10/05/2016

O milagre do sol



Nos nossos tempos, muito afastados dos bíblicos, não acontecem milagres. Como se as entidades sobrenaturais estivessem ausentes ou imóveis e silenciosas. Quase todos os milagres ocorreram há muito tempo e os raros que nos chegam referem circunstâncias pouco verificáveis e testemunhos pouco representativos. Nas nossas sociedades racionalistas, chegamos a sentir a nostalgia de viver situações como a de Abraão ver entrar três anjos tenda adentro, ou ver Cristo dar de comer a cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, ou assistir à revelação do anjo Gabriel a Maomé. A mais recente e importante manifestação do sobrenatural que conheço é a aparição da Virgem aos pastorinhos em Fátima. Em que só Lúcia, uma menina de 10 anos, garantiu que A viu. Aconteceu, no entanto, um fenómeno extraordinário relatado pelos jornais e visto por muitas das cinquenta mil pessoas presentes, o que deu dimensão às aparições, em si: o milagre do sol, na sequência da aparição de 13 de outubro de 1917, há quase cem anos. Como eu gostaria de lá ter estado!

Segundo uma testemunha que na altura tinha nove anos, «eu olhava fixamente o astro; pareceu-me pálido e privado da sua deslumbrante claridade; dir-se-ia um globo de neve girando sobre si mesmo. Depois, subitamente, pareceu descer em ziguezague, ameaçando cair sobre a Terra. (…) Durante os longos minutos do fenómeno solar, os objetos colocados perto de nós refletiam todas as cores do arco-íris… os nossos rostos ficavam ora vermelhos, ora azuis, ora amarelos. (…) Ao fim de dez minutos, o Sol retomou o seu lugar, da mesma maneira que dali tinha descido, sempre pálido e sem luminosidade.»

Outra testemunha disse: «O Sol começou a bailar e a dada altura pareceu deslocar-se do firmamento e em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós.»

Outra, ainda: «coisa mais espantosa era poder olhar para o disco solar por muito tempo, brilhando com luz e calor, sem ferir os olhos ou prejudicar a retina. [Durante este tempo], o disco do sol não se manteve imóvel, teve um movimento vertiginoso, não como a cintilação de uma estrela em todo o seu brilho, pois girou sobre si mesmo num rodopio louco.
Durante este fenómeno solar, que acabo de descrever, houve também mudanças de cor na atmosfera. Olhando para o sol, notei que tudo se escurecia. Olhei primeiro para os objetos mais perto e depois estendi a minha vista ao longo do campo até ao horizonte. Vi que tudo tinha assumido cor de ametista. Os objetos à minha volta, o céu e a atmosfera, eram da mesma cor. Tudo perto e longe tinha mudado, tomando a cor de velho damasco amarelo. As pessoas pareciam que sofriam de icterícia e lembro-me de uma sensação de divertimento ao vê-los tão feios e repulsivos. A minha mão estava da mesma cor.
Então, de repente, ouviu-se um clamor, um grito de agonia vindo de toda a gente. O sol, girando loucamente, parecia de repente soltar-se do firmamento e, vermelho como o sangue, avançar ameaçadoramente sobre a terra como se fosse para nos esmagar com o seu peso enorme e abrasador. A sensação durante esses momentos foi verdadeiramente terrível.»

Para a maior parte dos crentes católicos, é incontestável que o fenómeno observado se deveu à Virgem, por vir na sequência das aparições anteriores, em que, aliás, terá sido sugerido algo desta magnitude. Para muitos descrentes, é certo que um fenómeno com estas características, a ter acontecido, deve ter sido causado por sugestão coletiva ou outro equívoco natural. Para a maior parte das pessoas tocadas pela escolarização, é evidente que o Sol não rodou nem se soltou do firmamento. A escola ensina que, se a estrela Sol se tivesse movido abruptamente, teria desencadeado uma catástrofe cósmica e destruído a Terra — devido à estrutura de inter-relação dos vários corpos do sistema solar —, mas não há notícia de que tenha havido sequer um grande terramoto naquela data. Os crentes não querem saber de racionalidades e leis da Física e dizem: “para Deus não há impossíveis”. Alguns cientistas não concebem seres que não possam ser verificados e dizem: “o nosso Universo não veio equipado de sobrenatural”.

