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10/08/2021

As mulheres da Ourela

 

As mulheres da Ourela são o amparo da casa. Robustas e determinadas, ganharam admiração e proteção das deusas primordiais. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando as ancas cheias. Como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Ourela, para lhes fruírem os meneios, em vez da rigidez de antanho.

Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante.

Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e, pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, tenteando o peso, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática religiosa, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas ourelenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.

Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Ourela voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro.

Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milheirais, melanciais e aboborais, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade, em setembro, feijoeiro a feijoeiro. Calcorreavam extensões enormes, dobradas, apanhando as vagens maduras para as cestas, que eram despejadas em panais, que eram atados em trouxas quando as pilhas transbordavam, que eram carregadas para o carro de vacas, que as levava para a eira.

Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida.

A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita.

Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém.

Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam segunda ao alvorecer. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!

Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Ourela amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas.

Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora do Alto. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Ourela, cantando modas menos religiosas que à ida.

Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a vulgarização do gás e a chegada da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas.

As mulheres da Ourela punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias, até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar!

Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.

Aos poucos, as mulheres da Ourela deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças.

Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Ourela voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado no rosto divino.


Joaquim Bispo

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Com o título “As mulheres da Paradanta”, este conto integra a coletânea resultante do X Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil, de 2016.

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Em 2021, também com o título “As mulheres da Paradanta”, foi um dos selecionados para a 28ª edição (julho/agosto de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 103 a 105).

http://revistaliteralivre.blogspot.com/2021/07/revista-literalivre-28-edicao.html

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Uma versão reduzida deste conto foi publicada na edição número 1703, de 18/08/2021, do jornal Gazeta do Interior.

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Imagem: Cariátides [figuras femininas esculpidas, servindo como suportes de arquitetura — colunas ou pilares] do templo Erectéion, Acrópole de Atenas, obra de 421–406 a.C. atribuída ao arquiteto Mnésicles.

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