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10/06/2018

Santos Populares



— Foi aqui que nasceu o António, em 1195, onde está agora esta igreja com o nome dele. — O homem de cabelo crespo e barba alargava o gesto enquanto caminhava. — Uma fidalga deu-o à luz a 15 de Agosto.
Então, por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho? Amanhã. — estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta esbranquiçada.
É o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar cunho religioso a umas festas das colheitas que havia na altura. Mas esta noite é que são as grandes festas populares.
Bonita igreja!
O povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruida através de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas, e pediam umas moedas, como ainda hoje.
Já era venerado!?
Sim, e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns olhares irónicos às suas roupagens.
Ó, João, ele teve alguma formação? — perguntou o mais velho.
Estás mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá era bom!
Mas ele não era franciscano?
S. João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
Pedro, ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos que foram evangelizar os gentios de Marrocos e que foram mortos pouco depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos. Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
Ah, sim?! — O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras do companheiro.
Agora entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
Rumou também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
Bela terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas agora ninguém me tira Roma!
Os ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou fama a converter heréticos.
Já havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a procurar mesa e perguntou a S. Pedro:
Sentamo-nos?
Sim, sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se, pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
Estou impressionado! — S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
E ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em todos os bairros e faz-se uma competição de danças ao som de marchas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça para baixo ou roubam-lhe o Menino. — S. João não se continha e ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando lhe acontecia tal percalço. — Os pedidos são tantos e, às vezes, tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S. Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
Também ouvi dizer que fez carreira militar…
Essa é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma aparelhagem começou a tocar uma música popular.
Tratam-no bem na arte? — S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter parte das largas mangas no prato.
Sim. Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
Aos peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
Sim, mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos “irmãos pássaros”!
Acabada a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S. João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe muito sério:
Pedro, tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S. Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam um táxi e S. João acompanhou S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
Dá cumprimentos ao Chico! Diz-lhe que vou visitá-lo a Roma assim que acabarem as festas por aqui.
Depois, rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto. Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha pressa, que ainda faltava uma dúzia de dias para as festas em sua honra.

Joaquim Bispo

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Imagem: Nota de vinte escudos, 1964, Portugal.

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10/11/2016

A Vida Continua


Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquiteturais.
É nos cemitérios que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado, em vida.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a refletir o fado da emigração.
Quase sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.
Estar sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a “vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um ciclo de enterramentos.
Aos domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre panos bordados brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

Joaquim Bispo
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(Esta crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008.)
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