Conversando sobre este assunto com uma tia devota, ela disse-me que há pessoas que afirmam presenciar um milagre do sol semelhante, durante a procissão de Santo António, a 13 de Junho, em Lisboa. Fiquei alvoroçado com a possibilidade de assistir a um fenómeno tão prodigioso e, na data indicada (por volta de 1999), lá estava eu integrado na procissão, atento, quer à ambiência celestial, quer à humana.
Junho em Lisboa, às quatro ou cinco da tarde é quente. A procissão movia-se devagar em frente da Sé. Então, comecei a ouvir algumas pessoas — uma aqui, outra ali — a chamar a atenção para o sol, a apontar, a dizer que viam o sol a girar. Uns e outros olhavam, tentando ver o fenómeno. O entusiasmo não era grande. Olhei também, de relance. O sol era uma bola de fogo, como habitualmente, perigoso para os olhos, como sempre.
Então, julguei compreender tudo. Eu estava farto de assistir a “milagres do sol”, de cada vez que jogava ténis e, tendo de acompanhar alguma bola alta, dava com os olhos no sol: a minha retina ficava maculada, onde o sol a queimara e, durante um bocado, uma mancha, com a mesma forma e de uma cor arbitrária, sobrepunha-se a tudo o que eu olhava. Naquele momento percebi que, provavelmente, tudo aconteceu não com o Sol, mas com o sol, isto é, a luz solar e a perceção que os presentes tiveram dela.
Para mim, era claro que também aquela gente estava a queimar a retina irresponsavelmente, e foi isso que disse a algumas pessoas, levemente receoso de que me considerassem herege. Ninguém ficou escandalizado ou irritado, talvez só um pouco pesaroso de que o seu desejo não se concretizasse. Eu próprio fiquei um pouco desapontado, embora não esperasse outra coisa.

Ao fazer pesquisa na internet para este artigo, encontrei esta opinião: «O milagre do Sol é o brilho ou reflexão que produz se o olharmos diretamente. Em dias de chuva, enevoados ou quando o Sol enfraquece no horizonte, é possível fixá-lo durante poucos segundos. Imediatamente se dá o Milagre do Sol. Se o olharmos, o Sol parece brilhar com imensos raios, rodar sobre si e descer vertiginosamente. Eu próprio já fiz a experiência para me certificar do milagre. Mas corremos riscos. Ao olhar o Sol, mesmo quando o brilho é menos intenso, podemos sofrer queimaduras graves na retina, e por isso é necessário bastante cautela. Ainda hoje, em Lisboa, há o (mau) hábito de, depois da procissão de Santo António, a 13 de Junho, algumas pessoas olharem o céu para verem o santo descer.»

Opinião neste sentido tem também um físico citado pela Wikipédia: «imagens residuais na retina, produzidas após breves períodos de olhar fixo no Sol, são a causa provável dos efeitos observados». E adverte que «milagres do Sol têm sido testemunhados em muitos locais onde peregrinos, cheios de religiosidade, têm sido encorajados a olhar para o Sol».

Ainda assim, o “milagre do sol” de 1917 terá aspetos difíceis de enquadrar numa única explicação. Há até quem fale em OVNI — o sol descrito como um disco prateado, baço, a girar no céu. Eu, por mim, sou mais convencido por explicações físicas e fisiológicas do que por outro tipo de especulações, mas gosto de cultivar uma atitude de prudência, conforme aprendi do astrónomo francês do século XVIII, Laplace:

«Estamos tão longe de conhecer todas as forças da Natureza e suas múltiplas modalidades de ação, que seria pouco filosófico negar a existência de certos fenómenos apenas porque não podem ser explicados no estado atual dos nossos conhecimentos.»

Esta reflexão, que serve de crítica aos que negam os fenómenos inexplicados, também pode ser entendida como uma crítica aos que aderem a explicações sobrenaturais, ainda antes de tentarem as naturais. Ceticismo puro e “sobrenaturalismo” puro são aqui igualmente criticados. Ambos abraçam soluções apressadas, que tantas vezes nos apontaram pistas equivocadas para a compreensão do Universo. O meio-termo, a solução ponderada, por onde passará?

A atitude dos grandes nomes, os que fizeram recuar o desconhecido, não foi a de aderirem a soluções não racionais ou que só explicavam parte dos fenómenos. Perseguiram pacientemente indícios ténues, por vias inesperadas, que desembocaram algumas vezes em explicações e conhecimento. Que sejam inspiração para nós!

Joaquim Bispo
* * *
Fontes:
Seomara da Veiga Ferreira, As Aparições em Portugal dos Séculos XIV a XX, Relógio d’Água, 1985.

* * *
(Este artigo foi publicado no número 16 da revista literária virtual Samizdat, de maio de 2009.)

