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10/08/2020

Querida mãezinha!


Compreendo quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, embora eu não tenha razões de queixa. Mal vejo a minha.
É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares.
Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o meu caso: “Como evitar dar o flanco e recuperar a iniciativa”. Textos obrigatórios: os de Maquiavel e A Arte da Guerra de Sun Tzu. Percebi rapidamente que qualquer dos autores transmite ensinamentos muito úteis para a sobrevivência de um genro, bastando substituir, em qualquer dos aforismos, a palavra “inimigo” por “sogra”. Vejamos alguns exemplos de A Arte da Guerra:
O guerreiro superior ataca enquanto o inimigo está projetando os seus planos.” Isto é, quando perceberes que a tua sogra está a pensar ir lá a casa mostrar os álbuns de fotografias das férias, deves ligar-lhe anunciando quão pesaroso ficas por não poderes recebê-la, porque vais em serviço para a Austrália.
Sê completamente misterioso e confidencial, até ao ponto de seres silencioso.” Isto é, não dês qualquer pista à tua sogra sobre os teus passos, os teus trabalhos, os teus horários. Responde com evasivas, de modo que nada lhe permita saber onde estás, seguir-te, espiar-te. Se fores encurralado, finge que perdeste a voz ou transmite informações falsas, e assim “o adversário não pode combater contigo porque lhe dás uma falsa pista.”
Suspeito que A Arte da Guerra tenha sido escrito como estudo prévio para um projeto mais grandioso sob o tema: “Táticas para sobreviver à própria sogra”. Infelizmente, essa obra não chegou até nós, talvez por algum equívoco estratégico. As sogras não brincam. No entanto, um outro preceito revelou-se inestimável:
Faz algo por ele, para lhe captares a atenção, de maneira que possas atraí-lo, descobrir os seus hábitos de comportamento, de ataque e de defesa.” Isto é, se quiseres viver em paz, procura conhecer a tua sogra, como costuma atacar, o que pode desencorajar esses ataques; mantém-na constantemente sob vigilância e faz com que ela confie em ti.
Um dos grandes problemas das sogras é sentirem-se isoladas e inúteis. Arranja-lhe atividades que a entretenham: apresenta-a a um grupo de canasta; inscreve-a em grupos excursionistas; matricula-a em aulas de danças de salão; convence-a a ser escritora e a enviar textos para concursos literários. Se, mesmo assim, lhe sobrar tempo para azucrinar a tua vida, interessa-a em projetos relevantes de grande fôlego, daqueles que ocupam uma vida inteira: acabar com a fome no mundo, descobrir a cura da estupidez; encontrar um sistema político sem governantes corruptos. É praticamente impossível? Eu sei — é essa a ideia.
Felizmente, após muitas diligências pouco frutuosas, encontrei a solução, o que me trouxe, outra vez, calma e esperança no futuro: inscrevi-a em vários sites de corações solitários, com o nome “Gostosa carente”. Quando eu já desesperava e acreditava que o coração dela estava irremediavelmente empedernido, apaixonou-se por um idoso folgazão, e já não quer saber da filha nem do genro para nada. Anda alegre como um passarinho.
Agora, fiquem bem, que tenho uma genuína gostosa à minha espera, para uma batalha sem quartel, sem medo de sermos interrompidos por invasões de panelões de feijoada.

Joaquim Bispo

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Esta crónica foi uma das 50 selecionadas para compor o e-book “Crónicas humorísticas” do coletivo Covil da Discórdia:
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Esta crónica foi também selecionada para a 20ª edição (março/abril de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra — páginas 109 a 110.
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Imagem: James Whistler, Retrato da mãe do artista [Whistler's Mother], 1871.
Museu de Orsay, Paris.

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10/02/2019

Breve Dissertação sobre o Palavrão



Caros circunjacentes:
A minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos:
O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca afora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do asfalto faz colidir os interesses particulares. Então, nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as características ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua família. São expressões belicosas cuja significação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo, «Rastilho curto!», o que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele.
No entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitupério não precisa de coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena. Para tanto, basta a entoação colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista em estupor, como touro lidado: «Ó meu caro amigo: Vodafone!»
A forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado local, diversos dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se adequam melhor às características do enxovalhado. As notícias da política internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções ortográficas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: «Vai pà Bósnia, sua Herzegovina!» Se fosse agora, talvez dissesse «Vai Bachar al-Assad com Brexit, sua Guaidó!», o que me parece de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.

Outro significado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo, pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um palavrinho, como pirilau de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela aspiração de cinzas vulcânicas”.
O mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das crueldades — é a “doença psicológica que se caracteriza pelo medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação da sua própria enfermidade!
Estes vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérfido subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica, também posso autoqualificar-me como Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso por abominar redundâncias.
A terceira aceção de “palavrão” é “expressão pomposa e empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo. Locuções grandiloquentes e/ou de sentido ininteligível são sempre de coartar em comunicações a grandes auditórios, ainda que académicos. Por mim, cultivo o discurso despretensioso, matizado apenas por vocábulos lhanos e percetíveis por todos.
Tenho dito!
Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este texto integra — páginas 35 a 36 — a 13ª edição (jan./fev. de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:
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Imagem: Rafael Bordalo Pinheiro, O Manguito, c. 1884.
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10/08/2018

A primeira refeição do dia


A primeira refeição do dia é a mais importante.
(Dos sites nutricionistas)

Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos, pratos quentes.
Acho que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite, e o prato com queijo e carnes frias, iam para a mesa esvaziá-los, voltavam a recarregá-los, uma e outra vez. Abarrotavam tigelas com flocos de milho, de amêndoa, com fibras, com mel, chocolate e fruta. Juntavam leite, iogurte, café, sumos de frutas. Equilibravam pirâmides de fatias de Emmental, chaminés de Chèvre, com a ajuda de morros de Roquefort, acompanhados por arquipélagos de ovos quentes, salsichas fritas e barris de sumo de laranja para empurrar.
Filas de empregados afadigavam-se a repor as provisões nas mesas do bufete. Dezenas de pares de olhos espiavam a sua chegada à porta da copa. Hordas de pretensos esfomeados escudados em pratos vazios preparavam-lhes emboscadas no primeiro ângulo de mesa. Homens da Michelin em banha lançavam-se sobre os acepipes, como gaivotas sobre sobras de peixe, engolindo fatias de salmão fumado enquanto bicavam os adversários mais próximos. Por vezes disputavam a mesma tira de bacon frito ou, em gesto rápido, surripiavam a tosta mista que o vizinho se atrasara a retirar da bateria de tosteiras. Rebatiam com saladas de tomate, de couve roxa, de beterraba. Ou com travessas de ananás, pêssego, melão e maçã.
Ai do que não fosse ligeiro e audaz. Quando chegasse à mesa das carnes frias, já só encontrava um ou outro grão de pimenta; quando chegasse à mesa dos queijos já só sentia o cheiro. O seu empenho incidia então no desenvolvimento de táticas mais eficazes de captura de víveres no fornecimento seguinte.
Por fim, mitigavam a fraqueza com uns doces: potes de compotas, salvas de bolo-mármore, taças de tiramisu, tigelas de mousse de chocolate, travessas de leite-creme.
Quando pareciam saciados, começava a fase de aprovisionamento, porque o dia de visitas turísticas na capital e arredores se adivinhava longo e desgastante. Fileiras de sanduíches recheadas de salpicão, queijo flamengo, pasta de atum, ovo mexido e picles — para desenjoar — alinhavam-se obedientes em camadas sobrepostas no fundo das malas de mão e das mochilas. Alguns convivas preparavam tantas que se esperava encontrá-los a vendê-las nos pontos turísticos mais frequentados, para pagar a viagem. As que sobrassem ainda deviam dar para acabar com a fome em algum país do corno de África.
Budapeste é bonita, mas o melhor são os pequenos-almoços. Inolvidáveis. Ainda esta noite voltei a sonhar que me deliciava com almôndegas à húngara que apanhava às mancheias. Acordei mesmo a tempo de evitar aquela parte desagradável dos garfos espetados nas costas da mão…

Joaquim Bispo
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Imagem: Josefa de Óbidos, Cesto com bolos e toalha, 1660.

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10/11/2017

Dia do Juízo Final


(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista)

Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem — fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa de que as crianças não engravidem!».

A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no botão do Apocalipse. À mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi por isso que só cheguei agora.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giorgio Vasari e Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.

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10/05/2017

A Vingança de Zeus


Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.

Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.
Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará por ali, não se prolongará para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adoção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última alternativa, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi isso que os membros do casal alemão decidiram ele de ascendência grega, 29 anos, e ela de idade semelhante , mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será que, a partir daí, o casal entregou o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de todos os homens, pelo menos dos imaturos. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspetiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao inseminador que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas noturnas do marido.
Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a vizinha, sua mulher, confortava-se com a entrada da receita extra; o grego esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais, e com dupla garantia para a cria. Pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi neste ínterim que Zeus quem mais? interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado roído de inveja da sorte olímpica do vizinho porque ele, apesar de ser o todo-poderoso deus dos deuses, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou à deusa que deseja.
Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal infértil começou a duvidar da eficácia dele para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora também o vizinho era infértil só que, desta vez, com consequências ainda mais devastadoras.
O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os seus filhos não eram seus e supremo golpe não poderia vir a tê-los.
Podemos conjeturar que ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tenha tentado desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro ou de técnico de televisão por cabo, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.
Do casal greco-alemão de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, propriamente dita, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.
O vizinho, que também pode vir a precisar, não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra salvo seja conforme combinado, mas que nunca garantiu a consecução do projeto.
O caso estava para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild — porque pela boca de Zeus jamais o saberíamos…

Joaquim Bispo

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Imagem: Nikias Skapinakis, Leda e o Cisne (?), Coleção Berardo (?).

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(Esta crónica foi publicada no número 27 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2010.)

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10/03/2015

Os ratos




Pelo Carnaval, encontrei um amigo que já não via há uns anos. Falou-me com entusiasmo de uma compra que entretanto fizera — uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insistir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu amigo avisou-me:
— Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.

Na manhã do sábado seguinte, rumei às Beiras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.
Efetivamente, o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma barragem, com a sombra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomenda para um fim de semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicionais: antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forrados a madeira.
Mas, realmente, está infestada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que o meu amigo lá teria deixado — pacotes de sumos, garrafas plásticas de refrigerantes, caixas de flocos — tudo misturado com xixi e caganitas. O aspeto da cozinha era desolador.

Foi uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provocou-nos sentimentos perversos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma meia dúzia de pastilhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.

Ao romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enorme. Como se um bando de gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolongada. Não se assemelhava nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o reboliço aumentava.

A minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no teto do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, espreitei.
O que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos copulava, freneticamente, num desespero alucinado. Corriam. Rebolavam. Saltavam. Trocavam continuamente de parceiro. Formavam-se mesmo, molhos de três ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão.

Fiquei um minuto atónito, a olhar para aquele cenário, sem compreender o que estava a acontecer; a perguntar-me porque é que os ratos se estavam a comportar daquela maneira. 
A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei gelado. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrível estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca providencial da minha mulher!

Joaquim Bispo
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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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(Este conto foi o primeiro que publiquei na revista literária virtual Samizdat, no número 7, de agosto de 2008)