10/12/2016

Pouca sorte


Há dias em que um homem não devia sair de casa; o problema é que só o sabe tarde de mais, como bem se lamenta o meu vizinho António, que me contou o que se segue:

Foi aos Correios levantar uma encomenda e deu de caras com um antigo colega da Secundária, a quem na altura toda a gente chamava «Fosquinhas». Feitas as saudações e as manifestações de regozijo adequadas a um desencontro de mais de vinte anos, António fez a pergunta que o perdeu:
Então, vai tudo bem contigo?
Gustavo, o amigo, desforrando-se de um longo jejum de ouvintes complacentes, sorriu tristemente, antes de desenrolar o seu manto de frustrações e infelicidade:
Sabes lá?! Não tenho sorte nenhuma. Tudo me corre mal.
Não me digas! Não tens trabalho? — preocupou-se António.
Tenho, mas mal dá para sobreviver. Sou o responsável pela fotocopiadora do meu serviço...
Mas isso deve dar um ordenado muito baixo! Não tens tentado progredir?
Aquilo lá é um covil de mafiosos. Fazem o joguinho só entre os amigalhaços.
Mas, tens concorrido? Ou nem concursos fazem?
Concorrer? Para quê? Está tudo cozinhado. Uma vez experimentei, mas disseram que eu não tinha perfil.
E tu, tens-te valorizado? Voltaste a estudar? Fazes cursos profissionais?
Tenho lá dinheiro para isso!
Mas o teu serviço não faz cursos de atualização e aperfeiçoamento?
Falaram-me nisso duas vezes, mas já sei como é. É só para justificarem meter o sobrinho do chefe ou o primo da secretária. Para fantochadas dessas não contem comigo!
António começava a ficar sem ideias para melhorar a vida do amigo.
Tens filhos, casaste?
Sim, casei, mas não correu bem. Seis meses depois de casarmos, ela voltou para casa da mãe dizendo que «preferia não voltar a ver homem algum, do que viver com um falhado destes». Diz-me se isto não magoa! A minha vida é um vale de lágrimas. Mas ela tem razão, eu não presto — choramingou Gustavo.
António sentiu-se desconfortável com o amigo a lacrimejar à sua frente. Olhou em volta a medir o impacto nos presentes.
Olha, Gustavo, anda daí apanhar ar. Claro que tu tens valor, toda a gente tem.
Não sei, António. Os outros passam-me sempre à frente. Nasci para sofrer.
Nada disso. Só precisas é de um empurrãozinho. Amanhã podes ir à baixa, aí às dez horas? Vai ter comigo que eu vou ver o que se pode arranjar.

No dia seguinte, Gustavo apareceu às dez e meia.
Eh, pá, desculpa. Não estou habituado aos transportes cá para baixo.
Tudo bem. Olha, estive a falar aí com um diretor, disse-lhe que eras um gajo porreiro, a ver se te arranjava qualquer coisa para começar, mas que fosse melhor do que responsável da fotocopiadora. Ele disse que estão a precisar de um operador, só para meter dados, para já. Sabes Excel? Aquelas folhas de cálculo do Office — especificou António, ao ver a cara de incompreensão do amigo. — Informática…
Ah, não; nunca liguei a computadores.
Não faz mal, eu dou-te uma ensaboadela. É muito intuitivo. Não podes meter férias lá nesse emprego para vires uma semana à experiência?