* * *

10/04/2016

O Primeiro Passo


Não vês que estás a ir por maus caminhos, meu filho? — O anjo adotava uma postura paternal, a face preocupada, o gesto complacente.
Eu nem sei se quero ir por bons caminhos! — retorqui, desafiador.
Quando ele se materializara no meu quarto de solteiro, com ares de arcanjo Gabriel, passava das três da manhã. Estranhei, mais do que me assustei. Tinha estado na comissão de autogestão da fábrica a tratar de problemas deixados pelo patrão fugido e, proposta puxa discussão, tinha bebido umas três ou quatro cervejas. O verão de 75 ia quente em todos os sentidos, a Revolução avançava com autogestões nas fábricas e nos campos e auto-organização das populações em todos os domínios. Havia um sentimento no ar de que, finalmente, tudo era possível. E tanto que havia para fazer! O mais difícil era a mudança das mentalidades. Todos tínhamos sido condicionados para ser engrenagens de uma sociedade de obedientes, castos e tementes. De repente, tinham-se rompido as comportas que mantiveram a multidão calada e quieta, e esta inalava, impertinente, os primeiros aromas da liberdade.
Agora, até de replicar a um anjo eu me sentia capaz:
E, além do mais, o que é que tens com isso?
Não penses que podes viver como queres: lascivo, descrente e subversivo. Tudo está determinado e o teu lugar está muito bem definido.
Eu posso fazer o que quiser! Desde que não restrinja a liberdade de ninguém.
E não achas que roubar a fábrica de alguém é atentar contra a sua liberdade?
Não é roubar, é pôr ao serviço da comunidade — a começar pelos que lá gastaram o seu esforço, o seu tempo, as suas vidas —, o que alguém explorou e abandonou. Não é a sua fábrica, era a sua máquina privada de sacar mais-valias.
Não vês que tudo isto é apenas um remoinho passageiro!? Não vês qual é a ordem natural das coisas? Quando a poeira assentar, volta tudo ao que era. E então, tu estarás perdido.
Não me vão prender por tentar ajudar a pôr a fábrica a funcionar outra vez, está descansado!
Não é dessa perdição que eu estou a falar. — E continuou a pôr água na fervura revolucionária: — Quem me mandou não gosta de rebeldes. Gosta que a hierarquia esteja muito bem definida e que o de baixo não desobedeça ao de cima. Gosta que a moral e a religião sejam o guia das nações e que os seus dirigentes sejam austeros, mas bondosos, como os pais são para os filhos. Agora, tu és um filho pródigo que não respeita o seu pai.
Eu vejo é que o teu ar paternal, de há pouco, está a transformar-se na fúria contida de um mestre-escola autoritário. Por que é que quem te mandou não prefere a liberdade das pessoas e a livre adesão aos seus preceitos? Ou a livre rejeição!? Como é que se pode sentir satisfeito de mandar em autómatos, que se lhe sujeitam apenas pelo medo do castigo? Não repara como são alienadas as pessoas que se lhe submetem, que nem pensamentos de revolta podem ter?
Ele vê é que, com a ordem que instaurou, todos eram felizes. Já viste alguém feliz nesta revolução?
Sim, muitos, loucos de felicidade. Pela primeira vez são donos das suas vidas.
Loucos, dizes bem! A revolução pôs pais contra filhos, filhos contra pais, marido contra mulher, mulher contra marido. Os partidos, de que até o nome é revelador, destroem a harmonia da sociedade.
Os partidos são a expressão, crispada mas necessária, que faz circular na sociedade os vários conceitos da sua própria organização. Vocês não têm partidos? Os anjos dão-se bem com os querubins? E estes com os serafins? Ou também têm interesses de classe?
Lá, donde eu venho, a harmonia não tem ameaças. Todos conhecem e aceitam o seu nível celeste.
Não será bem assim! Tanto quanto eu sei, já houve revoltas. Não foi lá que Lúcifer bateu o pé ao teu patrão?
Sim, há esse episódio…
E essa tal harmonia de que falas não corre o risco de um dia ser alterada pela tomada do poder por Lúcifer?
O anjo, de que não cheguei a saber o nome, riu-se com gosto. Perdeu por momentos o ar, umas vezes pedagógico e protetor, outras tenso e vagamente ameaçador, e riu-se demorada e maliciosamente:
O Lúcifer foi um caso de sucesso. Foi das revoltas melhor recuperadas de que há memória. Achas que se ele fosse antissistema torturava os que lhe mandamos? Pelo contrário, procuraria tratá-los o melhor possível para ganhar aceitação popular. Não; o trabalho dele é um pouco desagradável, porque tem aquela falta cívica para pagar, mas está tão integrado e é tão necessário ao nosso sistema, como é o sistema prisional em qualquer sociedade humana. Aliás, quem me enviou está muito satisfeito com ele. O seu Inferno é a cúpula que completa o edifício teológico arquitetado.
Não era nada de que eu não tivesse já desconfiado, mas a confirmação, assim, de chofre, provocou-me uma náusea de repulsa por um desígnio tão totalitário.
Em vez de me convencer da perfeição do sistema e de me submeter aos argumentos do anjo, fui invadido por uma onda irreprimível de rejeição. Afinal, a oposição não era entre umas entidades sobrenaturais benfazejas, e outras maléficas, mas entre a liberdade de autodeterminação do Homem, e o obscurantismo das superstições e dos mitos, em conluio com as forças da exploração. Abri a janela e aspirei o ar fresco da noite.
Tretas! Andamos há milénios rodeados de tretas, que só servem para a classe exploradora nos manter mansos. Não acredito em nada disso. Nem em demónios, nem em anjos. Não quero. E, mesmo que acreditasse, seria contra! — A minha voz soou com uma tal limpidez, como se eu não tivesse dito nada antes.
Ou fosse porque os últimos vapores de álcool abandonaram os meus pulmões, ou porque os mitos só se instalam na cabeça de quem lhes dá guarida, o certo é que, quando me voltei, não vi anjo algum. Acho que nessa noite dei o meu passo revolucionário mais consequente.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: “Kouros” de Kroisos, Anavyssos, c. 530 a.C., Museu arqueológico de Atenas.

