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10/02/2024

O muro global

 


Na reunião de Agenda da estação de televisão, já se notava a agitação própria do final. Tinham sido distribuídos os serviços de política nacional, os desportivos, os criminais e os de sociedade. Só faltava um
fait divers. Alguém adiantou a informação de que o furtivo graffiter ShameU andaria a pintar um novo painel.

Este artista de rua emergente tinha vindo a ganhar relevância e visibilidade com impressivas pinturas a spray de médio e grande formatos, sempre de temática provocatória. Não tão genial, nem tão difícil de encontrar como o quase mítico inglês Banksy, ShameU suscitava, no entanto, cada vez mais curiosidade pública. Vhils, de projeção internacional, ganhava em popularidade, mas aplicava-se numa área diferente — a intervenção mecânica em paredes, jogando com os diversos matizes das camadas subjacentes. Também as instalações parietais de Bordalo II, a partir de materiais industriais reutilizados, suscitavam admiração além-fronteiras. Na técnica do graffiti a spray, já tinham brilhado inúmeras vezes no ecrã os prolíficos Smile, Styler, Odeith e outros. ShameU, pelo contrário, era quase desconhecido do grande público, e tinha fama de maldisposto.

Eu faço isso! — decidiu Edite Silva, sacolejando a cabeça para afastar uns fiapos de cabelo que lhe tocavam nas pestanas.

Terá sido a curiosidade pessoal que levou a subdiretora a assumir este trabalho de rua. Ou uma vontade de ser associada no futuro a esta celebridade nascente. Era conhecida por ter apetência pelos media cor-de-rosa.

A assistente fez o contacto e combinou os pormenores: seria à tardinha, num muro de suporte de uma escarpa sobranceira a um acesso rodoviário na Pontinha.

Tem de ser mais cedo. Diz-lhe para estar lá às 4!

À hora combinada, com um operador de reportagem a tiracolo, Edite aproximou-se do graffiter que, empoleirado numa plataforma, rodeado de latas de spray e de máscara protetora na cara, ia compondo a imagem que idealizara, num muro de uns cinco metros de altura já muito sobrerriscado de pichagens antigas.

O trabalho estava no início. Em primeiro plano, a toda a altura, sobressaía o que parecia vir a ser a Estátua da Liberdade de Nova Iorque, vista de costas.

Uns miúdos que já por ali andavam, aproximaram-se mais, ao reconhecer a estrela televisiva. ShameU pousou a lata de spray que estava a usar e desceu. Aceitara a entrevista decidindo que “A televisão é uma oportunidade top” e esperara a equipa de reportagem trabalhando, mas vagamente constrangido. Toda a sua estratégia passava pela divulgação da mensagem, mas não tinha simpatia pelos grandes media.

Apresentados, Edite, expedita e decidida, delineou o que pretendia:

Começamos por conhecer o seu percurso, o que faz e porquê. Eu vou-lhe fazendo perguntas, enquanto o repórter de imagem vai mostrando o seu trabalho. No fim, teremos de fazer uns planos de corte, para montar a reportagem. Ok?

O graffiter assentiu, um pouco atarantado com aquela velocidade toda.

Vamos lá! — comandou a jornalista. Pigarreou ainda um pouco, a aclarar a voz, e começou: — Hoje viemos conhecer um graffiter, um talentoso artista de rua. ShameU, há quanto tempo pinta, o que pinta, e porquê? Fale-nos um pouco de si!

No secundário já tinha “jeitinho” para o desenho. Infelizmente, não tive nota para entrar em Belas-Artes. Fazia parte de uma crew que assinava todos os muros vazios que encontrava. E de vez em quando fazíamos umas figuras pop-art e letras muito perspetivadas. O que me trouxe para o graffiti de intervenção foi a exigência ética de denunciar os crimes da América. Tinha acontecido o assalto sem justificação e a destruição do Iraque, e ninguém parecia importar-se; muitos até apoiavam a carnificina. Morreram centenas de milhares de iraquianos. Inocentes. Exceto o exemplo corajoso de Carlos Fino, a voz do dono passava uma mensagem mansa de justiça e normalidade. Daquele ato bárbaro, ao nível de um Hitler. Uma injustiça brutal, o mal puro à solta.

Foi então que começou a pintar os muros da cidade?

No princípio, a imagem era, para mim, uma perda de tempo e de tinta. A mensagem era tudo. Uma frase, a negro, a denunciar os massacres infligidos pela América aos povos era o necessário e suficiente. “A matança de Bush já atinge os duzentos mil civis”, por exemplo. Quase sempre acrescentava o link da Internet com essa notícia. Depois percebi a força das imagens, sobretudo ao ver as pinturas do Banksy. O que não impedia a frase forte, rápida de aplicar em qualquer muro, a denunciar as canalhices da época; por exemplo: “Obama matou hoje mais 17 crianças no Paquistão”.

