10/08/2019

Cesteiro que faz um cesto



Esta história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e Enchidos, SA.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas. Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por alguma mistura sociolaboral que nunca foi possível discernir, a greve que foi marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos sindicatos.
De regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço coletivo de adesão total à greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava então a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca —, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente. Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no local onde então era feito o enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical: à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. O Amieiro reparou também que, integrado naquele grupo pouco habituado ao manuseamento dos complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento de chouriços.
Amieiro ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. “Cesteiro que faz um cesto…” Faz um cento, diz o ditado. Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento, enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
Então, outra vez por cá?
Fajeca, também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu, sim, que, se fosse ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito por toda e qualquer posição perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.

Joaquim Bispo

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Imagem: Lima de Freitas, Retrato de Fernando Namora, 1951.
Coleção Casa Museu Fernando Namora.


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