* * *
(Este conto foi publicado no número 18 da revista literária virtual Samizdat, de julho de 2009.)

* * *

10/03/2016

Génesis e Apocalipse



Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.

Alvorada

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados, sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se, cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a Terra inteira.

*

Crepúsculo

As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50 milhões que restam — retiraram-se para junto dos polos. Creio que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

Joaquim Bispo

* * *

(Estes minicontos foram publicados no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009.)

* * *



10/02/2016

Perdidos na translação


O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente:
Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
Nasceu exatamente à uma da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não completa um ano à uma da tarde.
Como assim, tio? — reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto! Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em ponto.
Eu não digo o contrário, mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás, curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer: de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
Estamos habituados a que, de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 — continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura 365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos, meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à explicação do tio esquisito, que prossegue:
Alguns povos da Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade, adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12 meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
Por amor de Deus, tio; contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
Isto é muito interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano — de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
Então, era igual ao nosso! — atreve-se um dos miúdos.
Quase! — esmiúça o “tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias — era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII, adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
A sério? — entusiasma-se outro. — Que cena!
Sim. Foram 10 dias que nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.
Mas saltar 10 dias resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
Não, mas minorou-o bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano:

. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário, mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4, mas não por 400.

Rematando o raciocínio, o tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
Então, sendo assim, não custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta, decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
Faz-me um favor, pela tua saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é nosso.»

Joaquim Bispo

* * *

(Este conteúdo foi publicado, sob a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)