Enquanto Gustavo não conseguia um tempo, foi aprendendo uns rudimentos de Excel no computador do amigo. Quando ia lá a casa, tecia sempre comentários elogiosos às pinturas de António, que este tinha espalhadas pela casa.
Tu és genial! Eu também gosto de pintura mas não tenho jeito nenhum.
Já experimentaste alguma vez?
Sim, uma vez comprei umas aguarelas no supermercado e estive a pintar, mas saiu uma borrada…
Mas, se gostas, porque é que não vais para um desses cursos de pintura, que até as juntas de freguesia têm?
Isso é um dom. Ou se nasce com ele ou não.
Olha que eu melhorei bastante nesses ateliês. Dizem que uma obra é muito mais transpiração do que inspiração. O jeito melhora com a prática. E as técnicas ajudam.
Ná, não é para mim. Eu escrevo é uns poemas e uns contos. Já tenho uns sete ou oito. Estão lá arrumados numa gaveta.
A sério? Gostava de ver isso!
Não, não! Não estão grande coisa. Não tenho coragem de os mostrar a ninguém. São só para mim.
Se quiseres publicar, terás que os mostrar a alguém… — ironizou António. — E escrever muitos mais. Os escritores conhecidos dizem que escrevem todos os dias.
Gostava de ser escritor, mas não tenho muita pachorra para escrever. E, mesmo quando estou entusiasmado, às vezes bloqueio, por não saber muito bem o que hei de escrever e como.
Mas, se achas que gostas de escrever, porque é que não investes nessa área? Mesmo que seja só para teu prazer. Quando se anda satisfeito, até a vida profissional corre melhor. Há muitos livros práticos, há workshops, há clubes de leitura. E há as faculdades. Não fazem escritores, mas fornecem ferramentas muito importantes.
Tirar um curso? Estás parvo! Não tenho dinheiro para isso, nem estou para passar anos a polir os bancos da universidade só para escrever. Quando quero, escrevo, mesmo que não saia muito bem. Acho que é uma questão de sensibilidade, mais do que técnicas ou conhecimentos.
Eu só queria ajudar! — arrependeu-se António.

Uns tempos depois, Gustavo chegou a fazer a tal experiência na empresa onde António trabalhava, mas não passou de uma semana. O diretor, de mãos na cabeça, veio ter com António, queixando-se que o amigo ficava parado a olhar para o ecrã, que introduzia dados trocados, que não tinha apetência por conhecer novas funcionalidades do programa. Pediu desculpa, mas que assim Gustavo não podia ficar.
Quando António comunicou a decisão ao amigo, este mostrou-se muito abatido:
Comigo, corre sempre tudo mal. Eu não te disse que não tenho sorte nenhuma? Felizmente, posso voltar para o mesmo trabalho com a minha fotocopiadora, que essa conheço eu bem. Mas já me disseram que o meu chefe soube desta escapadela e me vai cortar as horas extraordinárias. Já viste a minha pouca sorte?!
Eu só queria ajudar! — desculpou-se António com ar pesaroso, mas por dentro ria impiedosamente.

Joaquim Bispo

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Imagem: António Dacosta, Serenata Açoriana, 1940.
Centro de Arte Moderna / Gulbenkian, Lisboa.

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(Este conto foi publicado no número 25 da revista literária virtual Samizdat, de fevereiro de 2010.)
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10/11/2016

A Vida Continua


Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquiteturais.
É nos cemitérios que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado, em vida.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a refletir o fado da emigração.
Quase sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.
Estar sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a “vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um ciclo de enterramentos.
Aos domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre panos bordados brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

Joaquim Bispo
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(Esta crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008.)
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10/10/2016

Um assassino online


Quando os inspetores chegaram ao local do crime, encontraram a jovem aspirante a escritora de cabeça tombada sobre o teclado do computador e, no chão, uma poça de sangue que escorria do flanco esquerdo, onde um abre-cartas se mantinha espetado.
Bela encrenca temos aqui — desabafou o inspetor Magalhães. — Ainda estava à espera que fosse um suicídio, mas com a lâmina neste ângulo não é viável.
E para homicídio também não está fácil — continuou o subinspetor Barbosa, denunciando a completa concordância com o chefe. — A porta não foi arrombada, não há sinais de luta e o namorado está no Porto.
Bem, vamos procurar impressões digitais, embora me pareça que não vamos ter sorte. Procura nas portas, que eu vejo aqui na mesa do computador.
Calçaram as luvas de látex e iniciaram a pincelagem dos objetos mais óbvios. Os resultados eram desanimadores. De repente, Magalhães chamou:
Barbosa, vem cá ver isto. Vê lá se percebes que raio é que esta fulana estava a escrever neste site.

O parceiro aproximou-se e deparou com uma sequência de símbolos bizarros no ecrã.


