As
nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e
desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural
em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio;
só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar.
Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus
pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê.
Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece,
talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta
metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e
vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina
sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com
problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração,
cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá
notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do
pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta
quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o
primeiro dia.
Há
uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do
seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois
torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira,
caminhando.
Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz
branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara
que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.
Mário
já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões.
Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é
automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés
caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma
pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não.
Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.
— Já?
— lançou, em tom dorido, ao desconhecido.
Este
olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.
— Em
breve!
Lá
à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma
canção de hossanas
à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao
estranho:
— Podes
dizer-me antes o que há do lado de lá?
— Nada
te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.
— Não
sabes ou não queres dizer?
— Eu
nada sei.
— Se
nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.
— Eu
não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.
Mário
calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe
interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia
descansar.
O
trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e
agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono,
mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos,
chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa
antes de se deitar.
Depois
de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de
convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o
tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de
sono descansado.
— Queres
jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado,
frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.
— Não
me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça
para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes
o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá
uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são
exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne
o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse
desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo
trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.
— O
tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma
proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se
perderes...
— Por
uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável?
Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos,
ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue
esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não
se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que
ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?
— Fazes
tantas perguntas...
— Porque
é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos
são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te
escapa?
— Também
se chama mortais aos viventes…
A
noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não
conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques
recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas
que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente
durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem
os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que
já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já
tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida.
Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E,
de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme
injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das
pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto
tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou
tudo não passava de acaso?
Na
outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.
A
alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal
refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua
mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço
apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de
alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa
dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe
o peregrino de branco.
— Pode
ser hoje? — indagou, cortês.
Mário
não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.
— Deixa-me
chegar a Fátima. Talvez a
nossa senhora interceda
por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há
deus, não há?
— Faz
diferença?
— Deve
haver;
senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso
íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?
— Eu
nunca o vi.
— Será
possível que esta indelével impressão íntima não passe de um
mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso,
por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma
entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?
— É
possível...
— É
uma grande ironia,
se não há deus.
E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se
esconder num misto
de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não
responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das
nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a
dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual
seria então a razão disto tudo?
— Essa
lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.
— Como
é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um
sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar
em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas
tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é
possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não
satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de
verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal,
sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não
responde ele às nossas perguntas?
— Talvez
seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.
— Oh,
deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina
de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?
— Eu,
pelo menos, sou evidente e incontornável.
— E
se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos
teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são
imortais.
— Até
que nos encontremos…
— Oh!
Não se pode falar contigo.
Mário
sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios
físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes
questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a
mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume
da noite.
A
dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a
enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de
reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais
facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois
dias que ainda durou a caminhada.
— Então,
ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à
saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!
— Então,
não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário,
fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.
— Vejo-o
tão calado...
— Também
nunca fui muito reinadio!
O
velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não
se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe
mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras.
Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o
desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas
Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.
Os
últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente
ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar
da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas
dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um
atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à
frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário
esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se
teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando
mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa,
em vez de um ancião esquálido de branco.
A
entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de
euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado.
Abraçaram-se emocionados, improvisaram
mesmo uma dança de roda, num
estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada
multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e
sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse
ganhado
uma segunda vida.
A
poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana,
parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia
mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse
todo o tempo do mundo.
Joaquim
Bispo
*
Este
conto foi apresentado
pela primeira vez na Festa do Livro do
Centro Artístico Albicastrense —
uma
organização conjunta com a Alma Azul —,
em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade
Sénior Albicastrense).
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Uma
versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição
(julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book
(páginas 85 a 88):
https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view
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Imagem:
André
Dinis,
Muzinga
(capa
de livro de banda desenhada),
2024.
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