* * *

10/01/2016

Sem abrigo


O dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do psicanalista a Lisboa.
Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado, encostei o carro como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o passo para o consultório, que é junto ao Saldanha.
A consulta foi pouco produtiva. Não consegui soltar-me e verbalizar todas as queixas que tenho da vida, desde que a Noémia me deixou. Quando ia para pagar, dei-me conta que tinha deixado a carteira no compartimento da porta do carro, onde a meti ao pagar a portagem. Fiquei a dever a consulta.
Voltei ao carro, mas não o encontrei. No café em frente, confirmaram-me que tinha sido rebocado. Na pressa, tinha-o posto num espaço reservado a deficientes.
De repente, vi-me numa situação muito desconfortável: só tinha um porta-moedas com 4 euros e 40, eram nove da noite, estava a duzentos quilómetros de casa e não tinha onde dormir. Enquanto pensava o que havia de fazer, comi uma sandes de queijo com uma imperial e um café. Fiquei com 1 euro e 70.
Lembrei-me de um amigo da tropa, o Marques, que, quando me encontra, insiste para o ir visitar a Campo de Ourique. Liguei-lhe, mas, assim que começou a chamar, acabou-se a bateria do telemóvel. Numa lista telefónica, por exclusão de partes, encontrei a morada. Meti-me no Metro até ao Rato e depois fui a pé. Quando dei com a rua Tomás da Anunciação, eram já quase onze da noite. Toquei, toquei à campainha, mas ninguém respondeu. Se calhar tinham saído de fim-de-semana.
Voltei para trás, meio acabrunhado. Sem saber para onde ir, segui a linha do elétrico por S. Bento até ao Chiado. Já não cirandava pela cidade desde os tempos de tropa, há uns vinte e tal anos. Aqui e ali, vi pessoas a dormir enroladas em cobertores e metidas em caixas de cartão. Como se teriam deixado chegar àquilo? Um despedimento inesperado? Um endividamento incontrolável? Uma desistência abismal? Um indivíduo de barba hirsuta veio pedir-me «uma ajuda». Apeteceu-me dizer-lhe «hoje não pode ser», como habitualmente, mas acabei por lhe dar vinte e cinco cêntimos. Pela primeira vez, sentia uma identificação estranha com aquelas pessoas. Deambulei pela Baixa a ver as iluminações de Natal. Era minha intenção continuar a andar até que amanhecesse mas, ao contrário do que esperava, comecei a sentir-me cansado. Subi a Almirante Reis e toquei em três pensões. Uma estava cheia e as outras duas não me aceitaram sem identificação ou sem pagar adiantado.
Pela primeira vez, também não tinha onde dormir. Para piorar as coisas, começou a chuviscar. Estive um bocado debaixo do toldo de uma montra de móveis. Depois, encostado às paredes, meti por uma transversal da Morais Soares e entrei na porta de um prédio que estava encostada.
Fiquei parado na penumbra, atento a todos os ruídos. Do alto das escadas ouvia-se, de vez em quando, um ruído indefinido. Cheirava a mofo. Sentei-me nos degraus de madeira e aos poucos a fadiga invadiu-me. Estive ali muito tempo de pernas encolhidas, dobrado sobre os joelhos, com o rosto apoiado nas mãos abertas, enquanto o frio se espalhava por todo o corpo. Apesar de estar cheio de sono, só conseguia adormecer por curtos períodos, devido ao frio e à posição. Apetecia esticar-me. A meio da noite, reclinei-me de lado nos degraus, mas as arestas magoavam. Fui mudando amiúde de posição. Tiritava. Os pés estavam gelados. Ansiava pela manhã.
De repente, meio estremunhado, ouvi ruídos de passos a descer as escadas. Em poucos segundos, estava confrontado com um cão grande a ladrar furiosamente e a fazer avanços para me morder. O que me valeu foi o dono e a trela com que o segurava. Envergonhado, saí.
Tinha parado de chover. Subi a rua até ao alto da Penha de França. O casario acinzentado começava a ganhar cor. Do lado de Xabregas, o céu tingia-se de fortes tons de vermelho. Em breve, a enorme bola solar fez a sua entrada triunfal. Há quanto tempo não via um nascer de Sol! Fiquei um bocado a saborear essa extraordinária visão e a sentir o corpo a deleitar-se com o pouco calor que transmitia.
Depois, comecei a encaminhar-me para o parque de carros rebocados de Sete Rios. Na Duque de Ávila, encontrei um café aberto. Perguntei quanto custava um galão.
Oitenta!
E se for setenta? ― murmurei eu, de porta-moedas aberto.
O homem mirou-me e começou a preparar o galão. Deve ter reparado na barba por fazer, nos olhos remelados, na roupa amarrotada e empoeirada de roçar nas escadas. Fui à casa de banho, aliviei a bexiga, lavei os olhos e passei as mãos molhadas pelo cabelo. Daí a pouco, com o calor do galão a inundar-me o estômago, sentia-me pronto para outra. Salvo seja! Espero que nunca mais volte a não ter onde dormir. Nem imagino pelo que passa quem vive anos sem abrigo.
Ao resgatar o carro, fiquei a saber que passei uma noite horrível sem necessidade: afinal, o parque de rebocados só fecha à meia-noite. Nesse início de 2009, apeteceu-me gritar uns palavrões.

