Nos nossos tempos, muito afastados dos bíblicos, não acontecem milagres. Como se as entidades sobrenaturais estivessem ausentes ou imóveis e silenciosas. Quase todos os milagres ocorreram há muito tempo e os raros que nos chegam referem circunstâncias pouco verificáveis e testemunhos pouco representativos. Nas nossas sociedades racionalistas, chegamos a sentir a nostalgia de viver situações como a de Abraão ver entrar três anjos tenda adentro, ou ver Cristo dar de comer a cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, ou assistir à revelação do anjo Gabriel a Maomé. A mais recente e importante manifestação do sobrenatural que conheço é a aparição da Virgem aos pastorinhos em Fátima. Em que só Lúcia, uma menina de 10 anos, garantiu que A viu. Aconteceu, no entanto, um fenómeno extraordinário relatado pelos jornais e visto por muitas das cinquenta mil pessoas presentes, o que deu dimensão às aparições, em si: o milagre do sol, na sequência da aparição de 13 de outubro de 1917, há quase cem anos. Como eu gostaria de lá ter estado!
Segundo
uma testemunha que na altura tinha nove anos, «eu olhava fixamente o
astro; pareceu-me pálido e privado da sua deslumbrante claridade;
dir-se-ia um globo de neve girando sobre si mesmo. Depois,
subitamente, pareceu descer em ziguezague, ameaçando cair sobre a
Terra. (…) Durante os longos minutos do fenómeno solar, os objetos
colocados perto de nós refletiam todas as cores do arco-íris… os
nossos rostos ficavam ora vermelhos, ora azuis, ora amarelos. (…)
Ao fim de dez minutos, o Sol retomou o seu lugar, da mesma maneira
que dali tinha descido, sempre pálido e sem luminosidade.»
Outra
testemunha disse: «O Sol começou a bailar e a dada altura pareceu
deslocar-se do firmamento e em rodas de fogo, precipitar-se sobre
nós.»
Outra,
ainda: «coisa mais espantosa era poder olhar para o disco solar por
muito tempo, brilhando com luz e calor, sem ferir os olhos ou
prejudicar a retina. [Durante este tempo], o disco do sol não se
manteve imóvel, teve um movimento vertiginoso, não como a
cintilação de uma estrela em todo o seu brilho, pois girou sobre si
mesmo num rodopio louco.
Durante
este fenómeno solar, que acabo de descrever, houve também mudanças
de cor na atmosfera. Olhando para o sol, notei que tudo se escurecia.
Olhei primeiro para os objetos mais perto e depois estendi a minha
vista ao longo do campo até ao horizonte. Vi que tudo tinha assumido
cor de ametista. Os objetos à minha volta, o céu e a atmosfera,
eram da mesma cor. Tudo perto e longe tinha mudado, tomando a cor de
velho damasco amarelo. As pessoas pareciam que sofriam de icterícia
e lembro-me de uma sensação de divertimento ao vê-los tão feios e
repulsivos. A minha mão estava da mesma cor.
Então,
de repente, ouviu-se um clamor, um grito de agonia vindo de toda a
gente. O sol, girando loucamente, parecia de repente soltar-se do
firmamento e, vermelho como o sangue, avançar ameaçadoramente sobre
a terra como se fosse para nos esmagar com o seu peso enorme e
abrasador. A sensação durante esses momentos foi verdadeiramente
terrível.»
Para a maior parte dos crentes católicos, é incontestável que o fenómeno observado se deveu à Virgem, por vir na sequência das aparições anteriores, em que, aliás, terá sido sugerido algo desta magnitude. Para muitos descrentes, é certo que um fenómeno com estas características, a ter acontecido, deve ter sido causado por sugestão coletiva ou outro equívoco natural. Para a maior parte das pessoas tocadas pela escolarização, é evidente que o Sol não rodou nem se soltou do firmamento. A escola ensina que, se a estrela Sol se tivesse movido abruptamente, teria desencadeado uma catástrofe cósmica e destruído a Terra — devido à estrutura de inter-relação dos vários corpos do sistema solar —, mas não há notícia de que tenha havido sequer um grande terramoto naquela data. Os crentes não querem saber de racionalidades e leis da Física e dizem: “para Deus não há impossíveis”. Alguns cientistas não concebem seres que não possam ser verificados e dizem: “o nosso Universo não veio equipado de sobrenatural”.
Conversando
sobre este assunto com uma tia devota, ela disse-me que há pessoas
que afirmam presenciar um milagre do sol semelhante, durante a
procissão de Santo António, a 13 de Junho, em Lisboa. Fiquei
alvoroçado com a possibilidade de assistir a um fenómeno tão
prodigioso e, na data indicada (por volta de 1999), lá estava eu
integrado na procissão, atento, quer à ambiência celestial, quer à
humana.
