cansaço. Retira-se para debaixo de uma azinheira raquítica que por ali está, senta-se encostado ao tronco e nem dá pelo passar das horas de calor intenso desse dia.

Joaquim Bispo

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Este conto foi lido no programa de rádio de António Serra "Sebenta do Tempo", do passado dia 4 de Outubro de 2024, pelas 11:00 h. Poderá ser escutado na RLX-Rádio Lisboa em: https://rlx-radiolisboa.pt/

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Imagem: Cruzeiro Seixas, Vencedores e vencidos dos combates cerimoniais, não datado.

Proveniência: Coleção Prof. Doutor Rui-Mário Gonçalves.

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10/08/2024

O riso escarninho

 


Na altura, a incriminação não era opção. O meu desejo mais profundo era mesmo matar Estêvão Arunhos, um antigo mestre de obras e meu vizinho do rés-do-chão. A antipatia vinha de há muito, logo desde os primeiros encontros, quando me mudara para aquele condomínio. O seu ar boçal e desdenhoso manifestava-se em comentários mordazes ao meu modo de vestir, nos olhares irónicos, nos risos alarves, quando me via acompanhado. Não havia razões de reparo, a não ser a sua mentalidade retrógrada e fascista.

Durante mais de dois anos, revesti-me de compreensão e paciência, acreditando que o tempo acabaria por levá-lo a perceber que o meu modo de estar e de viver em nada perturbaria o sossego do prédio e o bem estar dos seus moradores. Cheguei mesmo a falar com ele de maneira cordata, apelando para a sua humanidade e para a paz no prédio. Em vão. Até me pareceu que tinha redobrado as provocações e os insultos, quase sempre de maneira indireta, de tal modo que eu não poderia, legalmente, afirmar que me insultara.

Então, um dia, depois de mais uma gargalhada escarninha que muito incomodou o meu novo companheiro, eu, Emanuel Crispim, resolvi abatê-lo. Uma pessoa daquela índole não tinha correção possível, não tinha um suficiente verniz civilizacional que lhe permitisse conviver com os seus semelhantes.

Depois da decisão tomada, comecei por obrigar-me a tomar consciência profunda de que nada podia revelar a ninguém desta minha decisão e das ações que me exigiria. Sabia bem que um segredo mal guardado já levou à prisão e ao cadafalso mais justiceiros pelas próprias mãos do que as investigações policiais. Em seguida, passei a matutar no modo e na arma para o abater. Tinha de ser longe do prédio para, tanto quanto possível, me manter insuspeito. Convinha até que eu arranjasse um álibi, por exemplo, que fosse visto longe do local da execução, na data e hora calculadas.

Ocorreu-me, naturalmente, o óbvio: uma pistola, um local isolado, um tiro à queima-roupa. Tudo isto constituía obstáculos. Teria de comprar a pistola, mas a quem e onde? E o local deserto... Como, se o homem estava reformado e não se afastava de casa mais do que ir ao café e às outras lojas do bairro?

Ao vê-lo entrar na loja de obras e ferragens tive a revelação de qual seria a arma — uma pistola de rebites industrial que comprara um ano antes numa feira de velharias, na rua, só porque engraçara com o potencial concetual da maquineta. Estava guardada na arrecadação, desde então, e ninguém sabia que eu a tinha.

Desde esse momento, tudo começou a encadear-se. A arma, como ferramenta de operários e industriais da construção civil, era a ideal, se eu quisesse simular um suicídio ou uma vingança antiga de algum trabalhador enganado pelo contratador. Então, ouvi uma conversa no café, que me fez perceber que um vizinho de outro prédio fora operário da construção e que também não engraçava com o malfadado Estêvão das obras. Dizia que este lhe ficara a dever umas horas extraordinárias.

Esta nova informação caiu como sopa no mel. A desavença entre eles era conhecida e, melhor que tudo, o antigo operário amanhava uma horta clandestina numa zona próxima, mas bastante escondida pela vegetação local. Uma aproximação furtiva seria fácil para mim. Foi esta diferente exposição a olhares que me determinou a trocar de alvo. Matar este hortelão não me trazia qualquer alívio da vingança, mas permitia-me incriminar o Estêvão, tanto pelo conflito conhecido como, sobretudo, pela tão específica arma do crime. A pistola de rebites era a cara do antigo mestre de obras… E nada me ligava à vítima, nem um prédio comum. Não mataria quem me atormentava, mas ele haveria de bater com os costados na prisão por muitos anos!

A partir daí, a preparação tornou-se bem mais rápida. Escolhi um período em que o antigo operário ainda labutasse na horta — as horas do fim do dia, que, além disso, proporcionavam um lusco-fusco cúmplice — e o Estêvão não pudesse provar que estivera com alguém — costumava recolher antes das seis da tarde e já não saía.

A execução não foi bonita, nem digna de maior descrição. No dia marcado, meti-me pelo arvoredo, bem longe da horta do sacrificado, aproximei-me pelas costas tão silenciosamente quanto possível e, quando já estava a poucos metros, saltei para junto dele e disparei-lhe o rebite na parte de trás da nuca. O homem caiu desamparado sem um ai e eu afastei-me rapidamente, indo sair do arvoredo outra vez lá longe. Mas antes, limpei a arma do crime e atirei-a para um silvado, com a esperança de que fosse facilmente encontrada pela Polícia.