 Hum… Não há nenhuma língua com este alfabeto; eu não conheço. Hum… espera, pode ser uma daquelas fontes de caracteres esquisitos. Experimenta copiar isso para um documento Word.
Boa! — animou-se Magalhães, congratulando-se por ter um parceiro perspicaz e experiente em informáticas.
Agora, altera a fonte, ali, naquela janela das fontes, à esquerda. Pode ser para Times.
Ok, ok, não sou nenhum tosco. Pronto!

Um de cada lado da morta, debruçados sobre o ecrã, ficaram uns segundos a ler o pequeno texto descodificado:

Joaquim era doido por cassoulet, esse prato francês muito parecido com feijoada. Todas as quintas-feiras, se sentava pontualmente ao meio-dia e meio num pequeno restaurante de comida francesa, ali junto ao Hospital de São José. O Sr. Jacques Bergier, amante de romances policiais e impossibilidades, já lhe reservava o lugar e a dose.

Dәpois, Barbosa quәbrou o silêncio:
Achas quә isto nos dá alguma pista?
Não vәjo rәlação, mas, dә qualquәr manәira, amanhã vou falar com әssә tipo, sә é quә әxistә.
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Quando Magalhãәs chәgou à sәdә, vinha abrasado com calor. Largou o sobrәtudo numa cadәira ә afundou-sә numa әspampanantә chaisә-longuә.
Está um tәmpo әsquisito. Dә manhã parәcia quә ia chovәr ә agora әstá uma caloraça!
Então, o tipo? — pәrguntou Barbosa, sәm dәsviar os olhos do computador.
O rәstaurantә әxistә, mas o homәm não sә chama Bәrgiәr. Acho quә әla әstava a invәntar uma história. Já sabәmos quә tinha prәtәnsõәs a әscritora.
Olha, Magalhãәs, әstou aqui um bocado confuso. Pus aquәlә tәxto dәla no Idәntәxt ә obtivә rәsultados muito pәrturbadorәs. Aquilo não corrәspondә ao әstilo dәla. Não podә sәr dәla. Ә não o foi buscar à Nәt. O tәxto nunca әstәvә onlinә. Por outro lado, dәu-mә três rәsultados dә autoria possívәis. Dois әscrәvәm әm bloguәs ә o outro também tәm a mania quә é әscritor, como әla.
Como é quә é o nomә dәlәs? — intәrәssou-sә Magalhãәs.
Ora dәixa vәr: Artur Amiәiro; Filipә Arnaso; ә Joaquim Bispo, mas é possívәl quә sәjam todos psәudónimos. Ainda não fiz cruzamәnto dә dados, nәm pәdi informaçõәs às opәradoras dә Intәrnәt, mas dәsconfio quә sә trata da mәsma pәssoa.
Bәm, suspәito já tәmos, mas o móbil?
Aí é quә әstá! Әstou mәsmo confuso. Fui ao sitә ondә o Joaquim põә uns contos dә ficção ciәntífica ә dәscobri-nos lá. Nós; tu ә әu; Magalhãәs ә Barbosa, inspәtorәs. Somos pәrsonagәns num conto dele.
Achas mәsmo? Әntão әssә tipo é alguém quә nos conhәcә!
Hum… Acho quә é mais complicado do quә isso.
Barbosa mostrava-sә mәditativo. Parәcia ganhar coragәm para falar.
Tu acrәditas na Rәalidadә?
Әssa agora! Quә raio dә pәrgunta mais parva. Por quê?
Nova paragәm de Barbosa.
Há tantas coisas әstranhas na nossa vida. Não parәcә possívәl quә sәjam todas vәrdadәiras. Já alguma vez pensaste que, sә calhar, somos só pәrsonagәns dә alguma obra litәrária obscura?
Әstás parvo, ou quê? Andastә a fumar alguma coisa әsquisita?
