Mostrar mensagens com a etiqueta liberdade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta liberdade. Mostrar todas as mensagens

10/02/2024

O muro global

 


Na reunião de Agenda da estação de televisão, já se notava a agitação própria do final. Tinham sido distribuídos os serviços de política nacional, os desportivos, os criminais e os de sociedade. Só faltava um
fait divers. Alguém adiantou a informação de que o furtivo graffiter ShameU andaria a pintar um novo painel.

Este artista de rua emergente tinha vindo a ganhar relevância e visibilidade com impressivas pinturas a spray de médio e grande formatos, sempre de temática provocatória. Não tão genial, nem tão difícil de encontrar como o quase mítico inglês Banksy, ShameU suscitava, no entanto, cada vez mais curiosidade pública. Vhils, de projeção internacional, ganhava em popularidade, mas aplicava-se numa área diferente — a intervenção mecânica em paredes, jogando com os diversos matizes das camadas subjacentes. Também as instalações parietais de Bordalo II, a partir de materiais industriais reutilizados, suscitavam admiração além-fronteiras. Na técnica do graffiti a spray, já tinham brilhado inúmeras vezes no ecrã os prolíficos Smile, Styler, Odeith e outros. ShameU, pelo contrário, era quase desconhecido do grande público, e tinha fama de maldisposto.

Eu faço isso! — decidiu Edite Silva, sacolejando a cabeça para afastar uns fiapos de cabelo que lhe tocavam nas pestanas.

Terá sido a curiosidade pessoal que levou a subdiretora a assumir este trabalho de rua. Ou uma vontade de ser associada no futuro a esta celebridade nascente. Era conhecida por ter apetência pelos media cor-de-rosa.

A assistente fez o contacto e combinou os pormenores: seria à tardinha, num muro de suporte de uma escarpa sobranceira a um acesso rodoviário na Pontinha.

Tem de ser mais cedo. Diz-lhe para estar lá às 4!

À hora combinada, com um operador de reportagem a tiracolo, Edite aproximou-se do graffiter que, empoleirado numa plataforma, rodeado de latas de spray e de máscara protetora na cara, ia compondo a imagem que idealizara, num muro de uns cinco metros de altura já muito sobrerriscado de pichagens antigas.

O trabalho estava no início. Em primeiro plano, a toda a altura, sobressaía o que parecia vir a ser a Estátua da Liberdade de Nova Iorque, vista de costas.

Uns miúdos que já por ali andavam, aproximaram-se mais, ao reconhecer a estrela televisiva. ShameU pousou a lata de spray que estava a usar e desceu. Aceitara a entrevista decidindo que “A televisão é uma oportunidade top” e esperara a equipa de reportagem trabalhando, mas vagamente constrangido. Toda a sua estratégia passava pela divulgação da mensagem, mas não tinha simpatia pelos grandes media.

Apresentados, Edite, expedita e decidida, delineou o que pretendia:

Começamos por conhecer o seu percurso, o que faz e porquê. Eu vou-lhe fazendo perguntas, enquanto o repórter de imagem vai mostrando o seu trabalho. No fim, teremos de fazer uns planos de corte, para montar a reportagem. Ok?

O graffiter assentiu, um pouco atarantado com aquela velocidade toda.

Vamos lá! — comandou a jornalista. Pigarreou ainda um pouco, a aclarar a voz, e começou: — Hoje viemos conhecer um graffiter, um talentoso artista de rua. ShameU, há quanto tempo pinta, o que pinta, e porquê? Fale-nos um pouco de si!

No secundário já tinha “jeitinho” para o desenho. Infelizmente, não tive nota para entrar em Belas-Artes. Fazia parte de uma crew que assinava todos os muros vazios que encontrava. E de vez em quando fazíamos umas figuras pop-art e letras muito perspetivadas. O que me trouxe para o graffiti de intervenção foi a exigência ética de denunciar os crimes da América. Tinha acontecido o assalto sem justificação e a destruição do Iraque, e ninguém parecia importar-se; muitos até apoiavam a carnificina. Morreram centenas de milhares de iraquianos. Inocentes. Exceto o exemplo corajoso de Carlos Fino, a voz do dono passava uma mensagem mansa de justiça e normalidade. Daquele ato bárbaro, ao nível de um Hitler. Uma injustiça brutal, o mal puro à solta.

Foi então que começou a pintar os muros da cidade?

No princípio, a imagem era, para mim, uma perda de tempo e de tinta. A mensagem era tudo. Uma frase, a negro, a denunciar os massacres infligidos pela América aos povos era o necessário e suficiente. “A matança de Bush já atinge os duzentos mil civis”, por exemplo. Quase sempre acrescentava o link da Internet com essa notícia. Depois percebi a força das imagens, sobretudo ao ver as pinturas do Banksy. O que não impedia a frase forte, rápida de aplicar em qualquer muro, a denunciar as canalhices da época; por exemplo: “Obama matou hoje mais 17 crianças no Paquistão”.

Parece então que você, com tantos atentados aos direitos humanos por esse mundo fora, escolhe os Estados Unidos como “o mau da fita”!

A minha crítica é mais um queixume. A América, como superpotência ultradesenvolvida, tem uma responsabilidade especial. Ela é glorificada pelas massas, apregoa-se como um farol de liberdade, mas não passa de uma carcereira implacável. Existem hoje mais de mil bases militares norte-americanas fora dos Estados Unidos, espalhadas por todo o planeta. E ai do país que eleja um governo que ela não aprove. Pode ser o mais querido pelos seus povos… o mais certo é ser boicotado, sabotado, invadido. Veja os casos de Cuba, do Iraque, da Líbia!

Eram países comandados por ditadores sanguinários, certo? Você defende as ditaduras? — reagiu Edite, provocatória.