A morte foi descoberta no dia seguinte. A Polícia andou por aí a perguntar informações aos vizinhos, mas não vieram a minha casa. O Estêvão foi interrogado, mas, inexplicavelmente, não foi preso. Os vizinhos foram perentórios a afirmar a profunda inimizade dele com o morto, o que configurava um indício mais do que suficiente para o funesto desfecho, mas a Polícia não pareceu ter ficado convencida.

Durante semanas, nada mais se soube da investigação. Aparentemente, a Polícia tinha dado o caso como “sem pistas” e, provavelmente, arquivaria o processo, mais tarde. O Estêvão continuou a passear-se pelo bairro, para alguma irritação dos vizinhos, e, talvez por isso, deixou de ser provocatório para comigo.

Já andava a ponderar avançar dessa vez mesmo contra ele, embora sem grandes ideias, quando, certa madrugada, a Polícia me entrou porta adentro e me levou preso.

Eu não cabia em mim de perplexidade e acabei por confessar tudo. Mais do que a surpresa da situação, havia perguntas que martelavam na minha cabeça: por que não tinham prendido o Estêvão, mas tinham vindo a minha casa com tal certeza? Tentei que o inspetor que tratara do caso esclarecesse as minhas perguntas, sem sucesso.

Foi por alturas do julgamento que percebi o que tinha acontecido, através dos jornais sensacionalistas: o Estêvão apresentara um álibi — tinha obtido testemunhos pessoais e provas informáticas, com registos de imagem, de que nessa tarde estivera muitas horas num site de encontros masculinos; e eu fora apanhado por uma denúncia: a mais recente visita secreta de casa do Estêvão tinha sido meu companheiro tempos atrás e, coscuvilheiro e metediço, tinha andado a meter o nariz nas minhas coisas e visto a pistola de rebites. O julgamento foi rápido e nem sequer estranhei a dureza da pena de prisão: 25 anos.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra a coletânea Procurados — “policial do ponto de vista do criminoso” — publicada pela editora brasileira Illuminare, em novembro de 2019.

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Imagem:

Peter Paul Rubens, Dois Sátiros, 1618-1619.

Alte Pinakothek, Munique.

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10/07/2024

A pedra

 


No verão, Damião passava o dia na ribeira. Um fio de água, um charco aqui outro acolá; para os seus quinze anos, era o paraíso na Terra. Caçar pássaros com a fisga não passava de pretexto para andar descalço pelas areias sussurrantes, sob a sombra de amieiros e salgueiros. Raios de sol penetravam nas densas ramagens, mas não conseguiam alterar o frescor da proximidade da água.

Silêncio não havia, tampouco ruído. Sons naturais eram a melodia do local: rumorejos das copas verdes, cicios do fio de água em algum socalco entre pedras, um ou outro chilreio. Ao longe, o som cristalino das campainhas dos rebanhos e os cantos de ranchos de mulheres, em trabalhos campestres.

Naquele dia, esta sinfonia em surdina foi alterada por um chape-chape. Damião afastara-se ribeira abaixo para uma zona aonde ia poucas vezes. A uns duzentos metros, havia um pego com uma dimensão que permitia nadar. Era de lá que o ruído vinha. Aproximou-se furtivamente, não deixando que a areia pisada o denunciasse.

O inesperado afogueou-o. Era Delfina, a filha do rendeiro da quinta contígua, um ano mais nova do que Damião, e que ele já não encontrava havia bastante tempo. Espreitada dali, parecia nua, e muito entretida a nadar.

«Caramba! Como está bonita! E nua?»

A curiosidade era bem mais potente do que o respeito devido. Decidiu ficar à espreita até vê-la sair da água. A catraia, no entanto, alongava o tempo de banho. Com o coração a bater, farto de conter o entusiasmo, Damião resolveu acelerar o processo.

Pôs um seixo na fisga, sentiu-lhe a dureza, apontou para uma rocha do outro lado do pego e disparou. A pedra ressaltou no penedo e caiu na água. A miúda parou de nadar, olhou a toda a volta, em alerta. Damião meteu a mão ao bolso e atirou segunda pedra. Desta vez, a menina nadou rapidamente para a margem, apanhou as roupas e correu para casa.

Atento, sem pestanejar, Damião não obteve mais do que um vislumbre fugidio do que queria contemplar, mas que o exaltou até ao êxtase. E nunca mais o abandonou. Anos depois, ao recordá-lo, mete a mão ao bolso e ainda encontra lá a dureza da primeira pedra.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 1º lugar, na categoria Conto, no IV Concurso Literário Internacional Palavradeiros, de Boa Vista, Roraima, Brasil, e integra a coletânea resultante — páginas 24 a 25:

http://arteleituras.blogspot.com/2019/12/antologia-do-iv-concurso-literario.html

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Imagem: Menir do Outeiro, c. 4000–2500 a.C.

Altura: c. 5,6 metros. Diâmetro: c. 1 metro. Peso: c. 8 toneladas.

Reguengos de Monsaraz.

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