A sério, Magalhãәs! Achas possívәis as fәrramәntas informáticas quә usamos? Achas possívәl quә әu ponha um bocado dә tәxto num programa informático ә saiba quәm o produziu? Quә sә consiga armazәnar 32 gigas numa pәn do tamanho dә uma unha do mindinho? Ә o mundo ondә vivәmos?; já achamos normal, mas pәnsa: achas possívәl quә әu puxә do tәlәmóvәl ә falә com alguém quә әstá do outro lado do mundo?; quә әu ponha um copo dә lәitә no micro-ondas ә әlә aquәça, sәm chama alguma?; quә um aparәlho no carro mә vá indicando, com mapas ә voz, quә әstradas hәi-dә tomar daqui para Ansião? Isto não é rәal, Magalhãәs; é mais conformә com um mundo de ficção ciәntífica.
Dәvәs tәr lәvado uma ovәrdosәMatrix. Vistә por aí algum gato әm rәpәat-play? — ironizou.
Әu não sәi, Magalhãәs, só tәnho dәsconfianças. Ә, sә quәrәs quә tә diga, comәço a dәsconfiar muito dә tudo. Achas normal havәr uma chaisә-longuә num gabinәtә da Polícia Judiciária? Isto parәcә-mә ambiәntә dә әscritor amador, quә invәnta cәnários sәm nunca tәr әstado na Judiciária. Ou әntão, pistas para lәitorәs atәntos.
Tu não mә bαrαlhәs! Әntão quә pαpәl әrα o nosso? Pәrsonαgәns? Quәr dizәr quә αndávαmos αqui αo mαndo dә um criαdor dә әnrәdos? Quә não tínhαmos livrә-αrbítrio?
É isso mәsmo, Mαgαlhãәs. Ә αcho quә sәi por quә o nosso criαdor nos colocou neste enredo — pαrα dәscobrirmos quәm foi o lәitor quә mαtou α rαpαrigα.
Lәitor? Queres dizer que é esse o desfecho do conto na Net? Já foste bisbilhotar o final?
Não. Não consigo ler o final. Αcho quә o tәxto do computαdor dα rαpαrigα é umα pistα, mαs não α quә pәnsαmos. Әssә tαl Jαcquәs Bәrgiәr tәorizou quә é impossívәl әscrәvәr um livro policiαl әm quә o criminoso sәjα o lәitor. Αcho quә o Joaquim әstá α tәntαr әscrәvәr o conto quә ninguém ainda әscrәvәu.
É αmbicioso!
Ou pαrvo.
Não blαیfәmәی, Bαrboیα!
Αh,“não blαیfәmәی"! Agorα já αcrәditαی? Pәloی viیtoی, é mαiی fácil “dαr-tә α voltα” com o mәtαfíیico, do quә fαzәr um idoیo cαir no “conto do vigário”...
Αdmito quә o trαnیcәndәntә mә pәrturbα.
Tαmbém α mim.
Por әیtα ordәm dә idәiαی, α liیtα dә یuیpәitoی tornou-یә bәm curtinhα. O αییαییino é um doی quә vão lәr o conto do Joαquim.
Quә әیtão α lәr, Mαgαlhãәی. Iیto é um conto. Ә o criminoیo әیtá α lê-lo nәیtә momәnto. یó prәciیαmoی dә lhә αrmαr umα cilαdα pαrα o prәndәr.
Como? Tәnی αlgumα idәiα?
یim, escutα. Com o Әchәlon — sαbes, o dos αmericαnos —, monitorizαmoی әm tәmpo rәαl todoی oی computαdorәی quә әیtivәrәm α uیαr әیtә conto. O próximo pαrágrαfo é umα αrmαdilhα pαrα o criminoیo ә vαi یәr dәciیivo pαrα α یuα cαpturα. یә әlә tәntαr lәr o quә әیtá әیcrito no espαço em brαnco abaixo, یәrá dәیcobәrto. Quαndo ele pαssαr o rαto sobre a cαixα em brαnco, ou copiαr pαrα Word o texto escondido nαquele espαço e αltәrαr α cor dα lәtrα pαrα یαbәr o que lá está escrito, αpαnhαmo-lo. A sequênciα de movimentos e α suα durαção são como que umα impressão digitαl e vão denunciá-lo.
Incrível! O que eles inventαm! Estou αnsioso por conhecer o desfecho.
Cαlmα, Mαgαlhães, αgorα temos que ser pαcientes. É só mαis um pouquinho. Olhα, olhα este! Acho que é este. Rәpαrα!