Aqueles a quem a senhora chama ditadores foram, muitas vezes, os líderes que retiraram os respetivos países de baixo da pata colonialista. Por isso, o Ocidente não lhes perdoa. Promoveram o desenvolvimento, retiraram milhões da pobreza. Foram heróis para os seus povos — ShameU gesticulava, acentuando as palavras com movimentos largos. — É certo que, muitas vezes, foram ingénuos, como crianças inexperientes, deixaram-se deslumbrar e cometeram erros. Por eles devem ser criticados. Mas faz sentido que eu seja mais crítico para com eles do que para com os “adultos”, isto é, as nações ricas, que gargarejam direitos humanos, mas não têm a mínima compaixão pelas pessoas reais? Como a América, que substitui os “ditadores” por guerras civis, que matam centenas de milhares ou milhões de inocentes. Os povos não precisam de ajudas genocidas. Quando as condições ficam reunidas, libertam-se dos opressores, como Portugal se libertou.

Mas a América, como lhe chama, pode cometer erros, mas é uma democracia...

Infelizmente, a América, mesmo classificada de democracia, faz quase sempre parte do problema e poucas vezes da solução. Talvez para tentar esconder os indisfarçáveis níveis de racismo, de pobreza, de faltas de acesso à saúde e à educação, que por lá são tratadas como virtudes liberais. Não creio que chamar-lhe democracia traga algum consolo às famílias das vítimas dos morticínios provocados pelas administrações americanas. Num sistema político mundial que se regesse pela justiça e pelos apregoados direitos humanos, Bush teria comparecido perante um tribunal marcial, por crimes contra a Humanidade. Que eu saiba, nem sequer foi preso. Nem se pôs essa hipótese! Imunidades e impunidades de dirigentes parecem tiques próprios de regimes imperiais e tirânicos. Que admiração podem suscitar? — continuou, empolgado. — Para qualquer deserdado do Mundo, é indiferente se chamam democracia às apalhaçadas eleições internas que uma superpotência faz. Nem sequer pode votar nelas! Interessa-lhe é que não sabote os governos que o seu país elege; muito menos que lhes vá lançar bombas em cima.

Já vi que você tem a cartilha bem estudada…

Infelizmente, não! Navego muito à vista — ripostou o graffiter, de cenho contristado. — Demasiadas vezes ainda acredito nos noticiários. Mas depois percebo que são eles que nos formatam o entendimento, de tal maneira que aceitamos as maiores desumanidades, só por virem defendidas pelos meios de comunicação. Acha ético que a comunicação social — que devia ser uma força formadora de mentes livres — continue a veicular os sofismas americanos, depois da mentira do Iraque? Uma comunicação alinhada com um dos lados é um ataque à liberdade. É uma agente ativa do encarceramento mundial.

A sua atitude é muito negativa. Quer dizer que não acredita na Liberdade, nem nos meios de comunicação para a defender?

É, é isso mesmo! — assegurou, convicto. — O Wikileaks faz mais pela informação independente e pela liberdade dos povos do que a comunicação social mundial. Só depois das denúncias de Assange, de Snowden e de Manning é que já se vão ouvindo críticas ao presidente americano. Que, atualmente, é um psicótico que está a retirar os Estados Unidos de todos os acordos, a erguer muros em todas as relações internacionais e que usa o garrote económico como arma de submissão dos povos. Em termos de ferocidade, não é melhor do que os outros.

Então, o que significa essa Estátua da Liberdade que você está a pintar?

Como ícone da América, representa aquilo em que ela se transformou. Será uma estátua da liberdade anafada, vingativa, estúpida, de coroa estrelada cor de laranja. O braço em tensão vai exibir a força musculada com que ela e os seus tentáculos se empenham a erguer muros por todo o mundo — um planisfério que vai estender-se por trinta metros desta parede, até se perder além no talude e nos arbustos, supostamente estendendo-se até ao infinito. Este mapa será cruzado em todas as direções por um labirinto de muros, sobre os quais ela vai aplicando intermináveis rolos de arame farpado. Espero que a mensagem seja suficientemente evidente.

Muito bem; vou deixá-lo a terminar a sua obra. Desejo-lhe boas inspirações!

Meia hora depois, numa sala de montagem, Edite dava indicações ao operador para a sequência dos planos da entrevista.

João, tenho agora uma reunião. Mete o áudio da parte inicial, em que ele diz que o Bush matou civis e aquelas cenas do Iraque, mas sobre a imagem da parede ainda repleta de pichagens antigas. Podes meter também a parte do Trump. Não metas o Obama, nem a parte em que critica os noticiários. Acaba com um zoom out dele em cima do escadote, a pintar a imagem da Estátua da Liberdade. Não passes do minuto e meio! A peça vai para o ar perto das 9. 

Joaquim Bispo

*

Uma versão reduzida deste conto de 2017 foi selecionada para a 4ª edição (janeiro/fevereiro de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 80 a 83):

https://drive.google.com/file/d/1Pjsw0lKy356144o1kqxLX8jVFItxuQNo/view

*

Imagem:

Alguns dos centos de graffitis em um dos centos de muros.

Belém, Cisjordânia, Palestina.

* * *

10/08/2017

Um dia de sonho


O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços.
Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.
E chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de cachorros. Santa mãe cadela!
Ladrou de alegria; os outros deram-lhe as boas vindas, em latidos cristalinos. Voltearam em perseguições que alternavam com fugas. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Este era o seu dia mais feliz.
.
Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e lá em baixo exibia-se, arrogante, o sinistro Rottweiller do bairro.

Joaquim Bispo

* * *

Imagem: Ross B. Young (1955–), Pointer & Quail.

* * *