10/12/2019

O tempo dos rebuçados




O primeiro encontro foi como uma caixa de rebuçados. Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. Mas também de uma das primeiras responsabilidades: a escola.
Nos dias de primavera, Orlando, de botas com sola de borracha feitas no sapateiro, palmilhava bem cedo os três quilómetros do caminho entre muros que separava a queijeira, onde morava com a avó, da escola da aldeia, cruzando-se com carros de bois, grupos de mulheres a caminho das hortas, um rebanho a atravessar de um terreno para outro. Se estava frio, apressava o passo a contornar uma ou outra poça de água, mala com cadernos a tiracolo, uma mão a aquecer-se no bolso, a outra a pegar no cabazinho da merenda. Daí a pouco, as letras, as contas, as brincadeiras de recreio e o almoço debaixo de uma olaia, com os outros dois miúdos que também vinham dos campos.
No regresso, o conforto do calor e da falta de pressa convidavam-no a alongar-se em observações da natureza: o lagarto verde esparramado ao sol que, não conseguindo intimidá-lo abrindo a boca vermelha, se esgueirava para um buraco das paredes; o rendilhado de alguns penedos; as poupas, os cucos, os pintassilgos. E a estranheza do mundo do tic-tic-tic ritmado dos canteiros, alguns bem jovens, em alguma das pedreiras adjacentes ao caminho. Um mundo que não era de rebuçados.
Um dia encontrou vinte e cinco tostões no recinto da romaria que o caminho atravessava. Rapidamente se esfumaram em rebuçados embrulhados em estampas de jogadores de futebol.
De inverno, a ida para a escola era mais monótona e mais simples. Era só atravessar o casario, desde a casa da avó, na aldeia. No regresso, a brincadeira com a restante criançada nos quintais e nos casarões familiares. Ao domingo, catequese à tarde e talvez apanhar moedas pretas e rebuçados lançados de alguma janela ou varanda no fim de um batizado. Os dias corriam sem preocupações, com pouca relação uns com os outros. E, de repente…
O primeiro encontro com ela foi como receber uma caixa de rebuçados. A festa era de carnes, da matança do porco e respetiva comezaina. A família alargada habitual estava reunida em casa de um tio por este motivo. Segurar, matar, limpar e desmanchar um porco exigia o concurso de vários homens. E o trabalho de lavar as tripas, preparar os recheios e encher com eles as farinheiras, as morcelas e as chouriças exigia o concurso de várias mulheres. Para também prepararem o banquete para todos aqueles adultos e respetiva miudagem.
Daquela vez, o tio convidou também uma família colateral, que não costumava estar presente neste acontecimento anual em casa de cada tio. E ela apareceu, linda e discreta. Devia ter mais um ano do que Orlando e era muito diferente das outras meninas que orbitavam o mundo dele. As outras eram como que irmãs, na proximidade de parentesco e nas brincadeiras estouvadas. Delfina — esse o seu nome —, não. Ela era outro mundo. Um mundo de arranjo e delicadeza. Os cabelos — oh, os cabelos —, caíam penteados, lisos, a terminar numa volta, sobre os ombros. Os olhos seriam castanhos como os cabelos? Eram suaves e sorriam. A compostura do vestido de golinha, apertado por um cinto do mesmo tecido, também tocou Orlando. E a graça e simpatia que irradiava deslumbraram-no durante toda a tarde.
Ninguém faz planos para se apaixonar, muito menos um menino de sete ou oito anos. Sabe que os homens e as mulheres se casam, mas não sabe muito bem por quê. E calcula que um dia também casará. Talvez por gostar de alguém.
A única experiência que Orlando tivera nesse campo não correra bem. A inconfidência de uma tia, à janela, quando passava Acilda, uma morena de trança, denunciara o seu enlevo encoberto: «Olha, vai ali a tua esposada!» A consequência fora a humilhação de um «Querias-me?! Pff…» que a morena lhe lançou quando o encontrou a caminho da escola e o deixou infeliz, a suspeitar que casar, ainda que gostando, era mais difícil do que parecia.
Orlando não falou a ninguém, sobretudo à desbocada tia, da perturbação que a recente conhecida lhe provocara. Não sabia dizer se era amor — aquilo de que os adultos falavam — o que sentia. Não sabia dar-lhe um nome. Sentia, sim, uma alegria íntima e serena, que não se manifestava por cabriolas, mas também uma inquietação, um temor de não conseguir aprofundar aquela afeição. Sentia ternura e um querer bem que não sentira, talvez, por ninguém.
Nas suas orações antes de adormecer, passou a lembrar e interceder por aquela criatura doce e bela por quem estremecia. O máximo de harmonia com ela vislumbrava-o numa atualização da estampa pendurada por cima da sua cama: ambos de mão dada na travessia de uma ponte frágil sobre um rio caudaloso, mas protegidos por um anjo-da-guarda.
Por aqueles dias, Orlando recebeu uns três ou quatro rebuçados. Logo decidiu que um seria para ela, para lhe oferecer, como prova de bem-querer. Por uma lamentável desatenção das forças celestes, porém, Delfina adoeceu. Orlando, de rebuçado no bolso, não encontrou a estremecida do seu coração nos dois dias seguintes.
No terceiro dia, no regresso à escola depois de almoço, tão alheado ia que automaticamente fez o que não queria: desembrulhou o rebuçado e meteu-o na boca. Chegou a sentir-lhe o doce. Espantado, desagradado consigo próprio, retirou-o da boca, como blasfémia. O rebuçado era para ela, estava prometido em intenção. Tinha de lho entregar, ainda que lhe apetecesse continuar a saboreá-lo.
Resolveu entrar na venda do pai de Delfina e confiar-lhe o rebuçado para ele lho entregar. Temia, no entanto, que algum cliente percebesse o enamoramento no seu gesto e fizesse algum comentário que o envergonhasse. Ganhou coragem e entrou, mas a venda estava vazia. Mesmo o pai de Delfina devia estar lá para dentro. Pensou chamá-lo, mas isso já ia além da sua coragem.
Deixou o rebuçado, embrulhado e um pouco agarrado ao papel, em cima do balcão de mármore e saiu em direção à escola. Não era isto que tinha idealizado, mas cumprira a promessa, tanto quanto conseguira.
No regresso, entrou na venda, mais uma vez deserta. O balcão estava limpo. Nem sinal do pequeno volume roliço do rebuçado. Teria Delfina chegado a recebê-lo? Pouco provável, concedeu. Com certeza que o pai o tinha deitado fora, sem suspeitar da sua importância.
Quando voltou a vê-la, já tinha passado uma semana ou duas e o enamoramento, por falta de alimento, murchara. Casar devia ser muito mais difícil do que parecia.
Era o tempo dos rebuçados e dos berlindes. O que parecia importante num dia esquecia-se alegremente no dia seguinte. O futuro é que traria a compreensão da importância de cada coisa. Talvez.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 207 a 210 — a antologia “Esse jeito doce com que tu me acaricias” da Editora Jogo de Palavras, em 2019:


e obteve o 5º lugar, na categoria Conto, no I Prémio Literário Pescaria (Brasil), de 2015.
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Imagem: Bartolomé Esteban Murillo, Meninos jogando aos dados, c. 1675.
Antiga Pinacoteca, Munique.
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10/11/2019

A zorra


A vida de Anselmo Carvalho, sempre acompanhada por uma corrente de consciência palradora, decorria num ramerrame pontuado pela regularidade pendular das refeições domésticas, a vacuidade dos programas televisivos e a futilidade dos seus passatempos, em que avultava o sudoku. Há muito tinha deixado o interior para conquistar a grande capital, que muitas vezes se revelara uma amante perversa. “Porra!” acudia-lhe aos lábios quando se lembrava desses tempos de desenraizado.
Na sua meia-idade, cultivava uma postura pouco ativa e vagamente agreste, como a árvore que lhe dava o sobrenome, e estava sempre disposto a deixar para melhor oportunidade alguma tarefa agendada. Trabalhar e competir tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e apaziguado dos antigos afãs, Anselmo só queria sossego, algum silêncio, e desfrutar a boa-vida. Junto a um sofá onde fazia umas sestas tinha um pequeno quadrinho com a frase: “Que bom é não fazer nada e depois descansar!”
Nessa manhã acordou com um auspicioso sinal: o consolo gratificante de uma ereção. Era uma prova de vida mais relevante do que a habitual confirmação de conseguir mexer o dedo grande do pé, em cada início de mais um dia. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico, deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só podia correr bem.
Pouco depois de verificar que a manhã prenunciava brindá-lo com as primeiras chuvas de outono, pegou no caderninho com problemas de sudoku que o entretinha por horas e instalou-se ao comprido no sofá da salinha, cabeça no braço do lado da janela, para apanhar o máximo de luz no papel.
Um sorriso subtil aflorou-lhe os lábios ao ouvir a chuva a bater na vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro, e outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Anselmo declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com ele. “Quanto menos chatices, melhor!”
No fim dessa manhã teve a satisfação orgástica de terminar um problema de 16x16 que já o vinha deliciando havia três dias, como metodicamente anotara na margem do caderninho. “Ah, dia abençoado!”
Depois de almoço, como a chuva parara, deu um passeio até ao parque próximo de sua casa. O tempo estava fresco e agora eram brancas, em borbotões de algodão, as nuvens que evoluíam no céu estranhamente luminoso. Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual estas nuvens, autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma pareceu-lhe uma ovelha, tão presente na sua infância no campo; outra, um torso feminino deitado.
Cães de apartamento frustrados, na ânsia de encontrarem almas-gémeas pelo cheiro, arrastavam cinquentonas solitárias pela trela, ao longo das estreitas e sinuosas alamedas em que já eram evidentes os despojos que o outono impõe às árvores. “Por baixo da roupa, todas vão nuas”, pensou.
Junto ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro. Diligentes e sem hesitações, os insetos negros espalhavam no chão em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva da manhã tinha ensopado — sementes, pedaços de talos, folhas e carcaças de bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a recolhê-los.
Deu uma volta pausada pelo parque. Num recanto onde a autarquia instalara mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava quatro compenetrados jogadores de sueca, apreciando provavelmente os seus requintes de estratégia. “Muito reformado há em Portugal!” Anselmo não se aproximou; cultivava o individualismo dos autossuficientes conterrâneos. “Formigueiros, não!”
Saboreando o sol oblíquo que alegrara a tarde, avançou para uma zona mais recôndita que confinava com uma área de mata. Ao fundo de uma álea, avistou a mancha arruivada de uma zorra, confiante, mas alerta, em incursão em território adverso. “Que bonita!” Há quanto tempo não estava tão próximo de uma... Seguiu-a de longe, a observar o seu deambular furtivo e elegante. Aos poucos, embrenhou-se mais e mais na mata, o entusiasmo da ruptura a fazer-lhe brilhar o olhar.
Era quase noite quando Anselmo chegou a casa. A mulher já estava preocupada, já tinha pensado telefonar para os Bombeiros e para a Polícia a saber se tinha havido algum acidente com o marido. Toda a aflição desapareceu quando ele se desculpou com uma opção errada:
Porra! Quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos!
Nessa noite dormiu de um sono só. No dia seguinte retomou o ramerrame quotidiano, com as divagações da consciência, os programas tontos da televisão, e, sobretudo, o seu sudoku.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 7 a 10 — a antologia “Literatura de Outono” da Editora Jogo de Palavras:

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Imagem: Santiago Rusiñol, Carreiro num parque, 1920–1925.

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10/10/2019

O meu 25 de abril



Antes. É-me praticamente impossível fornecer aos meus compatriotas mais novos uma ideia clara de como se vivia em Portugal durante o Estado Novo — o regime que vigorou entre 1926 e 1974, sensivelmente com os mesmos valores: Deus, Pátria, Família. Ainda pensei descrever uma lista de situações que contextualizassem a vida de então, mas desisti de o fazer, tão descomunal me parece a tarefa.
Então, a 25 de abril de 1974, na sequência de uma reivindicação corporativa, os oficiais menos graduados das Forças Armadas, capitães e majores, sobretudo, lideraram uma ação militar que derrubou o regime, ato que foi imediata, entusiástica e maciçamente apoiado pela população. Com tal unanimidade, durante os meses seguintes, nem o céu parecia o limite.

25 de abril, quinta-feira, 9 horas. O jovem atravessa o parque Eduardo VII em diagonal. Está dez minutos atrasado para o emprego, como habitualmente. À vista da rua onde trabalha, percebe que o trânsito para o bairro está cortado por militares. Inquirido, um deles diz-lhe que não pode passar, sem mais explicações. O jovem volta para casa, conjeturando que tem uma boa desculpa para dar ao patrão, se ele o questionar nesse sentido.
Pelas dez e meia ou onze, o jovem rejubila ao ouvir pela rádio que está em curso um movimento militar que parece querer derrubar o governo. O jovem lia frequentemente jornais que insinuavam, nas entrelinhas, mudanças políticas iminentes — um que vinha dos Açores [perdão, da Madeira] impresso em papel cor-de-rosa e o Diário de Lisboa —, mas o governo representava para ele, sobretudo, a asfixiante ordem eterna, parada em conceitos desatualizados. Toda a gente dizia mal, numa impotência cómoda, porque havia a certeza de que o regime nunca mudaria. A prová-lo, estava o tosco “golpe das Caldas”, um mês antes.

E da manhã, da tarde e da noite se faz o dia primeiro. Na tarde soalheira do dia 25 de Abril de 74, um casal estrangeiro, de língua inglesa, passeia pelo parque Eduardo VII, misturado com os outros passeantes portugueses que desfrutam o feriado inesperado. Dos lados da Baixa chegam, de quando em quando, sons de alvoroço popular. Não sei se o casal sabe o que se está a passar no país, mas o homem comenta, sorridente, para a mulher: “Deve ser por causa do Benfica!” Como está enganado!
No supermercado o jovem repara admirado que as pessoas estão a comprar quantidades anormais de víveres, sobretudo enlatados. Acha aquela atitude desproporcionada. Além de meia dúzia de polícias com cães, cosidos nos portais da António Augusto de Aguiar, com ar furtivo e preocupado, nada parece indicar qualquer ameaça de resposta da “situação”.
À noite, na televisão, o jornalista apresenta a Junta de Salvação Nacional — uma mesa atestada de generais soturnos e mal-encarados.
Mas então? Onde estão os capitães de que falam as notícias? Não é que o jovem tenha, desde a tropa, uma grande consideração por capitães do quadro, mas generais? Spínola? Escreveu um livro crítico, e então? É do regime… Para que o poder “não caia na rua”, já vai ao beija-mão?
E quem são os outros emproados?

Alívio! As dificuldades do regime em conseguir quadros militares suficientes para sustentar a guerra do Ultramar obriga a certos estratagemas. Os oficiais milicianos que não tenham ido ao Ultramar, durante o tempo normal de tropa, podem ser novamente chamados, após alguns anos de dispensa. É-lhes dado um curso de capitães em Mafra e seguem para um dos teatros de guerra no Ultramar: Guiné, Angola ou Moçambique. Alguns preferem oferecer-se para ir a África durante o tempo normal e despacharem a questão, do que ficarem em risco de fazer tropa duas vezes.
O jovem tinha feito três anos e três meses de tropa, mas sempre na Metrópole. Por duas vezes esteve prestes a ser mobilizado para o Ultramar. Sempre as circunstâncias o salvaram. Numa delas, outro se ofereceu para ir em seu lugar. Pelo 25 de abril, faltarão uns dois anos para ser eventualmente chamado de novo. De tempos a tempos, já tem sonhos onde se vê outra vez na tropa, o que não é muito agradável. Quando o discurso dos revoltosos de abril dá indicações de que a política ultramarina se irá alterar, o jovem sente um alívio enorme, enorme. [O leitor não vê, mas, apesar de o texto ser meu, ao relê-lo emociono-me.]