Junho
em Lisboa, às quatro ou cinco da tarde é quente. A procissão movia-se
devagar em frente da Sé. Então, comecei a ouvir algumas pessoas —
uma aqui, outra ali — a chamar a atenção para o sol, a apontar, a
dizer que viam o sol a girar. Uns e outros olhavam, tentando ver o
fenómeno. O entusiasmo não era grande. Olhei também, de relance. O
sol era uma bola de fogo, como habitualmente, perigoso para os olhos,
como sempre.
Então,
julguei compreender tudo. Eu estava farto de assistir a “milagres do sol”, de cada vez que jogava ténis e, tendo de acompanhar alguma bola alta, dava com os olhos no sol: a minha retina ficava
maculada, onde o sol a queimara e, durante um bocado,
uma mancha, com a mesma forma e de uma cor arbitrária, sobrepunha-se
a tudo o que eu olhava. Naquele momento percebi que, provavelmente, tudo aconteceu não com o Sol, mas com o sol, isto é, a luz solar e a perceção que os presentes tiveram dela.
Para
mim, era claro que também aquela gente estava a queimar a retina
irresponsavelmente, e foi isso que disse a algumas pessoas, levemente
receoso de que me considerassem herege. Ninguém ficou escandalizado
ou irritado, talvez só um pouco pesaroso de que o seu desejo não se
concretizasse. Eu próprio fiquei um pouco desapontado, embora não
esperasse outra coisa.
Ao
fazer pesquisa na internet para este artigo, encontrei esta opinião:
«O milagre do Sol é o brilho ou reflexão que produz se o olharmos
diretamente. Em dias de chuva, enevoados ou quando o Sol enfraquece
no horizonte, é possível fixá-lo durante poucos segundos.
Imediatamente se dá o Milagre do Sol. Se o olharmos, o Sol parece
brilhar com imensos raios, rodar sobre si e descer vertiginosamente.
Eu próprio já fiz a experiência para me certificar do milagre. Mas
corremos riscos. Ao olhar o Sol, mesmo quando o brilho é menos
intenso, podemos sofrer queimaduras graves na retina, e por isso é
necessário bastante cautela. Ainda hoje, em Lisboa, há o (mau)
hábito de, depois da procissão de Santo António, a 13 de Junho,
algumas pessoas olharem o céu para verem o santo descer.»
Opinião neste sentido tem também um físico citado pela Wikipédia: «imagens residuais na retina, produzidas após breves períodos de olhar fixo no Sol, são a causa provável dos efeitos observados». E adverte que «milagres do Sol têm sido testemunhados em muitos locais onde peregrinos, cheios de religiosidade, têm sido encorajados a olhar para o Sol».
Ainda assim, o “milagre do sol” de 1917 terá aspetos difíceis de enquadrar numa única explicação. Há até quem fale em OVNI — o sol descrito como um disco prateado, baço, a girar no céu. Eu, por mim, sou mais convencido por explicações físicas e fisiológicas do que por outro tipo de especulações, mas gosto de cultivar uma atitude de prudência, conforme aprendi do astrónomo francês do século XVIII, Laplace:
«Estamos
tão longe de conhecer todas as forças da Natureza e suas múltiplas
modalidades de ação, que seria pouco filosófico negar a existência
de certos fenómenos apenas porque não podem ser explicados no
estado atual dos nossos conhecimentos.»
Esta reflexão, que serve de crítica aos que negam os fenómenos inexplicados, também pode ser entendida como uma crítica aos que aderem a explicações sobrenaturais, ainda antes de tentarem as naturais. Ceticismo puro e “sobrenaturalismo” puro são aqui igualmente criticados. Ambos abraçam soluções apressadas, que tantas vezes nos apontaram pistas equivocadas para a compreensão do Universo. O meio-termo, a solução ponderada, por onde passará?
A atitude dos grandes nomes, os que fizeram recuar o desconhecido, não foi a de aderirem a soluções não racionais ou que só explicavam parte dos fenómenos. Perseguiram pacientemente indícios ténues, por vias inesperadas, que desembocaram algumas vezes em explicações e conhecimento. Que sejam inspiração para nós!
Joaquim
Bispo
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Fontes:
Seomara
da Veiga Ferreira, As
Aparições em Portugal dos Séculos XIV a XX,
Relógio d’Água, 1985.
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(Este artigo foi publicado no número 16 da revista literária virtual
Samizdat, de maio de 2009.)
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