Joaquim Bispo

* * *

(Este conto foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

* * *

10/12/2015

Colo


Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras e, sobretudo, ver gente. O regresso, a subir, tornava-se um pouco penoso, sobretudo se exagerava no peso.
Falava a todas as vizinhas, mas demasiada proximidade incomodava-a, de modo que não frequentava a casa de nenhuma, nem convidava ninguém para a sua. Encontrava umas com os netos, outras a passear os cães. Rejubilava sinceramente com os progressos das crianças, cada uma já com personalidade própria, desde pequenas. À baila vinham sempre as queixas das descuidadas noras ou dos cabeças-no-ar dos filhos, mas sempre lhe parecia que todos os trabalhos que os netos exigiam eram largamente compensados pela alegria de os mostrarem e se envaidecerem com o êxito dessa exibição. A ela restava esperar ― já que o filho casara havia meses ―, mas também desesperar, porque ele e a jovem mulher tinham ido viver para os Estados Unidos.
Duas ou três vizinhas ― todas viúvas, como ela, por sinal ― enganavam a solidão com a companhia de um cão, mesmo que também recebessem a visita esporádica dos netos.
A Dona Ludovina “herdara” o cão do marido. Ele é que gostava de animais e durante anos passeou um caniche preto. Um dia o dono não acordou e ela assumiu a responsabilidade do bicho, que, coitado, durante meses, em vez da azáfama habitual na espécie de cheirar e marcar território no passeio, manteve uma atenção angustiada a todos os homens com que se cruzava, na expectativa de reencontrar o dono. A exigência de tratar do animal e de o levar à rua três vezes por dia ajudaram-na, possivelmente, a seguir em frente na nova condição de viúva.
Outra passeadora de cão ― a Dona Clara ―, viúva há mais de vinte anos, executava apenas a rígida rotina de casa–trabalho–casa, cinco dias por semana, desde que o filho casou e saiu de casa. Mulher austera, amiga do rigor e da franqueza, tornou-se ainda mais antipática quando se reformou. Era uma administradora do prédio eficiente, que não descuidava reparações e limpeza, mas condómino que se atrasasse no pagamento da respetiva comparticipação podia estar certo de ouvir um remoque. O filho, percebendo talvez o problema, ofereceu-lhe um pequeno cão de pelo curto, tipo podengo. Foi remédio santo. A exigência de levar o bicho à rua, o incontornável contacto com outros passeadores de cães e, certamente, o adoçamento que um animal de companhia traz a um ser humano transformaram-na, visivelmente. O “bicho de mato” que tinha sido transmutou-se numa pessoa que se permitia ficar no passeio a conversar com outras, a rir até, revelando uma simpatia simples, desconhecida nela, até então.
Foi Dona Clara que primeiro lhe sugeriu um cão para companhia. Deolinda, porém, não se via a ficar dependente de um animal, a ter de o levar à rua, quando lhe apetecia ficar simplesmente a ler ou a ver televisão. E depois o cheiro! Ela até gostava de animais, pois fora criada na província, com pai caçador, mas em sua casa sempre os cães tinham sido confinados ao amplo quintal. Todas as casas que conhecia com cães tinham um indisfarçável cheiro a covil.
Durante algum tempo, depois de se reformar, Deolinda ainda manteve contacto com as antigas colegas. Uma vez por mês, em média, saía com uma das outras reformadas e, de longe em longe, acedia ao convite de um almoço conjunto. Infelizmente, duas delas morreram e o grupo acabou por espaçar cada vez mais os encontros.
Chegou a inscrever-se na universidade sénior, para manter algum fluxo de aquisição de saber, mas desiludiu-se. O mulherio parece que só lá ia pela conversa e mantinha um zunzum no ar durante as aulas, quando não chegava a atender telemóveis. Assim, não! Preferia ficar em casa a ler.
Lia muito, tanto que as estantes de casa estavam a abarrotar, mesmo depois de levar caixas com livros para a terra. Começou a frequentar a biblioteca municipal, que era uma alternativa quase perfeita. Tinha um acervo extenso e variado, tanto de diversos livros recentes, como dos clássicos, que muitas livrarias se abstêm de ter.
Nas últimas férias ― se se pode falar de férias em relação a uma reformada ―, além de uma semana na terra, tentou umas surtidas às praias de Lisboa, mas a confusão que tais multidões causavam, incomodavam-na, sem falar das angustiantes filas do trânsito no regresso. Nos anos anteriores ainda passara uns dias numa praia sossegada, com o filho, mas agora...
Fazia-lhe falta a proximidade do filho. Estava muito constrangida pela perspetiva de passar o Natal sozinha. Era o primeiro Natal sem ninguém. O marido morrera havia oito anos e agora também o filho se afastara. As férias, enfim, mas o Natal! Onde o passar? Como? Com quem?
