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10/02/2019

Breve Dissertação sobre o Palavrão



Caros circunjacentes:
A minha preleção de hoje versa o palavrão em todas as suas aceções, o qual, segundo o dicionário Houaiss, pode ser considerado em três aspetos semânticos:
O mais popular, imediato e disseminado é o turpilóquio ou tabuísmo. Nesta forma torpe, explode, geralmente, boca afora, espontâneo e veemente, quando se é vilipendiado de maneira inopinada ou prepotente nas interações sociais. Sobrevém, amiúde, nas acrimónias do trânsito citadino, onde a peleja pelo espaço essencial do asfalto faz colidir os interesses particulares. Então, nos píncaros da exaltação, aquilo que primeiro acode aos lábios, sem se subordinar a uma triagem nas circunvoluções da racionalidade, são considerações sobre as características ou os hábitos excretais ou sexuais do pretenso agressor ou de algum membro da sua família. São expressões belicosas cuja significação pretende provocar algum constrangimento na autoestima do interlocutor acidental. Por exemplo, «Rastilho curto!», o que, como calculam, também achincalha o tamanho do autocontrolo dele.
No entanto, para atingir o adversário de maneira cruenta e implacável, o vitupério não precisa de coincidir, morfologicamente, com um vocábulo de semântica obscena. Para tanto, basta a entoação colmatar a escassez de ignomínia. Recordo aqui a forma irretorquível como concluí uma altercação de trânsito, que deixou o meu antagonista em estupor, como touro lidado: «Ó meu caro amigo: Vodafone!»
A forma mais vulgarizada, todavia, é a de aconselhar o contendor a encetar determinada atividade, ou a deslocar-se para determinado local, diversos dos atuais, e que, na opinião do fustigador, se adequam melhor às características do enxovalhado. As notícias da política internacional são um manancial de expressões com sonoridades e construções ortográficas que sugerem conotações soezes e insultuosas. Aquando da guerra na ex-Jugoslávia, ouvi uma feirante verberar outra, nos seguintes termos: «Vai pà Bósnia, sua Herzegovina!» Se fosse agora, talvez dissesse «Vai Bachar al-Assad com Brexit, sua Guaidó!», o que me parece de uma gravidade inquestionável. Ninguém merece ver-se confrontado com esta alternativa.

Outro significado de “palavrão”, este com alto grau de adequação, é “palavra grande e de pronúncia difícil”. Quando era mancebo, pensava que o maior palavrão da língua portuguesa era “inconstitucionalissimamente”, com 27 letras. Hoje, constato que o palavrão que me enchia de orgulho era apenas um palavrinho, como pirilau de menino. O do pai chama-se Paraclorobenzilpirrolidinonetilbenzimidazol, tem 43 letras e é uma substância farmacêutica. O do vizinho africano chama-se Pneumoultramicroscopicosilicovulcanoconiótico, tem 46 letras e significa “portador de uma doença pulmonar aguda causada pela aspiração de cinzas vulcânicas”.
O mundo destes palavrões é atroz. Embaraça qualquer estudante de medicina, mas, sobretudo, aterroriza o portador da doença Hipopotomonstrosesquipedaliofobia, a qual — crueldade das crueldades — é a “doença psicológica que se caracteriza pelo medo irracional de pronunciar palavras grandes ou complicadas”. Imaginem o pânico do doente de ser inquirido sobre a denominação da sua própria enfermidade!
Estes vocábulos escaganifobéticos parecem-me denunciar o pérfido subterfúgio de arquitetar termos complicados, pela mera acoplagem, numa mesma palavra, de outras muito mais curtas. Por esta técnica, também posso autoqualificar-me como Homemextremamenteatraenteinteligentedivertido, epíteto de que só não faço uso por abominar redundâncias.
A terceira aceção de “palavrão” é “expressão pomposa e empolada”. Não me ocorre, por ora, qualquer exemplo ilustrativo. Locuções grandiloquentes e/ou de sentido ininteligível são sempre de coartar em comunicações a grandes auditórios, ainda que académicos. Por mim, cultivo o discurso despretensioso, matizado apenas por vocábulos lhanos e percetíveis por todos.
Tenho dito!
Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este texto integra — páginas 35 a 36 — a 13ª edição (jan./fev. de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:
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Imagem: Rafael Bordalo Pinheiro, O Manguito, c. 1884.
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10/05/2016