Comunistas. Antes do 25 de abril havia certos assuntos que se evitavam naturalmente. Um deles era comunismo. Os funcionários públicos tinham que jurar rejeitar a ideologia comunista. Sabia-se que o poder não gostava do conceito nem dos seus praticantes. A autocensura levou o jovem, certa vez, numa entrevista, a ficar atrapalhado por ter dito que gostava de ser útil à comunidade. Seria que isso poderia ser lido como proximidade de outras palavras com a mesma raiz?
Três ou quatro dias depois do 25 de abril, as capas dos jornais anunciam a chegada de Álvaro Cunhal, líder máximo do Partido Comunista Português, nome que o jovem nunca tinha ouvido. O condicionamento fá-lo ter um momento de apreensão? O quê, os comunistas vêm aí, às claras, confiantes e aceites? Nesse momento, o jovem começa a tomar consciência de que estão a chegar tempos muito diferentes, não pelos comunistas em si, mas pela previsível abertura a múltiplas e variadas realidades até aí interditas.

O primeiro 1º de Maio. O 1º de maio de 1974 é inesquecível. Ou antes, as manifestações. A manifestação de Lisboa começa na Baixa e dirige-se para o estádio do Inatel [então, ainda FNAT], já próximo do aeroporto. São muitos os milhares de pessoas a desfilar. Entre os primeiros a chegar e os últimos, talvez medeiem duas horas. Toda a tarde se desfila pela Almirante Reis acima. É um rio de gente a caminhar com um sentimento bom de reencontro, de partilha, de comunhão, de vitória sem raiva. Há um estado de graça nos sorrisos, no convite aos que estão pelos passeios, nas saudações a quem não se conhece. Não há ainda divisões. Estamos felizes. Estamos todos finalmente livres. Simplesmente. [Emoção.]

«Uma gaivota voava…» A sensação de liberdade, a convicção de que o destino de cada um passa agora pelas suas mãos, leva a que muitas pessoas quebrem as cadeias sociais ou rotineiras que as prendem. Há que levar a verdade não só ao político como ao social, à vida de cada um. Os divórcios saltam em flecha. A contestação nas empresas leva mais facilmente ao rompimento dos laços contratuais. A fuga de alguns empresários mais comprometidos, associada à convicção de que os patrões não têm função produtiva, logo são parasitas, leva a tentativas de controlo das empresas pelos trabalhadores. Pelo menos, tentar uma cogestão que devolva alguma verdade às relações de produção. O Estado é chamado a intervir em inúmeras situações, quer para legitimar a continuação da produção de empresas cujo proprietário fugira, quer para assegurar a gestão de empresas onde o conflito patrões/empregados ameaça paralisá-las. Desde grandes empresas, até padarias, por exemplo.

«… Como ela somos livres de voar.» A contestação, a reclamação de direitos nunca reconhecidos, faz surgir lutas nunca vistas. Uma que surge logo nas primeiras três semanas e que causa celeuma é uma luta das prostitutas, já não sei por que direito. A televisão — dois canais públicos a preto e branco — abre-se ao discurso popular, à queixa debitada pelo homem da rua. As pessoas têm finalmente acesso a divulgar os seus problemas. Os telejornais estão repletos de queixas, de afirmação de direitos, de cobertura das lutas laborais. Um dos programas mais populares trata de desmascarar práticas desonestas de comércio, com produtos fora de prazo, defeituosos, queixas de consumo, em suma.

Tomar café na associação. A luta laboral vai levando a que o trabalho seja melhor pago, quanto mais penalizante seja para o trabalhador. O trabalho noturno pago por valores mais altos, leva a que a vida noturna da capital se altere, pelo menos ao nível das cervejarias e outro pequeno comércio de restauração. Algum deste comércio que fechava por vezes às 2 da manhã, passa a fechar muito mais cedo, devido aos novos valores do trabalho noturno, acho eu. A noite lisboeta fica mais triste, com menos oferta.
Os novos conceitos de “endinheirado igual a fascista”, levam uns a uma fachada contida e à retirada para núcleos mais restritos; a vontade de participar na construção de uma nova sociedade leva outros para os inúmeros núcleos associativos — cooperativas, sindicatos ou partidos. Aí são agora os novos locais de eleição para os encontros e os namoros.

