Mostrar mensagens com a etiqueta mabecos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta mabecos. Mostrar todas as mensagens

10/10/2025

Vocação de mabeco

 


Ruffy era um dobermann preto, nascido no Zimbabué em casa de um vigário inglês. Ao fim de uns anos, o inglês, “farto de aturar pretos”, voltou para a Europa, abandonando o animal, que não teve outro remédio senão desenrascar-se sozinho. Nas primeiras semanas, Ruffy sobreviveu a virar caixotes em Lupane, a sua pequena cidade das margens do Gwayi; depois, decidiu que não era um coitadinho qualquer, como alguns que ele via a mendigar comida, e aventurou-se pelos matos.

Percebeu rapidamente que, na savana, era onde podia encontrar muita comida, com o contratempo de ser ligeira a fugir. A princípio, teve de se contentar com restos de carcaças, algumas já com um cheiro pouco apetitoso. E muitas vezes teve de ser ele ligeiro, para escapar de bocas que não se importavam de comer carne de cão.

Tomar contacto com os mabecos foi inspirador. Viu-os de longe, caracteristicamente malhados, em matilha, a perseguir zebras ou antílopes ou tudo o que não fosse demasiado grande. Eram incansáveis. Podiam correr quase uma hora, até cansar a presa, que era sucessivamente mordida em corrida e ia perdendo vigor. Por fim, rodeavam-na, despedaçavam-na em poucos minutos, ingeriam quanta carne podiam, alguma da qual era depois regurgitada para as crias ou para outros membros que não tinham podido acompanhar a caçada.

Não eram flor que se cheirasse, bem o percebeu. Naqueles contactos visuais, sentiu apreensão. Em numerosas ocasiões, pensou voltar para as ruas dos homens. Se estes cães selvagens o vissem, não teria qualquer hipótese. Passou a ter cuidados redobrados, não atravessando espaços abertos, mas, quando se sentia seguro, passou a tentar a caça à maneira dos mabecos.

Muitas corridas não deram em nada, mas, uma vez por outra, conseguiu abater presas pequenas. Começou a ganhar autoconfiança. Um dia abalançou-se a perseguir um javali, mas, depois de uma pequena corrida, o javardo virou-se a ele. Surpreendido, levou uma naifada que lhe atingiu o flanco e a coxa esquerda. Conseguiu escapar e escondeu-se nuns arbustos espinhosos, a lamber as feridas.

Ruffy pensou que era o fim. Sem conseguir correr, iria morrer de fome, se não morresse dos ferimentos. Ao fim de dois dias, um grupo de mabecos deu com ele. Então, não teve dúvidas do que o esperava. Os primos selvagens rosnaram-lhe, foram-se aproximando de cabeça baixa e dentes arreganhados, mas, inesperadamente, cheiraram-no, devem ter encontrado afinidades de família, perceberam que estava ferido, pareceram ficar indecisos.

Depois de umas idas e vindas, para dentro e para fora dos arbustos, com cuidado, por causa dos espinhos, um macho com aspeto soberbo, regurgitou uma massa carnosa junto ao focinho de Ruffy. O dobermann não pensou em mais nada; só que podia matar a fome imediatamente. A massa, vagamente acastanhada, demorou menos tempo a chegar ao estômago do cão, do que a sair da goela do mabeco. E, no dia seguinte, o grupo voltou. E, novamente, o alimentou. Afinal, era malta de bem. Ao fim de três dias, o cão seguiu os seus salvadores.

Alvo de curiosidade do bando, mostrou-se sempre humilde, prostrando-se e ganindo a cada aproximação mais desconfiada. Aos poucos, começou a acompanhar a matilha nas caçadas. Não tinha a velocidade nem a técnica dos mabecos, mas ajudava nas estratégias de separação de uma presa de um grupo. Depois corria, enquanto conseguia. A princípio, quando chegava ao local do abate, a presa já tinha sido esfacelada e os líderes do grupo já se tinham alimentado. Mas sobrava sempre alguma coisa. Aquando da primeira zebra, abandonaram quase um quarto da carcaça aos abutres.

Ao fim de uns meses, já tinha o seu lugar no grupo, em posição subalterna, é certo, mas participava em todas as caçadas com grande entusiasmo e mesmo alegria. Surpreender a presa incauta, lançar-lhe um latido «Eu vou atrás de ti», perceber-lhe o medo, persegui-la implacavelmente, integrado na matilha de uma dúzia de mabecos, conseguir mordiscar-lhe o ventre ou uma pata, participar no derrube final, ferrar-lhe os caninos na goela, senti-la a esvair-se, a desistir de lutar, exaltava-o até ao uivo.

Depois do ardor e da alegria da perseguição, a festa das carnes, das vísceras arrancadas, engolidas a correr, uma e outra vez. Como estava contente por se ter decidido pela savana, em vez de andar aos caixotes na cidade, a catar restos azedos, a morrer de vergonha alheia pelo comportamento de outros cães!

Mas a vida na savana não é só vitórias. Come-se e é-se comido. Talvez dois anos depois de chegar à savana, enquanto estava emboscada a observar a movimentação de uma manada de gnus-de-cauda-preta, a matilha foi rodeada por várias leoas caçadoras. Também elas tinham estudado a matilha e concentraram o ataque no elemento mais fraco: o cão da cidade.

Separado do resto da matilha em fuga, correu quanto pôde, mas a velocidade não era comparável. Não ouviu nenhum “Eu vou atrás de ti”, das leoas, mas o terror que o invadiu não tinha paralelo com qualquer outro medo que já tivesse sentido, nem mesmo quando fora encontrado ferido pelos mabecos. Parecia que os músculos não respondiam como esperava. Sentiu-se perdido.

No auge do cansaço, enfrentou as leoas. “Porquê eu?”, ganiu. “É muito injusto!” Ruffy era um animal pequeno, comparado com tantos outros que dali se avistavam; não percebia porque o tinham escolhido a ele. “Com tantos gnus e zebras, porquê eu?”, ululou. “Agora vão ter que ouvir: Aqueles não perseguem vocês... Vergonha! Eu não sou nenhum coitadinho; eu enfrentei sozinho um javali; vocês vão ver!”, ameaçava.

Os dentes que mostrava eram temíveis, mas as leoas eram três. Rodearam-no, num jogo que os predadores em grupo sabem jogar. Quando a presa investe contra um, os outros atacam-no por detrás. O confronto desigual terminou rapidamente.

As primícias da carcaça foram para o macho alfa, que se aproximou sem pressas. Depois de se saciar, o leão estendeu-se por perto, a ver as leoas dividir o restante sem lutas, em cedências tácitas, consumindo-o totalmente no local. Na savana, fora do grupo, não havia justiça, nem contemplação com os pequenos e os coitadinhos; vigorava uma desapaixonada luta pela sobrevivência em que até os predadores podiam tornar-se presas.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi selecionado para a 53ª edição (setembro/outubro de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 81 a 83):

https://drive.google.com/file/d/1MkUxqXzC849GS9J_mgt8t5clM6smyLbm/view

*

Ilustração de @rodolfo.bispo.77

* * *