O milagre do sol



Nos nossos tempos, muito afastados dos bíblicos, não acontecem milagres. Como se as entidades sobrenaturais estivessem ausentes ou imóveis e silenciosas. Quase todos os milagres ocorreram há muito tempo e os raros que nos chegam referem circunstâncias pouco verificáveis e testemunhos pouco representativos. Nas nossas sociedades racionalistas, chegamos a sentir a nostalgia de viver situações como a de Abraão ver entrar três anjos tenda adentro, ou ver Cristo dar de comer a cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, ou assistir à revelação do anjo Gabriel a Maomé. A mais recente e importante manifestação do sobrenatural que conheço é a aparição da Virgem aos pastorinhos em Fátima. Em que só Lúcia, uma menina de 10 anos, garantiu que A viu. Aconteceu, no entanto, um fenómeno extraordinário relatado pelos jornais e visto por muitas das cinquenta mil pessoas presentes, o que deu dimensão às aparições, em si: o milagre do sol, na sequência da aparição de 13 de outubro de 1917, há quase cem anos. Como eu gostaria de lá ter estado!

Segundo uma testemunha que na altura tinha nove anos, «eu olhava fixamente o astro; pareceu-me pálido e privado da sua deslumbrante claridade; dir-se-ia um globo de neve girando sobre si mesmo. Depois, subitamente, pareceu descer em ziguezague, ameaçando cair sobre a Terra. (…) Durante os longos minutos do fenómeno solar, os objetos colocados perto de nós refletiam todas as cores do arco-íris… os nossos rostos ficavam ora vermelhos, ora azuis, ora amarelos. (…) Ao fim de dez minutos, o Sol retomou o seu lugar, da mesma maneira que dali tinha descido, sempre pálido e sem luminosidade.»

Outra testemunha disse: «O Sol começou a bailar e a dada altura pareceu deslocar-se do firmamento e em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós.»

Outra, ainda: «coisa mais espantosa era poder olhar para o disco solar por muito tempo, brilhando com luz e calor, sem ferir os olhos ou prejudicar a retina. [Durante este tempo], o disco do sol não se manteve imóvel, teve um movimento vertiginoso, não como a cintilação de uma estrela em todo o seu brilho, pois girou sobre si mesmo num rodopio louco.
Durante este fenómeno solar, que acabo de descrever, houve também mudanças de cor na atmosfera. Olhando para o sol, notei que tudo se escurecia. Olhei primeiro para os objetos mais perto e depois estendi a minha vista ao longo do campo até ao horizonte. Vi que tudo tinha assumido cor de ametista. Os objetos à minha volta, o céu e a atmosfera, eram da mesma cor. Tudo perto e longe tinha mudado, tomando a cor de velho damasco amarelo. As pessoas pareciam que sofriam de icterícia e lembro-me de uma sensação de divertimento ao vê-los tão feios e repulsivos. A minha mão estava da mesma cor.
Então, de repente, ouviu-se um clamor, um grito de agonia vindo de toda a gente. O sol, girando loucamente, parecia de repente soltar-se do firmamento e, vermelho como o sangue, avançar ameaçadoramente sobre a terra como se fosse para nos esmagar com o seu peso enorme e abrasador. A sensação durante esses momentos foi verdadeiramente terrível.»

Para a maior parte dos crentes católicos, é incontestável que o fenómeno observado se deveu à Virgem, por vir na sequência das aparições anteriores, em que, aliás, terá sido sugerido algo desta magnitude. Para muitos descrentes, é certo que um fenómeno com estas características, a ter acontecido, deve ter sido causado por sugestão coletiva ou outro equívoco natural. Para a maior parte das pessoas tocadas pela escolarização, é evidente que o Sol não rodou nem se soltou do firmamento. A escola ensina que, se a estrela Sol se tivesse movido abruptamente, teria desencadeado uma catástrofe cósmica e destruído a Terra — devido à estrutura de inter-relação dos vários corpos do sistema solar —, mas não há notícia de que tenha havido sequer um grande terramoto naquela data. Os crentes não querem saber de racionalidades e leis da Física e dizem: “para Deus não há impossíveis”. Alguns cientistas não concebem seres que não possam ser verificados e dizem: “o nosso Universo não veio equipado de sobrenatural”.