«O que se passa aqui, que tudo está tão diferente…?» De repente as coisas estão diferentes. Interessa mais o “ser” que o “ter”, há que ser solidário e não competitivo, há que participar ativamente nas tarefas que são de todos, a alfabetizar, a esclarecer, a ajudar em qualquer aspeto da vida coletiva da sociedade, nem que seja só colar cartazes, gerir a pequena associação cultural ou participar nas manifestações.
De repente, o que se tinha aprendido está desatualizado. As relações políticas, sociais, familiares e até pessoais pautam-se por outras normas. Há a sensação de que é preciso desaprender tudo e aprender tudo de novo. Lê-se Engels, Lenine, Marx, Mao, Wilhelm Reich. Livros com títulos como “O que é a consciência de classe?”, “A conquista do pão” ou “A origem da família da propriedade e do Estado”, andam por algumas mesas-de-cabeceira. Aprender, aprender, recuperar o tempo perdido, é preciso.

«A cantiga é uma arma.» Entretanto, os militares, cuja consciência política, na maioria, parece advir das mensagens emocionais contidas nas canções de intervenção, começam a absorver as ideologias dos partidos e a dividir-se. O ano e meio que se segue é um carrossel de factos políticos, com os partidos a digladiarem-se, a tentarem controlar as diversas tendências que os militares vão manifestando, em osmose de ideias políticas.
O jovem passa a noite a ler e a ouvir rádio — o horário do novo trabalho permite-o —, na esperança de notícias condizentes com as suas aspirações, mas sobretudo a absorver as mensagens e as emoções contidas nas inúmeras canções revolucionárias que vão surgindo em catadupa. Quando a luz do dia enche a rua, descansa finalmente.
A direita não aguenta tanta rutura dos seus valores e faz duas tentativas militares de controlo do processo, que são travadas, o que dá um grande alento à esquerda que aprofunda o controlo da economia e avança no sentido da democracia direta, mas cria muitos anti-corpos.
O bloco central não abdica de uma democracia por representação e pressiona, dinamitando o emissor que passava continuamente música revolucionária e retirando apoios institucionais à esquerda militar, que se torna mais aguerrida por ver fugir-lhe espaço de manobra. A 25 de novembro de 1975, reage, mas a resposta está preparada. É derrotada e o país inicia um processo de estabilização política em moldes tradicionais.

«E depois do adeus…» O jovem sente essa derrota como sua, tanto mais pessoal quanto estar a ser por si ajustada para a televisão a imagem do militar esquerdista que é retirada do ar, no momento simbólico da perda de controlo pelos revoltosos.
Não fora alfabetizar as populações do interior, não ocupara casas devolutas para famílias carenciadas, não participara em atividades das cooperativas agrícolas ou outras. Quase não “mexera uma palha”. Tivera uma mera adesão intelectual, pequeno-burguesa e romântica. Ainda assim, está muito abatido. O jovem sente que novembro significa o regresso da cinza de antigamente. Ou pensa que sim. Só lhe apetece emigrar. Mas, falta-lhe coragem.

Joaquim Bispo

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Imagem: Vieira da Silva, Liberdade, (Cartaz comemorativo do 10.º aniversário do 25 de Abril de 1974), 1984.
Coleção Família SMBA
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10/09/2019