Parece então que você, com tantos atentados aos direitos humanos por esse mundo fora, escolhe os Estados Unidos como “o mau da fita”!

A minha crítica é mais um queixume. A América, como superpotência ultradesenvolvida, tem uma responsabilidade especial. Ela é glorificada pelas massas, apregoa-se como um farol de liberdade, mas não passa de uma carcereira implacável. Existem hoje mais de mil bases militares norte-americanas fora dos Estados Unidos, espalhadas por todo o planeta. E ai do país que eleja um governo que ela não aprove. Pode ser o mais querido pelos seus povos… o mais certo é ser boicotado, sabotado, invadido. Veja os casos de Cuba, do Iraque, da Líbia!

Eram países comandados por ditadores sanguinários, certo? Você defende as ditaduras? — reagiu Edite, provocatória.

Aqueles a quem a senhora chama ditadores foram, muitas vezes, os líderes que retiraram os respetivos países de baixo da pata colonialista. Por isso, o Ocidente não lhes perdoa. Promoveram o desenvolvimento, retiraram milhões da pobreza. Foram heróis para os seus povos — ShameU gesticulava, acentuando as palavras com movimentos largos. — É certo que, muitas vezes, foram ingénuos, como crianças inexperientes, deixaram-se deslumbrar e cometeram erros. Por eles devem ser criticados. Mas faz sentido que eu seja mais crítico para com eles do que para com os “adultos”, isto é, as nações ricas, que gargarejam direitos humanos, mas não têm a mínima compaixão pelas pessoas reais? Como a América, que substitui os “ditadores” por guerras civis, que matam centenas de milhares ou milhões de inocentes. Os povos não precisam de ajudas genocidas. Quando as condições ficam reunidas, libertam-se dos opressores, como Portugal se libertou.

Mas a América, como lhe chama, pode cometer erros, mas é uma democracia...

Infelizmente, a América, mesmo classificada de democracia, faz quase sempre parte do problema e poucas vezes da solução. Talvez para tentar esconder os indisfarçáveis níveis de racismo, de pobreza, de faltas de acesso à saúde e à educação, que por lá são tratadas como virtudes liberais. Não creio que chamar-lhe democracia traga algum consolo às famílias das vítimas dos morticínios provocados pelas administrações americanas. Num sistema político mundial que se regesse pela justiça e pelos apregoados direitos humanos, Bush teria comparecido perante um tribunal marcial, por crimes contra a Humanidade. Que eu saiba, nem sequer foi preso. Nem se pôs essa hipótese! Imunidades e impunidades de dirigentes parecem tiques próprios de regimes imperiais e tirânicos. Que admiração podem suscitar? — continuou, empolgado. — Para qualquer deserdado do Mundo, é indiferente se chamam democracia às apalhaçadas eleições internas que uma superpotência faz. Nem sequer pode votar nelas! Interessa-lhe é que não sabote os governos que o seu país elege; muito menos que lhes vá lançar bombas em cima.

Já vi que você tem a cartilha bem estudada…

Infelizmente, não! Navego muito à vista — ripostou o graffiter, de cenho contristado. — Demasiadas vezes ainda acredito nos noticiários. Mas depois percebo que são eles que nos formatam o entendimento, de tal maneira que aceitamos as maiores desumanidades, só por virem defendidas pelos meios de comunicação. Acha ético que a comunicação social — que devia ser uma força formadora de mentes livres — continue a veicular os sofismas americanos, depois da mentira do Iraque? Uma comunicação alinhada com um dos lados é um ataque à liberdade. É uma agente ativa do encarceramento mundial.

A sua atitude é muito negativa. Quer dizer que não acredita na Liberdade, nem nos meios de comunicação para a defender?

É, é isso mesmo! — assegurou, convicto. — O Wikileaks faz mais pela informação independente e pela liberdade dos povos do que a comunicação social mundial. Só depois das denúncias de Assange, de Snowden e de Manning é que já se vão ouvindo críticas ao presidente americano. Que, atualmente, é um psicótico que está a retirar os Estados Unidos de todos os acordos, a erguer muros em todas as relações internacionais e que usa o garrote económico como arma de submissão dos povos. Em termos de ferocidade, não é melhor do que os outros.

Então, o que significa essa Estátua da Liberdade que você está a pintar?

Como ícone da América, representa aquilo em que ela se transformou. Será uma estátua da liberdade anafada, vingativa, estúpida, de coroa estrelada cor de laranja. O braço em tensão vai exibir a força musculada com que ela e os seus tentáculos se empenham a erguer muros por todo o mundo — um planisfério que vai estender-se por trinta metros desta parede, até se perder além no talude e nos arbustos, supostamente estendendo-se até ao infinito. Este mapa será cruzado em todas as direções por um labirinto de muros, sobre os quais ela vai aplicando intermináveis rolos de arame farpado. Espero que a mensagem seja suficientemente evidente.

