10/03/2016

Génesis e Apocalipse



Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.

Alvorada

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados, sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se, cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a Terra inteira.

*

Crepúsculo

As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50 milhões que restam — retiraram-se para junto dos polos. Creio que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

Joaquim Bispo

* * *

(Estes minicontos foram publicados no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009.)

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2 comentários:

  1. Eu gostei desta iniciativa literária nos dois postes. Achei muito bom o clima, o contexto e a própria escrita. Escrita que me pareceu (no meu parecer) um pouco tolhida, talvez demasiado arrumada.Mas não gera indiferença. Convido-o a passar os olhos pelos meus blogues DESENHAMENTO ** CONSTRUPINTAR02 ** e sobre os meus livros «LIVROS POLÉMICOS DE ROCHA DE De SOUSA

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  2. Obrigado. Visitei agora estes blogues. Fiquei com curiosidade pelo livro de educação visual e gostei dos blogues com o seu nome, por motivos diferentes.
    Abraço!

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