Muito bәm, lәitor! O fαcto dә tәr dәیvәlαdo әیtә pαrágrαfo moیtrα quә, αpәیαr do αviیo, não tәvә quαlquәr mәdo dә o αbrir. Iیto یignificα quә não é você o αییαییino. Como você bәm یαbiα. O vәrdαdәiro αییαییino já foi αpαnhαdo. Chәgou α әیtә ponto ә fәchou o site یәm lәr әیta parte. Só o verdadeiro αییαییino podia temer ser descoberto por revelar estas linhas, como foi insinuado atrás. Dәnunciou-یә α әlә próprio.
Oی inیpәtorәی Mαgαlhãәی ә Bαrboیα αprovәitαm pαrα lhә dәیәjαr muito boaی leituras. Ә continuә α confiαr noی bonی ofícioی dα Políciα Judiciáriα no combαtә αo crimә ә nα dәfәیα doی cidαdãoی.

E agora, Magalhães, ainda acreditas na Realidade?


Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 21 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2009.)

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10/09/2016

A faixa branca


Ah, a Irlanda! — a ilha que exibe o permanente verde dos seus campos numa faixa da bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo é a cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a faixa branca, a meio, faz-nos lembrar o quê? A pureza perdida das crianças?
Um relatório divulgado há poucos anos revela que, entre 1930 e 1990, milhares de crianças carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas irlandesas, foram objeto de violência e abusos sexuais por parte de centenas dos seus cuidadores. O facto choca, sobretudo, porque os acontecimentos tiveram lugar em abrigos infantis, reformatórios e orfanatos geridos pela Igreja Católica, largamente maioritária no país.
Pensamos sempre que os homens e as mulheres da Igreja estão, tendencialmente, acima dos “pecados” da carne, só porque o potentado religioso que os enquadra a isso aspira, ou pelo menos apregoa. Grave erro: as pessoas que o integram são da mesma carne e pulsam com o mesmo desatino hormonal que as que festejam o corpo e a vida fora dos espaços religiosos. Refugiaram-se nas instituições católicas pelas mais variadas razões, quase nunca para renunciarem ao apelo das sensações lúbricas. Nem tal lhes é exigido. Mesmo aos padres, a Igreja proíbe o casamento, não pela subjacente implicação de mais difícil acesso ao sexo, mas — dizem algumas teorias mais pragmáticas —, por um mais prosaico programa de evitar o forçoso sorvedouro de bens, necessários para alimentar e vestir cônjuge e filhos.
Não é a Igreja que faz os pedófilos; também nas instituições governamentais sucede o abuso. O ambiente coletivo nos locais de acolhimento, onde os mais velhos dispõem de ascendente sobre aqueles que estão à sua guarda, proporciona a oportunidade adequada às práticas do pedófilo. A proximidade, o espírito de ajuda, de proteção, cria, por vezes, aquela intimidade perturbadora a que o pedófilo não resiste. A evolução é progressiva. Um dia, ajuda a criança a vestir-se, sente-lhe o morno da pele, a suavidade do cabelo; outro dia, observa-lhe a cor límpida dos olhos, a forma germinante dum corpo a meio caminho da floração; recorda o seu próprio corpo e as emoções perturbadoras da puberdade, às vezes, como um adulto o iniciou nessas emoções. Aos poucos, sobrevém a oportunidade de masturbar a criança. Quer desvendar-lhe esse mundo maravilhoso, que o seu corpo encerra, onde reside um prazer insuspeito. Ele próprio segue o que entende como o desejo da criança, que chega a perceber como uma provocação ao gozo mútuo. Desencadeia e deixa-se enredar, consciente e maliciosamente, numa crónica teia de relacionamento furtivo, sabendo que é um comportamento censurável, a esconder, um segredo para dois. Sente na criança uma aceitação e uma ausência de reprovação que, apenas em algumas raras vezes, julgou encontrar na aproximação a outros adultos, mas que sempre redundou em rejeição e dor.
