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10/04/2018

O suplício de Pigmalião



Com um pedaço de barro se fez o Homem — diz o texto antigo.
Com uma porção de pasta de moldar encho as mãos. Amasso-a entre dedos e palma, longamente. Aquece, amolece, como massa de pão. A tepidez potencia a impressão de textura de pele. Sinto que não há nada mais sensual.
A pasta revela-se infinitamente moldável, maleável, modelável. Obedece docilmente aos movimentos não pensados das minhas mãos.
Sem que as procure, surgem-me formas anatómicas. Como não, se vivemos rodeados delas, nos seres, nas pessoas? Crio espessuras, rotundidades; ensaio estiramentos.
Surgem cabeça, tronco, ancas, primeiro como meros esboços de volumes, depois em refinamentos de formas femininas. Crescem membros delicados. A textura do material, acetinada, torna-se cúmplice. Irrompem seios, face, cabeleira, dedos.
Completa, perfeita, a figura feminina reclina-se na minha mão, mansamente. A ilusão de vida é total. Uma emoção perturbadora apodera-se de mim.
Alucinado, invoco os olímpicos, mas esses deuses que se apiedaram de Pigmalião, quando o escultor se apaixonou pela sua obra, mantêm-se incomunicáveis.

Um suplício é acrescentado à lista mitológica e uma sombra de tristeza primordial instala-se, profunda, nos meus olhos.

Joaquim Bispo

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Uma versão deste miniconto integra a antologia do I Concurso de Minicontos Autores S/A — Autores S/A e Editora Penalux, Brasil, 2013.
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Imagem: Jean-Léon Gérôme, Pigmalião e Galateia, 1890.
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10/07/2016

toda. A semana



(Continuação:) (...)tava no lugar do condutor.

Na segunda-feira, estava um carro estacionado mesmo em cima da passadeira de peões que dá acesso à minha casa. Incomodado, afixei-lhe, a meio do para-brisas, um pequeno autocolante amarelo, que trago sempre comigo, que dizia: Estacione bem — Respeite os outros.

Na terça-feira, deparei com o mesmo carro estacionado na passadeira. Indignado, apliquei-lhe, desta vez, um outro pequeno autocolante vermelho, que dizia: Mal estacionado — Sujeito a reboque.

Na quarta-feira, o carro estava outra vez na passadeira. Irritado por a minha ação pedagógica não resultar, levantei-lhe os limpa para-brisas.

Na quinta-feira, lá estava o carro na passadeira. Exasperado com tanta falta de respeito pelos outros, coloquei-lhe um palito na válvula do pneu dianteiro direito. O ar ficou a vazar.

Na sexta-feira, o carro estava, uma vez mais, na passadeira. Furibundo, puxei da chave de casa e apliquei um risco profundo a todo o comprimento do carro.

No sábado, o carro já não estava na passadeira, finalmente. «Há pessoas que só entendem a linguagem da violência» — pensei.

No domingo, verifiquei, com horror, que o para-brisas do meu carro, bem estacionado, estava estilhaçado. Uma perna de um tanque de lavar roupa, em cimento, esprei(...)

(Continua na primeira linha.)
Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, Espirais, 1953.

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(Este miniconto bebeu inspiração na estrutura rítmica de um pretenso “poema do budismo tibetano” e persegue uma estrutura circular. Foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

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10/03/2016

Génesis e Apocalipse



Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.

Alvorada

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados, sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se, cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a Terra inteira.

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Crepúsculo

As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50 milhões que restam — retiraram-se para junto dos polos. Creio que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

Joaquim Bispo

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(Estes minicontos foram publicados no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009.)

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10/09/2015

Um som no escuro


Naquele setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes para espraiarem por paragens além-fronteiras o otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso.

À noite, em Vitória, – já país basco –, a notícia do dia era a morte de mais um «carabinero». Pressentindo o fim iminente de Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados.

Os viajantes petiscaram num bar e voltaram à estrada, procurando um local para acampar, como fariam em Portugal. Uns quilómetros à frente, em marcha lenta, vislumbraram no escuro ao lado da estrada o que lhes pareceu um terreno plano, e entraram. Ainda de faróis acesos e motor a trabalhar, foram rapidamente cercados por vários guardas que iam a passar em dois jipes. Tentaram explicar-se em espanhol, mas, porque falassem suficientemente bem, ou porque a matrícula começava pelas mesmas letras que as de Burgos, ou pela ideia apetecível aos militares de que tinham apanhado dois terroristas, não estava a ser fácil convencê-los da origem lisboeta dos intrusos. As cabeleiras “revolucionárias” também não ajudavam.

Entretanto, chegaram mais guardas, comandados por um graduado. Estes, nem dúvidas tiveram. Ao verem aquele aparato, saltaram dos jipes em atitude de grande sanha bélica e, sem darem tempo a qualquer explicação, gritaram para que os suspeitos saíssem do carro. Tensos. Os jovens saíram, ofuscados pela luz forte dos faróis, para logo ouvirem ordens de «manos al aire!», quase abafadas pelo matraquear metálico de muitas culatras puxadas atrás.

Quem vos conta isto levantou as mãos lentamente, virou-se e apoiou-as no carro, rodando o rosto para o lado contrário ao dos guardas, para que nem o olhar pudesse fornecer qualquer pretexto ao nervosismo revanchista dos carabineiros. Durante uma eternidade de segundos, esperou ser trespassado, senão por um sem-número de balas à queima-roupa, com certeza por aquela que só obedece ao diabo e que é disparada até pelas espingardas descarregadas.

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Felizmente, a história não acabou ali. Enfim convencidos, os militares sugeriram um caminho mais à frente, que os jovens percorreram por algumas centenas de metros até encontrar o que lhes pareceu um espaço aceitável para acampar. Mas não para soltar o sono, que aquele terrível som metálico no escuro matraqueou toda a noite nas suas cabeças.
O alvorecer revelou-lhes a envolvência que as trevas de véspera não permitiram: tinham montado a tenda no terreno fronteiro a uma mansão rural, a menos de cem metros da porta…
Realmente, procurar acampamento de noite tinha as suas surpresas, mas o acaso, sempre brincalhão, voltava a ser benévolo, convidando-os à despreocupação habitual.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 9 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2008)


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