Em cima da data, resolveu passá-lo na terra ― uma aldeia do interior beirão. Em vez de levar o carro, preferiu meter-se num autocarro Expresso e ir tranquilamente sentada a ver a paisagem e a recordar os tempos de faculdade, quando ia à terra todos os quinze dias. Sentia-se um pouco triste e resolvera aceitar esse estado de espírito, interiorizando-o e cultivando-o com recordações dos tempos felizes. Por isso decidira passar o Natal na terra.
A casa que ali mantinha, e aonde ia umas três ou quatro vezes por ano, pareceu-lhe mais silenciosa que habitualmente. Arejou-a, varreu-a e deu-lhe uma arrumadela. Cada móvel, cada divisão, traziam-lhe à memória um episódio conjugal, uma piada do filho. Fez um chá, comeu umas tostas com compota e deitou-se. A cama parecia molhada, de tão fria. Embrulhou os pés num xaile velho e demorou ainda um bom bocado a adormecer.
O dia seguinte, véspera de Natal, amanheceu escuro e frio. Deolinda foi à mercearia comprar leite, pão e umas coisas para o jantar. O almoço foi frugal e saiu a seguir, para tomar um descafeinado. Não encontrou ninguém conhecido, só gente nova. Em tempos, não dava um passo sem encontrar alguém de família.
Voltou para casa, sem saber como ocupar o tempo. Se calhar, não tinha sido boa ideia vir este ano à terra! Deambulou pelas divisões silenciosas, a olhar as fotografias cinzentas: aqui, jovem, com o marido, no casamento de um primo; ali sorridente com “os seus homens”, numa visita a Cáceres; mais além, o pai aprumado numa farda do tempo da tropa.
Lá fora, começara a cair uma chuvinha miúda. Deolinda ficou um bocado a olhar a rua vazia e a ver as gotículas de chuva a formarem pequenos veios na vidraça. Assim eram os seus dias a escorrerem, não sabia para onde.
Cozeu umas batatas com grelos e uma posta de corvina. Há dez, quinze anos, teria feito também uma boa sopa de feijão com hortaliça, uma perna de borrego e umas rabanadas. Agora, tudo lhe fazia mal. Comeu o peixe com pouca vontade. Não lhe sabia a nada. Deixou metade da posta.
Acendeu o lume na lareira da cozinha e sentou-se a olhar as línguas das chamas que consumiam mansamente os cavacos com que as ia alimentando. Assim a sua vida se ia consumindo, placidamente, sem dramas, sem objetivo. Aguentou-se por ali a cabecear, a fazer horas para a missa do galo.
Junto ao adro, o cheiro a madeira queimada, tão familiar, fê-la lembrar-se dos antigos natais, quando ir conviver e aquecer-se junto à fogueira de Natal era uma festa. Passou pelo bando de rapazes que, indiferentes à chuva miudinha e gelada, mantinham uma algazarra regada a vinho, junto aos madeiros em chamas, entrou na igreja, logo reconhecida, e sentou-se junto à coxia.
Lá estavam, parados no tempo, os santos da sua meninice ― Santo António, a Senhora das Dores, São Sebastião, o Coração de Jesus. Durante toda a missa foi recordando alguns episódios ligados a esta igreja da sua terra ― o crisma, o casamento da tia Matilde, o batizado do primeiro sobrinho, um dos primeiros afogueamentos, quando reparou que um rapaz mais velho olhava para ela de uma forma especial.
Quando o celebrante levantou a hóstia, Deolinda sentiu-se muito desamparada. Intimamente, implorou:
«Sejas Tu quem fores, ajuda-me; ajuda-me, por favor!»
A missa acabou. Deolinda ficou ainda um pouco, ajoelhada, em recolhimento. Aproveitando a porta aberta pelas pessoas que iam saindo, entrou na igreja um gatinho ainda pequeno, molhado e enregelado, a abrigar-se do tempo hostil. Era malhado de preto e branco, parecia confuso e miava debilmente, entre o receio e o queixume. Foi caminhando pela coxia central, enquanto o seu miado se tornava mais suplicante, sobressaindo por cima da vozearia lá de fora. Deolinda ouviu-o, mas, muito imersa no seu espírito, demorou a surpreender-se. Quando olhou, o gatinho parara a olhar para ela e a miar. Deolinda ficou paralisada a olhar para aqueles olhos azulados e vítreos, como se lhe custasse a perceber o que via. Depois, pegando no gatinho, aconchegou-o contra o peito, por dentro do sobretudo, e desatou a soluçar convulsivamente. As lágrimas rebentaram incontroladamente, como se estivessem há muito represadas.
Pouco depois, o gatinho, confortado pelo calor do corpo de Deolinda, começou a ronronar. Deolinda olhou em volta. Cristo crucificado estava desfalecido no seu martírio, a Senhora das Dores e São Sebastião olhavam os céus. Deu com os olhos nos olhos do Menino Jesus, que estava ao colo de Santo António e sorria. Pareceu-lhe que afastou o olhar, quando ela o fixou, e que a olhava, se ela desviava o olhar.
Entretanto, alguém tocou no braço de Deolinda:
Então, vizinha, deixe lá as tristezas, que hoje já é dia de Natal. Venha comigo, que eu também vou para os seus lados.
Lá foi Deolinda, sem ouvir a conversa da vizinha, com o gatinho junto ao peito, tão apaziguada como nos dias felizes, tão realizada como quando regressara a casa com o seu filho acabado de nascer, ao colo.