A criança gosta de quem mostra querer-lhe bem, de quem a defende nas inúmeras situações de controlo e poder que surgem numa instituição com muitas crianças desenraizadas. Às vezes, encontra nesse adulto o amigo que a ouve e lhe afasta as inquietações. Fica perturbada com as sensações que o adulto ensinou o seu corpo a proporcionar-lhe, aceita corresponder às carícias como retribuição pedida e “justamente” merecida. Não domina o jogo das relações sociais; mesmo quando se sente desconfortável, evita denunciar quem sempre parece querer-lhe bem. Afinal, os outros adultos estão emocionalmente muito mais afastados. Tem dificuldade em dizer “não”, sente que talvez seja culpada de ter ido tão longe. Envergonha-se; sabe como tais situações, quando reveladas, são motivo de escárnio. Isola-se e tenta sobreviver até que um dia possa sair da instituição.
Vamos a contas: no referido período, passaram pelas 250 instituições em causa entre 30.000 e 40.000 crianças. No inquérito realizado nos primeiros anos deste século, duas mil, algumas com mais de cinquenta anos, declararam ter sofrido abusos de vários tipos.
Ah, o horror! Inaceitável!”, dirão alguns, alarmados com os números. “Danos colaterais. Inevitáveis.”, dirão outros, argumentando que se fossem só estas duas mil, estaríamos a falar do valor “confortável” de apenas 2 ou 3 crianças abusadas, por instituição, por ano.
Há, realmente, tanta coisa inaceitável que temos de engolir, infelizmente, desde a miséria nos bairros periféricos das grandes cidades, à exploração e à guerra no terceiro mundo promovidas pelas grandes potências, que produzem milhões de refugiados, sem esquecer essa ignomínia de todos os tempos — o tráfico de pessoas. Em todas essas situações, há inocentes apanhados nas redes da animalidade humana e traídos pelo bocejo da indiferença social e internacional. É tão difícil alertar as pessoas, embrenhadas nos seus pequenos problemas. E, mesmo quando alguém para para pensar, o máximo que sente é uma sensação angustiante de impotência. E vai desforrar-se no frigorífico…
Para quem foi abusado, a relação com a situação de que foi vítima é diferente. Não consegue simplesmente declarar para si próprio: “é passado”. É um subjacente desconforto psicológico permanente. Pela humilhação, pela coação a que não conseguiu escapar. Muitas vezes, reconhece que lhe estruturou a personalidade, alterando profundamente a relação com os outros, provocando-lhe sentimentos de desconfiança e medo, baixa autoestima, menor resistência aos posteriores solavancos da vida.
O caso relatado foi tratado com algum empenho: os inquéritos permitiram identificar 12.500 vítimas e indemnizá-las, reconhecendo a gravidade do trauma. E houve afastamentos de responsáveis e pedidos de desculpas.
Não se sabe o que desencadeia as tendências pedófilas. Nem sempre os abusadores foram abusados; nem sempre os abusados se transformam em abusadores. Há pedófilos violentos, mas, muitas vezes, são apenas o que a palavra indica: gostam mesmo de crianças. À sua distorcida maneira. Não aceitam que o que fazem é prejudicial à criança, que representa um abuso, uma humilhação que a vai acompanhar pela vida inteira. Se tiverem oportunidade — e é impressionante como são atraídos por relações, atividades e profissões que os aproximem das crianças — vão repetir comportamentos pedófilos.
Pelas crianças, que serão adultos magoados, a sociedade tem o dever de tentar reduzir as oportunidades de acesso dos pedófilos às crianças, selecionando criteriosamente quem lida com elas e mantendo uma observação ativa sobre o funcionamento dessas instituições. Para que as irlandas deste mundo sejam apontadas apenas pelos bons motivos: as belas paisagens e o bom uísque.

Joaquim Bispo

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Imagem: Georges Rouault, Tete o palhaço, Paris, 1930.

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(Esta crónica foi publicada no número 20 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2009.)