A Caixa de Arquimedes


Eu nem queria acreditar! — o tom teatral do meu amigo Rui, na fila de almoço da cantina da faculdade, prometia história. — As peças do Ostomachion, em vez de estarem arrumadinhas no caixilho delas, estavam ao lado, ostensivamente, a formar um triângulo retângulo.
Somos colegas do curso de Matemática Aplicada, mas ele tem um part-time no Museu de História Natural e da Ciência, onde faz visitas guiadas às quartas e aos domingos. Diz que é para ajudar a pagar as propinas, mas eu acho que ele gosta mesmo é de revelar aos visitantes as pequenas maravilhas da ciência, expostas no museu. Já tem falado do brilho que parece acender-se no olhar de quem, de súbito, apreende a explicação.
Fiquei surpreendido, mas agradado — continuou ele —, porque nunca tinha visto qualquer visitante a conseguir construir outra figura. Geralmente, limitam-se a tentar reconstituir o quadrado inicial, o que alguns conseguem, porque a folha de apoio mostra o desenho da posição relativa das peças. Quando não conseguem, lá está o vigilante que recoloca tudo na posição própria.
O Rui falava de um jogo matemático inventado por Arquimedes — o Ostomachion ou Caixa de Arquimedes. Não sabemos se o usava como passatempo para exercitar o cérebro ou se tinha objetivos de pesquisa científica. É constituído por 14 peças planas, de variados formatos poligonais, com as quais é possível construir figuras geométricas planas ou sugerir objetos em silhueta, à semelhança do popular Tangram. Na “sala de jogos” do museu, está exposta mais uma dúzia de outros jogos ligados à geometria e à matemática, que foram surgindo ao longo dos séculos.
Não tinha importância se o jogo era apresentado de uma maneira ou de outra, mas, fiquei curioso: quem poderia ter-se lembrado de tentar montar um triângulo e tê-lo conseguido, com todas aquelas peças irregulares? Falei com o vigilante da tarde, que me garantiu que tudo tinha ficado arrumado como habitualmente. Mistério…
Eu próprio comecei a ficar interessado na história, confesso.
No domingo seguinte, era um hexágono que me sorria zombeteiro, onde devia dormitar um quadrado. O vigilante, desperto para a questão, disse-me que todas as manhãs encontrava uma figura geométrica diferente, construída com as peças do Ostomachion. Como podia ser isso? Comecei a duvidar de toda a gente. Terça-feira apareci de surpresa, à hora do fecho, mas estava tudo arrumadinho. Na manhã seguinte cheguei bem cedo e entrei com o vigilante. Um prosaico quadrado enchia o caixilho. Suspirei de alívio, pensando ter identificado o brincalhão. O sorriso sobranceiro que me preparava para dirigir ao vigilante fechou-se-me logo a seguir. O quadrado não era o da folha-guia, mas um dos outros 536 que as combinações das 14 peças do jogo permitem.
Mas, então, não me digas que o Arquimedes voltou lá da Siracusa de antes de Cristo para gozar contigo! — ironizei.
Nem pensei no Arquimedes. Já estava a ficar maluco, mas nem tanto! Só pensava em como podia descobrir o que de estranho se passava naquela sala, quando eu lá não estava. Então, lembrei-me das câmaras de vigilância, mas a sala dos jogos não as tem. Para grandes males, grandes remédios! No dia seguinte, camuflei uma microcâmara com emissor apontada à zona da mesa do Ostomachion. Não me olhes com esse olhar de reprovação! Eu precisava de desvendar aquele mistério, o quanto antes. Essa noite passei-a no carro, em frente ao museu, a vigiar o Ostomachion pelo meu portátil; mas, acabei por adormecer. Acordei com o clarear do dia e o barulho do trânsito. Apressei-me a olhar para o ecrã — um retângulo alongado reclinava-se no branco da mesa… Digo-te, naquele momento, desanimei — o fantasma que alterava o Ostomachion voltara a atacar e eu voltara a não ver nada. Mas logo a seguir vi surgir uma mulher. Fazia deslizar pelo soalho o que parecia ser um aspirador. Ou uma enceradora. Ao passar pela mesa, parou, olhou o puzzle por uns momentos, moveu dois conjuntos de peças e afastou-se, deixando um aprumado losango...
Estás a gozar; a empregada da limpeza?
É verdade! Eu também tive dificuldade em acreditar. Quando, umas duas horas depois, saiu galhofando com as outras, segui-a. Era negra e muito bonita, com uns olhos… No autocarro para a Pontinha, foi o tempo todo a resolver sudokus. À saída, abordei-a. Expliquei-lhe quem era e porque a seguira. E pedi-lhe desculpa, claro! Depois de ter ganho confiança, disse-me que não tinha nenhuma razão conspirativa para alterar o quadrado do Ostomachion, só um enorme gosto por puzzles e paciências. Nisso convergimos. Acabámos por ficar bastante tempo à conversa e até lhe expliquei as minhas técnicas para resolver os sudokus, mas não eram novidade para ela. Sabes, convergimos noutras coisas — sorriu-se o meu amigo. — Temos saído algumas vezes. E acho que o meu trabalho para Geometria do segundo semestre vai ser sobre o Ostomachion. Como homenagem…

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 10 a 11 — a 16ª edição (julho/agosto de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: (Gravura a partir da pintura de) Gustave Courtois, Morte de Arquimedes, sem data.
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10/08/2019

Cesteiro que faz um cesto



Esta história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e Enchidos, SA.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por alguma mistura sociolaboral que nunca foi possível discernir, a greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos sindicatos.
De regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço coletivo de adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava então a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca —, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. O Amieiro reparou também que, integrado naquele grupo pouco habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de chouriços.
Amieiro ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. “Cesteiro que faz um cesto…” Faz um cento, diz o ditado. Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
Então, outra vez por cá?
Fajeca, também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu, sim, que, se fosse ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito por toda e qualquer posição perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.

Joaquim Bispo

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Imagem: Lima de Freitas, Retrato de Fernando Namora, 1951.
Coleção Casa Museu Fernando Namora.