Conversando sobre este assunto com uma tia devota, ela disse-me que há pessoas que afirmam presenciar um milagre do sol semelhante, durante a procissão de Santo António, a 13 de Junho, em Lisboa. Fiquei alvoroçado com a possibilidade de assistir a um fenómeno tão prodigioso e, na data indicada (por volta de 1999), lá estava eu integrado na procissão, atento, quer à ambiência celestial, quer à humana.
Junho em Lisboa, às quatro ou cinco da tarde é quente. A procissão movia-se devagar em frente da Sé. Então, comecei a ouvir algumas pessoas — uma aqui, outra ali — a chamar a atenção para o sol, a apontar, a dizer que viam o sol a girar. Uns e outros olhavam, tentando ver o fenómeno. O entusiasmo não era grande. Olhei também, de relance. O sol era uma bola de fogo, como habitualmente, perigoso para os olhos, como sempre.
Então, julguei compreender tudo. Eu estava farto de assistir a “milagres do sol”, de cada vez que jogava ténis e, tendo de acompanhar alguma bola alta, dava com os olhos no sol: a minha retina ficava maculada, onde o sol a queimara e, durante um bocado, uma mancha, com a mesma forma e de uma cor arbitrária, sobrepunha-se a tudo o que eu olhava. Naquele momento percebi que, provavelmente, tudo aconteceu não com o Sol, mas com o sol, isto é, a luz solar e a perceção que os presentes tiveram dela.
Para mim, era claro que também aquela gente estava a queimar a retina irresponsavelmente, e foi isso que disse a algumas pessoas, levemente receoso de que me considerassem herege. Ninguém ficou escandalizado ou irritado, talvez só um pouco pesaroso de que o seu desejo não se concretizasse. Eu próprio fiquei um pouco desapontado, embora não esperasse outra coisa.

Ao fazer pesquisa na internet para este artigo, encontrei esta opinião: «O milagre do Sol é o brilho ou reflexão que produz se o olharmos diretamente. Em dias de chuva, enevoados ou quando o Sol enfraquece no horizonte, é possível fixá-lo durante poucos segundos. Imediatamente se dá o Milagre do Sol. Se o olharmos, o Sol parece brilhar com imensos raios, rodar sobre si e descer vertiginosamente. Eu próprio já fiz a experiência para me certificar do milagre. Mas corremos riscos. Ao olhar o Sol, mesmo quando o brilho é menos intenso, podemos sofrer queimaduras graves na retina, e por isso é necessário bastante cautela. Ainda hoje, em Lisboa, há o (mau) hábito de, depois da procissão de Santo António, a 13 de Junho, algumas pessoas olharem o céu para verem o santo descer.»

Opinião neste sentido tem também um físico citado pela Wikipédia: «imagens residuais na retina, produzidas após breves períodos de olhar fixo no Sol, são a causa provável dos efeitos observados». E adverte que «milagres do Sol têm sido testemunhados em muitos locais onde peregrinos, cheios de religiosidade, têm sido encorajados a olhar para o Sol».

Ainda assim, o “milagre do sol” de 1917 terá aspetos difíceis de enquadrar numa única explicação. Há até quem fale em OVNI — o sol descrito como um disco prateado, baço, a girar no céu. Eu, por mim, sou mais convencido por explicações físicas e fisiológicas do que por outro tipo de especulações, mas gosto de cultivar uma atitude de prudência, conforme aprendi do astrónomo francês do século XVIII, Laplace:

«Estamos tão longe de conhecer todas as forças da Natureza e suas múltiplas modalidades de ação, que seria pouco filosófico negar a existência de certos fenómenos apenas porque não podem ser explicados no estado atual dos nossos conhecimentos.»

Esta reflexão, que serve de crítica aos que negam os fenómenos inexplicados, também pode ser entendida como uma crítica aos que aderem a explicações sobrenaturais, ainda antes de tentarem as naturais. Ceticismo puro e “sobrenaturalismo” puro são aqui igualmente criticados. Ambos abraçam soluções apressadas, que tantas vezes nos apontaram pistas equivocadas para a compreensão do Universo. O meio-termo, a solução ponderada, por onde passará?

A atitude dos grandes nomes, os que fizeram recuar o desconhecido, não foi a de aderirem a soluções não racionais ou que só explicavam parte dos fenómenos. Perseguiram pacientemente indícios ténues, por vias inesperadas, que desembocaram algumas vezes em explicações e conhecimento. Que sejam inspiração para nós!

Joaquim Bispo
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Fontes:
Seomara da Veiga Ferreira, As Aparições em Portugal dos Séculos XIV a XX, Relógio d’Água, 1985.

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(Este artigo foi publicado no número 16 da revista literária virtual Samizdat, de maio de 2009.)

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