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10/08/2016

O coelhinho medroso


Era uma vez um coelhinho cinzento que vivia num campo de beringelas. Durante o dia, corria e saltava feliz, comia e dormia à sombra das plantas; à noite, tremia de frio, e de medo de ser apanhado e comido por algum monstro. Dormia ao relento, porque jamais entrara numa toca, com medo que ela lhe caísse em cima e o esmagasse. Até a vista de um buraco numa árvore o assustava, por não saber o que tinha lá dentro.
Certa vez, passou por aquele lugar uma menina de vestido branco e longos caracóis castanhos, que andava a passear, porque se aborrecia de estar em casa, e encontrou o coelhinho, com cara infeliz, aninhado entre dois troncos.
Por que estás triste, coelhinho cinzento? — perguntou ela.
Gostava de ter uma toca para me recolher, como os outros coelhinhos, mas tenho medo que a toca me caia em cima e me esmague — respondeu o coelhinho, timidamente.
Por que é que havia de te cair em cima, coelhinho? Sê corajoso! — animou-o a menina. — Não sabes preparar uma toca?
Não — lamentou-se o coelhinho cinzento — nunca ninguém me ensinou.
Oh! — condoeu-se a menina, fazendo-lhe uma festinha na cabeça — eu ensino-te.
E assim, durante a tarde inteira, a menina do vestido branco, com muita paciência e ternura, ensinou o coelhinho cinzento a preparar uma toca, para que ela não lhe caísse em cima. Ensinou-o a encontrar o melhor local meio escondido entre as ervas, a remexer e amaciar a terra, a abrir a toca com as patinhas, a alisar a entrada com pequenas marradinhas. Quando a toca já estava de bom tamanho e com aspeto confortável, disse a menina:
Agora, coragem coelhinho! Esta toca está muito bem preparada e de certeza que não vai cair-te em cima. Entra sem medo, coelhinho!
E dava-lhe palmadinhas de encorajamento. O coelhinho cinzento, vendo como a toca parecia segura e acolhedora, e cheio de confiança pelo incentivo da menina, esticou o peito, em atitude resoluta, e entrou.
Na verdade, a toca era o local mais confortável e seguro onde alguma vez já tinha estado. Apetecia-lhe ficar lá dentro para sempre. Nem acreditava como tinha passado tantas noites a tiritar de frio e de medo. Quando saiu para agradecer à menina, esta pegou nele ao colo, e despediu-se com um abraço apertado. O coelhinho, comovido, não pôde evitar uma lágrima de ternura e gratidão. Desde então, todas as noites se recolhe à toca, confiante e feliz, sem nunca deixar de lançar um pensamento para a menina de vestido branco e longos caracóis castanhos.

Joaquim Bispo

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Imagem:
Balthus, Teresa a Sonhar, 1938.
Metropolitan Museum of Art, New York.

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(Este conto foi publicado no número 20 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2009.)

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10/07/2016

toda. A semana



(Continuação:) (...)tava no lugar do condutor.

Na segunda-feira, estava um carro estacionado mesmo em cima da passadeira de peões que dá acesso à minha casa. Incomodado, afixei-lhe, a meio do para-brisas, um pequeno autocolante amarelo, que trago sempre comigo, que dizia: Estacione bem — Respeite os outros.

Na terça-feira, deparei com o mesmo carro estacionado na passadeira. Indignado, apliquei-lhe, desta vez, um outro pequeno autocolante vermelho, que dizia: Mal estacionado — Sujeito a reboque.

Na quarta-feira, o carro estava outra vez na passadeira. Irritado por a minha ação pedagógica não resultar, levantei-lhe os limpa para-brisas.

Na quinta-feira, lá estava o carro na passadeira. Exasperado com tanta falta de respeito pelos outros, coloquei-lhe um palito na válvula do pneu dianteiro direito. O ar ficou a vazar.

Na sexta-feira, o carro estava, uma vez mais, na passadeira. Furibundo, puxei da chave de casa e apliquei um risco profundo a todo o comprimento do carro.

No sábado, o carro já não estava na passadeira, finalmente. «Há pessoas que só entendem a linguagem da violência» — pensei.

No domingo, verifiquei, com horror, que o para-brisas do meu carro, bem estacionado, estava estilhaçado. Uma perna de um tanque de lavar roupa, em cimento, esprei(...)

(Continua na primeira linha.)
Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, Espirais, 1953.

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(Este miniconto bebeu inspiração na estrutura rítmica de um pretenso “poema do budismo tibetano” e persegue uma estrutura circular. Foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

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