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10/07/2019

O rapto de Hélade



Na pátria dos Aqueus, em tempos de ninfas e faunos, vivia-se ao sabor das estações, aproveitando as benesses que a Natureza generosa estendia aos habitantes daquela ampla península sulcada por múltiplas enseadas abertas ao Mar Egeu.
Muito tempo depois, Hélade, jovem e bela helena na flor da idade, instruída na cultura mitológica do seu país, estando um dia em folguedos com as amigas na almargem litoral das terras de seu pai, não estranhou, quando um boi muito branco se separou da manada e se aproximou das donzelas, manso e sedutor. Imediatamente lhe acudiu ao pensamento a história pitoresca da sua antepassada Europa, que, por via da mansidão encantadora de um boi resplandecente, fora raptada, levada para Creta e seduzida.
O relato mitológico não era sequer inquietante, porque o boi que raptara Europa não fora outro senão Zeus disfarçado, querendo aproximar-se da formosa mortal sem suscitar os ciúmes de sua mulher, Hera. Além disso, a história não tinha terminado mal: Europa tivera três filhos de Zeus, que foram homens importantes do seu tempo.
O boi que se acercou do grupo de Hélade tinha chifres em forma de luas em quarto crescente e deitou-se aos pés da jovem. Assim, foi quase natural acariciar-lhe o lombo e a cornadura e, pouco depois, enfeitá-la com grinaldas de malmequeres e outras flores silvestres. O pelo macio e luminoso do boi, a sua mansidão, a euforia juvenil do grupo e até a expectativa de uma grande e excitante aventura levaram a donzela a arriscar subir para o dorso do belo animal. Como ela temia ou desejava? o boi levantou-se e em passo ligeiro dirigiu-se para a praia, atravessou a areia e entrou no mar, perante os gestos animados e os risos divertidos do grupo de jovens.
Hélade, mais entusiasmada que apreensiva, deixou-se conduzir pelo boi que, nadando até ao mar alto, se transformou em uma águia-de-cabeça-branca e, sempre com a jovem mediterrânica no dorso, rumou à América, onde tinha o ninho. Ali, aliciou-a com todas as comodidades e todas as engenhocas tecnológicas que a civilização global consegue produzir. Sem precisar de pagar nada. Tudo a crédito. A jovem argiva sentia-se a mais ditosa das mediterrânicas. Nem sabia como agradecer ao seu benfeitor. Mas este não parecia querer que a donzela se preocupasse com ninharias. E convenceu-a a desfrutar da sociedade de consumo. O que Hélade fez despreocupadamente. Tornou-se amante de luxos e sofisticações e até caprichosa investidora da Bolsa. Quando Hélade já não sabia o que mais queria possuir e já não tinha mais palavras para agradecer, o génio que a raptara começou por fim a falar em crise e na necessidade de ela pagar os créditos que tinha contraído. Hélade não entendia o que implicava a inesperada conversa do até aí simpático raptor. Mas ele foi perentório:
Minha menina, não há brinquedos grátis! Não te ensinaram lá no Peloponeso? Se não pagas de uma maneira, pagas de outra...
Então, possuiu-a pela primeira vez. Se Hélade há muito tinha efabulado com esta romântica eventualidade, a maneira economicista e quase vingativa de ele concretizar um ato que devia ser de amor entristeceu-a: além do mais, teve ainda a suprema insensibilidade de dizer que lhe fazia uma gentileza abatia-lhe dez mil dólares no valor em dívida!
Nos tempos que se seguiram, possuiu-a repetidamente, fazendo-se assim pagar pelos inúmeros bens tecnológicos que adiantara. Com juros. Pelas contas do tratante, Hélade pagaria com o corpo, à razão de uma penetração por cada 100 dólares de dívida.
Ontem valia dez mil dólares… ― indignou-se Hélade, na primeira vez.
Estamos a falar de produtos diferentes, rapariga. O teu rating triplo A de ontem, entretanto, baixou para A+, como deves compreender…
Quando a dívida cresceu para valores que o vigor sexual do malandro já não acompanhava, começou a alugá-la a tempo, a bandeiradas de quarto de hora, concedendo-lhe 10 dólares por hora. Enquanto ele guardava um valor não revelado, a título de serviços de angariação, promoção e facilitação de negócio.
Ou preferes vender órgãos? ripostara o patife, aos protestos de Hélade.
Só demasiado tarde Hélade percebeu que este esplendoroso boi que a seduzira nada tinha que ver com aquele lúbrico, mas generoso, boi que raptara Europa. Este não era outro senão o terrível Minotauro Global, mutação maligna adorada pelos mercados que, agradecidos, lhe tinham erigido uma enorme escultura em Wall Street. A ingénua jovem descobriu então que este Minotauro era vezeiro neste tipo de manobras de engano. Os primeiros contactos eram sempre de ajuda e proteção, mas depois vinha a fatura. Muitas jovens e efebos por esse mundo afora tinham caído nas malhas dessa generosidade com intenções escondidas. Luso era um deles; Hibernia, outra.
Hélade não sabia como se livrar deste cárcere de grades económicas que a dívida odiosa lhe impunha. Percebeu que nada seria suficiente quando a dívida cresceu para valores estratosféricos e o monstro lhe ordenou que mandasse vir as amigas. Só então, Hélade, não suportando mais a tirania, evocou os seus bravos antepassados Aqueus e lançou um “NÃO!” que se ouviu na Terra inteira. Muitos dos deuses que na Antiguidade cuidavam dos Homens e das suas dificuldades acordaram, alarmados.
Inteirado da situação, Zeus reuniu-os e incitou-os a fazer alguma coisa por esta humana duma nação que os deuses tanto amavam. Hermes foi o primeiro a levar uma mensagem de indignação ao Minotauro, mas voltou, humilde e um pouco assustado, quando o monstro global lhe lembrou que a força negocial dele era nula, desde que adquirira, como Hélade, ativos tóxicos ao banco Caiman Brothers. A seguir, avançou Hefesto, que ameaçou o Minotauro com métodos mais violentos, aqueles ligados ao raio e ao fogo, mas também ele voltou humilhado, quando o Minotauro lhe mostrou o poder bélico do complexo militar e industrial.
Viste o que aconteceu a Santorini? ― sibilou o Minotauro, ameaçador. ― Não se compara ao que aconteceria a toda aquela lamentável região…
Hera ofereceu-se então para tentar negociar, argumentando que tinha alguma experiência com espécimes bovinos… Senhora de muita experiência, deu-se relativamente bem com o Minotauro, em quem encontrava semelhanças com o seu esposo quando jovem. Louvando o liberalismo e a legitimidade do poder do mais forte, com modos sedutores, conseguiu afagar o ego de macho alfa do Minotauro, e assim obter dele algumas graças ― uma delas, experimentar carnalmente a pujança taurina, vivência que invejara a Europa.
A partir daí, as negociações foram mais fáceis, mas sempre numa ótica economicista. Hera voltou com um contrato específico que, a ser aprovado pelo Concílio dos Deuses, iria atenuar por alguns anos as penas da dívida de Hélade e, com esperança inconfessada, trazer alguma animação ao Olimpo, para irritação provável da maioria dos seus esquivos companheiros divinos. Tratava-se da privatização do Monte Olimpo, onde se previa a instalação de um imenso parque temático, aberto todo o ano, cujas receitas de bilheteira e de todo o merchandising associado à mitologia autóctone seriam naturalmente controladas pelo Minotauro.
Amorzinho, de certeza que o Concílio não vai aceitar de bom grado os pontos do contrato que obrigam os deuses a estar sempre visíveis e a interagir com os visitantes humanos... advertira Hera, genuinamente apreensiva.
Eles que pensem bem! ― resfolegara o implacável touro mutante. ― Senão, mando instalar uma mitologia de deus único.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 158 a 161 — a 15ª edição (maio/junho de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Arturo di Modica, Touro investindo, c. 1989.
Wall Street. Nova Iorque.
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10/06/2019