Joaquim Bispo

* * *

(Este conto obteve um 7º lugar no Concurso de Contos e Crónicas da Universidade Metodista de Piracicaba, em 2011, e foi publicado, em versão mais pequena, no número 24 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2010, com o título “O Natal de Josefa”.)

* * *


10/11/2015

Esta Cidade não é para Frutos Secos



Paulina, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande castanheiro.
Maior e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs.
Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho.
Um dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina.
Sou uma Castanha da Índia e vou para a cidade. Uma prima arranjou-me trabalho ― respondeu a outra, radiosa nas suas bochechas luzidias.
Então vamos as duas!
Mais à frente, encontraram uma espécie de castanha pequenina e redondinha.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou a Castanha.
Sou a Avelã e vou para a cidade. Quero arranjar trabalho e ganhar dinheiro.
Então, vamos as três!
Por volta do meio-dia, num cruzamento, encontraram outras duas.
Olá! Quem são vocês e para onde é que vão? ― disse a Castanha da Índia, que já tinha aprendido a senha. A mais encorpada respondeu:
Eu sou a Noz e esta minha amiga é a Amêndoa e vamos para a cidade estudar. Estamos fartas de ser cascas-grossas.
Então, vamos todas de companhia! ― Era a vez de a Avelã concluir.
E lá foram divertidas e tagarelando a tarde inteira. Ao anoitecer, encontraram uma bolota pilada, toda encarquilhada, que lhes ofereceu guarida junto a uma azinheira. Aceitaram agradecidas, que a noite está cheia de roedores; mas apenas começou a haver luz, partiram e chegaram à cidade ainda de manhã.
Deram uma volta a apreciar os prédios enormes e o formigueiro dos carros. Depois, encontraram um jornal de anúncios grátis.
Olha este ― disse a Amêndoa. ― «Precisa-se amêndoa para fábrica de doces conventuais». Vou responder! Se for um part-time, posso ganhar uns dinheirinhos e ter tempo para estudar.
Boa, este é para mim! ― entusiasmou-se a Avelã ― «Chocolataria procura avelã grada. Paga bem». Se ganhar muito dinheiro, compro um pulverizador à minha mãe.
Hum, não sei o que este é ― disse a Castanha carregando o sobrolho ― «Castanhas nacionais e estrangeiras. Quentes e boas!». É capaz de ser uma empresa de trabalho temporário. Mas não há mais nada! Acho que vou tentar.
Combinaram que cada uma iria responder ao seu anúncio e que voltariam a juntar-se de tarde. Paulina resolveu esperar pela Castanha da Índia, na esperança de que esta lhe arranjasse vaga.
À hora aprazada chegou a Noz muito zangada. Tinha ido responder a um anúncio para Segurança num armazém e tinham-lhe dito que era um estágio não remunerado.
Lá na terra, muito ou pouco, sempre pagam a quem trabalha. Nunca me fizeram uma proposta tão desavergonhada!
Eu cá estou contente com o trabalho ― chegava a Castanha da Índia. ― Fiquei a trabalhar em casa de uma velhota simpática e o que tenho de fazer é só ficar numa gaveta de roupa a afugentar as traças. ― O sorriso de orgulho que lhe assomara à casca fechou-se logo a seguir. ― Mas não é trabalho para vocês, meninas! Não têm este cheiro que afasta os insetos. Agora, tenho de ir. Adeus. Vemo-nos por aí.
Da Amêndoa e da Avelã, nem sinal. A Noz e a Castanha esperaram ainda um par de horas, e, como as outras não vinham, foram responder ao anúncio para a Paulina.
Era numa rua estreita e o local de trabalho, envolto em fumo, não passava despercebido. Aproximaram-se, sem dizer nada, e ficaram à espreita, para descobrir qual era o ramo de negócio do patrão. Este, de bigodinho e cabelo oleoso, pegava nas castanhas, rasgava-lhes a casca de um golpe e atirava-as para um pote esburacado que tinha sobre brasas.



Só então, horrorizadas, se aperceberam do cheiro a castanhas assadas que enchia o ar; e as viram amontoadas num grande tabuleiro. Estavam irreconhecíveis. A casca golpeada encanecera como noiva adiada e abrira-se pela ação do calor, deixando ver o delicado véu interior, que separando-se do miolo, expunha o corpo dourado das castanhas. «Que degradante! Porque faz esta atrocidade, porquê?» ― perguntavam-se. Observaram então como os homens se aproximavam de olhos lúbricos, pagavam o preço combinado e, apossando-se dos objetos do seu apetite, esmigalhavam com mãos papudas o resto de casca e de película que parcamente ainda vestia as castanhas. E depois de completamente descascadas ― oh, horror! ― de uma só dentada comiam-nas. Inteiras.
Escapou-se-lhes um «Oh!» involuntário. O homem das castanhas viu-as e baixou-se para as apanhar. Estava quase a agarrar Paulina quando a Noz, ginasticada e enraivecida pela repulsa, saltou. Apontou uma cabeçada aos dentes do homem. O lábio superior deste interpôs-se e ficou esmagado entre os próprios dentes e a cabeça dura da Noz. O homem gritou agarrado ao lábio a sangrar. Várias cabeças de homens se voltaram. A Castanha e a Noz sentiram aquelas dezenas de olhos sobre si. Um medo imenso apoderou-se delas.
Fugiram dali, tão depressa quanto conseguiram, sem olhar para trás. Ao virarem uma esquina, quase foram esmagadas por um carro. Atiraram-se para o lado às cegas e caíram numa sarjeta. No escuro, húmido e fétido, olharam em volta, tentando enxergar o que quer que fosse. Só três pares de olhos brilhantes guinchavam.

Joaquim Bispo

* * *

(Este conto foi publicado no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008, com o título “Paulette na cidade”.)

* * *