Respeita
a minha última morada.
Pelo
teu exemplo, talvez respeitem a tua.
Eburo
estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora
arrasada para plantar um amendoal.
Ninguém
o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras
inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que
não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade
psíquica.
Comentou
o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que
encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à
falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua
última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o
desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.
Na
excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburo
sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua
moderna, só podia rumar num sentido:
— O
vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família,
ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de
maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura
estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa,
com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar
o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes
fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da
minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É
de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de
quando?
— Olhe,
eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4
anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E
pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o
cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao
menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.
Eburo
não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação
pungente do companheiro de viagem.
— Eu
até acho mais ecológico — continuou o interpelado. —
E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a
qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir.
Parece
uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha.
Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto
que possa
ser profanado por estranhos ou inimigos. Era
assim no tempo da Guerra de Troia.
— Só
soube dessa guerra umas centenas de anos depois...
— Somos
a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o
recém-conhecido. —
Devem
ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a
carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da
vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria
fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos;
para os sedentários ligados
à terra, o fogo purificador faria
menos sentido do que
enterrar o defunto.
Adubava
a terra. As plantas e os frutos que
dali
medrassem teriam um
pouco do falecido, seriam
o
seu regresso ao ciclo da vida.
Eburo
mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.
— O
resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido
adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança,
na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o
corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter
alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma
mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado
numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as
melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem
para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.
Em
Lisboa, Eburo tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já
conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o
levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos
mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A
maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção
frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes
estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já
não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local,
ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e
com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens,
decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía —
possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles
edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente
do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da
edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da
família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela
ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados
apreciavam o túmulo coletivo.
— Admiro
o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições —
lançou Eburo aos presentes. — E até fico impressionado, confesso,
com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à
longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora,
rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez
uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos
dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na
completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as
pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem
nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?
Os
outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa,
mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a
cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a
palavra:
— Como
eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há
respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores
da sua morada; eu nem isso.
Lembranças
dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:
— Chamo-me
Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui
agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas
descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena
dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos
mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na
encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à
sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um
agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para
bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e
tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se
partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia
seguinte partiu-a a martelão.
Os
ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela
depredação inútil.
— O
meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi
parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça,
muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois,
usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com
aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do
meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias,
o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram
completamente esfacelados.
Eburo
estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava,
era a regra: saque e destruição.
O
outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.
— O
meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias
etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos
funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa
gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não
impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes
desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos
monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada —
sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados
em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos
relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava
a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado
sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos,
juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na
cripta coletiva subterrânea.
Os
dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.
— Então,
em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família
Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de
antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda
das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por
eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas
rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado
pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da
nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente
comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a
Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um
esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas
exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas
falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos
verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também
a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O
meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve
desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e
sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante.
Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.
— É
uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburo, que já
estava um pouco cansado da explicação.
— Em
1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o
sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que
nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só
nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no
abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que
esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas
terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente,
em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca,
no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só
me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com
umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.
— Isso
foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o
beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…
— “Em
bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o
etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus
familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de
quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que
não conhecia.
— Tem
razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação
é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer.
Não é verdade, amigo alentejano?
— Eu
não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só
me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se
calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem
saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.
Creze
gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos
“sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos
outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos
vivos, ainda que de forma subtil.
Despediram-se
do itálico, que prometeu pensar no assunto.
— Quando
passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.
— Está
prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos,
bem-humorados.
Foi
bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto
lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava,
carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior,
de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”,
informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos
Pardais, Cabeção, Mora.
Joaquim
Bispo
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Uma
versão reduzida deste conto foi selecionada para a 44ª edição
(março/abril de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:
https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados
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Imagem:
Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a. C.
Museu
Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.
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