Errata



«A febre, que desagradável! Os suores. A tosse, o mais penoso!»
Não serão febres de África, doutor?
«Tuberculose? “Santa mama preta da minha ama sudanesa”!»
«Ah, o fulgurante Manifesto! Paris. “A furiosa vassoura da loucura arrancou-nos de nós mesmos e enxotou-nos pelas ruas”. Dórdio, Amadeu, Manuel Jardim. O Diogo. Como o pobre me conheceu... À minha cintilante genialidade futurista. O porteiro do museu Carnavalet a enxotar-me, e eu aos urros, aos brados, em língua acabada de inventar. Só porque me sentei na cadeira de Voltaire. Sim, cruzei a perna e acendi um cigarro. Tinha de experimentar se um poucochinho do génio do antigo proprietário passava para mim, como dizem os hiperestésicos. Um tal Carrington. Como me fui lembrar ainda do nome? Já foi há uns sete anos. 1911? Faz sentido. Tempos gloriosos. “Um orgulho imenso intumescia os nossos peitos, pois sentíamo-nos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas dos seus acampamentos celestes.” E, para quê? A perfeita cópia da Olímpia foi considerada uma afronta revolucionária, por ser de Manet.»
Augusto, meu irmão, não deixes ficar os meus quadros por aí, à mercê de qualquer professor, cicerone ou antiquário. Destrói-os todos. Promete!
«Claro que preferiam Ingres. Ou, mesmo, Cabanel. Com a Academia nas mãos do Veloso Salgado… Amargos de boca. Daquela vez que o retratei fielmente, integrado num Inferno, onde ele era o diabo-mor, rodeado das almas penadas dos alunos. Ah, ah! Antes de ir para Paris. Sansão e Dalila: a prova de concurso à pensão Valmor. Concedida, só em 1910. O ideal a acontecer. “Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro”. Flanar em Paris ― dominar o mundo. Depois, a República e o embaixador. Cortar-me a pensão... Como se eu fosse monárquico. Claro que o tinha afrontado! “Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!” Lisboa, de novo. Há, apenas, quatro anos. A minha espantosa postura. As roupas pretas, o cabelo longo. Lançar as pernas para a frente, em desafio à pequenez lisboeta. Lançar o Manifesto aqui e ver “voar os primeiros Anjos!” O Congresso Futurista. Minha saudosa Cervejaria Jansen! As sessões futuristas do Teatro República. O Almada ― que formidável apresentação! Os meus desenhos na Orpheu. E os títulos! Síntese geometral de uma cabeça x infinito plástico de ambiente x transcendentalismo físico. Chamam-me irreverente e delirante. Uns acham-me Hamlet; outros, espantalho. Lisboa é demasiado pequena. Daquela vez que quis arrendar os Jerónimos para pintar uma tela enorme, eh! Gosto de a afrontar, de provocar polémicas e falatórios. Sou o “artista que o génio da época produziu.” A Portugal Futurista, no ano passado, poderia ter sido a revista que abalaria os alicerces bolorentos do país. Mas não passou do primeiro número. Nem consegui publicar o Manifesto
Tragam-me os meus escritos. Quero fazer um post-scriptum.
«Um gesto, mais um gesto, o último. Que seja único e sublime. Isso! Dois traços a abarcar cada página de canto a canto. E, a finalizar, no frontispício: Errata. E uma assinatura bem explícita: Santa-Rita Pintor, que é o que sempre fui. A minha obra maior ― a minha vida apontada ao futuro ― não cabe nos museus, nem nas bibliotecas.»
Adeus, companheiros; foi uma gloriosa vernissage!

Joaquim Bispo
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Este conto foi o 4º selecionado do concurso literário para composição do número 8 da Revista Inversos, em que ocupa a página 18:

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Imagem: Guilherme Santa-Rita (Santa-Rita Pintor), Menelau sustentando o corpo de Pátroclo, 1910.
Academia Nacional de Belas-Artes (Reservas), Lisboa.

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