10/07/2015

Confinado



Gregório começava a vir a si. No seu cérebro baralhavam-se as cores e os sons. Muito lentamente, começou a distinguir umas de outros, estes a tornarem-se mais agudos e aquelas a ganharem formas. Começava já a aperceber-se da diferença entre um vermelho carregado e um azul quase negro, que deambulavam na sua retina. Agora, chegavam outras sensações de dor e de frio, sem conseguir, no entanto, saber donde vinham elas. Durante longo tempo, foi tomando consciência de todo o seu corpo. As cores tinham-se desvanecido e acabado por desaparecer, restando agora um escuro persistente; dos sons ficara um zumbido; sentia muito frio, picadas por todo o corpo e uma dor intensa no temporal esquerdo. Tentou mexer os dedos, mas estes não obedeciam. Só então abriu os olhos, mas nada viu. Sobressaltou-se, temendo pela sua saúde. Era a primeira vez que esta ideia lhe ocorria e sentiu que o coração lhe batia com estrondo no peito. A custo, porém, conseguiu mexer o braço esquerdo, levando-o automaticamente a apalpar o temporal, que encontrou pegajoso e mole. Estava ferido, com certeza. Estranhamente, isso não o assustou. Sentia-se cansado e, por largos momentos, manteve-se quieto, absorto, semiadormecido.
Depois, começou a sentir curiosidade pelo que se passava consigo. Tentou recordar-se de qualquer coisa que fosse, e algumas recordações foram-lhe brotando no cérebro: «Sou homem, tenho trinta anos, uma filha, sou casado...». Num ápice, tudo se tornou claro. Estava deitado na sua casa de Lisboa e tinha de se levantar cedo, para ir ao Alentejo tratar de uns assuntos, a pedido do sogro.
Deu um esticão para se levantar, mas surpreendeu-se ao bater com a cabeça em qualquer coisa que estava por cima de si, o mesmo sucedendo aos joelhos, que estalaram ruidosamente. Ao mesmo tempo, a dor na cabeça tornou-se mais viva e presente e notou, com terror, que o braço direito se mantinha inerte e insensível. Moveu atabalhoadamente as pernas, o braço esquerdo e a cabeça e chegou à conclusão que estava fechado numa espécie de saco-cama, porque tudo à sua volta era pano, a não ser uma pequena barra de ferro por cima da cabeça.
Gregório sentiu-se aterrado. Não percebia nada do que se passava consigo. Ter-se-ia posto a caminho do Alentejo e tido um desastre, estando agora entalado entre os assentos do carro? Não, isto parecia ser uma caixa. Para lá do pano, sentia-se a resistência de paredes rígidas. Teria sido assaltado no caminho, espancado e metido numa bagageira? Esta ideia pareceu-lhe plausível, a despeito de não se lembrar de nada que o levasse a esta conclusão. Estava, então, a ser raptado por uma quadrilha que o espancara e iria pedir um resgate ao sogro? Nesse caso, onde estava agora?
Pôs-se à escuta, mas o zumbido monótono, que ouvia, poderia ser apenas dos seus ouvidos. O ar também lhe pareceu insuficiente para os seus pulmões. Tentou, como pôde, empurrar o que o rodeava, mas apenas por cima sentiu indícios de cedência. Convencido de que era realmente uma caixa que o prendia, concentrou os seus esforços na tampa, empurrando-a com os joelhos e com o braço fiel tentativa infrutífera que o deixou sem fôlego e da qual o coração se queixava, pelo esforço despendido. Socorrendo-se da réstia de lucidez que ainda não sucumbira ao pânico, rodou o corpo para a direita, tendo que encolher ao máximo os ombros para a frente. Depois, esticando o peito, notou que algo cedia com um gemido e esticou o braço, à procura duma frincha. Sim, lá estava uma pequena fenda da qual escorria algo frio e fluido. Cheirou. Pareceu-lhe cheiro de terra. Parou a ofegar.
«Lama?» intrigou-se.
Pouco lhe importava. Tinha era que se livrar daquele pesadelo.
Lembrou-se da barra metálica. Puxou-a com violência e o que a prendia cedeu. Parecia ter a forma de um punhal. Fez nova tentativa de levantar a tampa e, lentamente, introduziu a lâmina do seu punhal na ranhura dolorosamente conseguida. Entrou mais lama, ou lá o que era. A seguir, conseguiu deitar-se de borco e, apoiando a mão no punhal e as costas no teto, foi esticando o braço com toda a força do seu desespero. Lentamente, a tampa foi cedendo, entre gemidos de pregos desalojados e respiração ofegante. O estranho fluido viscoso alastrava pelo fundo onde estivera deitado. Finalmente, a resistência amainou e Gregório repetiu a operação ao nível da coxa, desta vez apoiando o joelho na providencial barra-punhal e ajudando-o com o dorso. Conseguiu, enfim, acocorar-se com a tampa às costas e o fluido a cobrir-lhe já os joelhos, mão e todo o ombro direito. Endireitou por fim o corpo, rodando a tampa. Inspirou sofregamente e olhou para fora, para cima.

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Ao cair da noite, uma trovoada estival abatera-se, subitamente, sobre a pequena aldeia alentejana. Nuvens negras, empurradas por algum vento de feição, tinham invadido o céu carmesim e principiado a descarregar abundantes bátegas de água e relâmpagos. Quem podia abrigar-se largou o que estava a fazer e desapareceu para lá dos umbrais das casas sempre brancas. Meia dúzia de visitantes iniciou, contristada, a viagem de regresso a Lisboa. Por detrás das vidraças, tapavam-se metais, murmuravam-se orações e fechavam-se as portas de dentro, para que as crianças, ao menos, não se assustassem com os relâmpagos. Procedimentos inúteis, porque os raios não poupam nada. Todos conheciam um ou outro caso em que trovoadas semelhantes tinham fulminado pessoas e animais, até em descampados. O ajudante do sacristão, que concluía as badaladas convencionais para a ocasião, galgou, com terror, os degraus da torre sineira, quando um raio quase o cegou, seguido dum estrondo que parecia fazer desabar a própria igreja.

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No céu noturno, a lua minguante afagou-o com uma ténue claridade e Gregório olhou, a tentar reconhecer o que o rodeava. Viu a parede de terra húmida à sua volta, viu a lama a brilhar no fundo do seu caixão, descobriu que era um crucifixo o punhal que segurava, olhou o seu braço pendente, percebeu o seu fato negro. Com olhar vago, pôs-se em pé, escalou os bordos da sua sepultura e, absorto, contemplou as cruzes, silenciosamente espetadas no chão do cemitério da aldeia do seu sogro. Ouviu trovões lá ao longe, viu as pás e as enxadas, subitamente abandonadas, mirou, novamente, o crucifixo com vestígios de fusão, provocada por um braço de raio e apalpou a sua cabeça ferida pela queimadura de alta voltagem...
Recordou-se, então, dos avisos do seu médico, acerca dos perigos de acidente cardiovascular, para quem leva vida competitiva. Lentamente, passo vacilante, braço balouçando, encaminhou-se para a primeira casa da aldeia, onde uma família de camponeses, à volta da mesa rústica, engolia a ceia frugal, comentando os malefícios agrícolas de uma chuvada fora de época.

Joaquim Bispo
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(Este conto de 1976 obteve o 2º prémio de um concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos…, em 2009, integrando a respetiva coletânea, e foi publicado no número 9 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2008)

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