Muito bem; vou deixá-lo a terminar a sua obra. Desejo-lhe boas inspirações!

Meia hora depois, numa sala de montagem, Edite dava indicações ao operador para a sequência dos planos da entrevista.

João, tenho agora uma reunião. Mete o áudio da parte inicial, em que ele diz que o Bush matou civis e aquelas cenas do Iraque, mas sobre a imagem da parede ainda repleta de pichagens antigas. Podes meter também a parte do Trump. Não metas o Obama, nem a parte em que critica os noticiários. Acaba com um zoom out dele em cima do escadote, a pintar a imagem da Estátua da Liberdade. Não passes do minuto e meio! A peça vai para o ar perto das 9. 

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto de 2017 foi selecionada para a 4ª edição (janeiro/fevereiro de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 80 a 83):

https://drive.google.com/file/d/1Pjsw0lKy356144o1kqxLX8jVFItxuQNo/view

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Imagem:

Alguns dos centos de graffitis em um dos centos de muros.

Belém, Cisjordânia, Palestina.

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10/03/2022

A final olímpica

 


Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.


No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.

Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.

O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?


Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.

Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.

Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.

Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.

Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?

O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.

Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.

Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:

Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.

Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.

Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.

Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.

Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.

Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.


Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].

Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!


Joaquim Bispo


Imagem: Drone americano MQ-9 Reaper. Da net.

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Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017, pp. 61–63.

https://www.smashwords.com/books/view/758968


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10/04/2019

A Guerra da Líria



Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã. O negócio com os investidores imobiliários chineses tinha sido concluído. Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a apostar em aplicações financeiras agressivas, recebeu-o de imediato:
Tenho justamente o que lhe vai agradar, senhor Fontoura — atacou o gestor. — Já ouviu falar em SEP? São produtos de exposição suprema, na sigla em inglês. Não lhe vou mentir; como o nome sugere, são aplicações de risco máximo, em que o investidor pode perder tudo de um dia para o outro, mas, se correr bem, como quase sempre sucede, o senhor Fontoura pode ver triplicado ou quintuplicado o seu investimento em um ano, ou até em poucos dias. Quem não arrisca não petisca, lá diz o ditado.
Ótimo; mas de que se trata: ações, futuros, o quê?
Uma espécie de ações. Ou antes, unidades de conquista e predação, como eu gosto de lhes chamar. Cada ação é como um soldado que invade o território inimigo, mata quantos encontra e regressa com os despojos. Ou então mantém-se a ocupar o território, a assegurar um fluxo contínuo de riqueza para os acionistas. Para o seu bolso, senhor Fontoura.
Não estou a entender nada. Já percebi que são aplicações agressivas, mas apresentá-las como soldados a invadir território inimigo será uma metáfora exagerada, não?
De modo algum! É mesmo disso que se trata. O que lhe proponho, senhor Fontoura, são ações da Guerra da Líria. Sim, aquela que começou há quinze dias — reforçava o gestor bancário, perante o rosto incrédulo de Fontoura. — É o produto que está a bombar. Literalmente. Aproveite agora, enquanto estão baratas, porque quando o conflito ganhar dimensão, quando, como se espera, os rebeldes adquirirem mísseis terra-ar e derem luta às forças governamentais, de igual para igual, aí, senhor Fontoura, pode ser tarde. Aí, podem já estar ao preço das ações da Guerra da Síria, que ainda é um bom produto, sempre a jorrar dividendos, mas a que já não se pode chegar. Agora, só os grandes bancos e os conglomerados financeiros dos países ricos as podem comprar. Aliás, nem sequer aparecem à venda.
Fontoura parecia em choque. Pressionado pela pausa do gestor, acabou por murmurar:
Guerra?
Sim, claro; tudo o que dá dinheiro é bom para investir…
Refere-se a empresas de armamento, não?
Também; mas a gestão por objetivos obrigou a que se separassem as áreas de aplicação — Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra da Ucrânia —, cada uma com o seu fluxo de capitais e o seu retorno, por um lado, e a junção de várias empresas no mesmo esforço de produção. Um mesmo objetivo engloba, certamente, empresas de armamento, mas também empresas de reconstrução, empresas de segurança, até empresas de comunicação social, todas unidas no mesmo esforço de manter a guerra em atividade. O pior que pode acontecer é, sem se esperar, os contendores fazerem as pazes. Essa é a única situação em que os investidores podem perder grande parte ou todo o capital, porque as ações vêm por aí abaixo.
Mas, isso é horrível! — reagia, finalmente, Fontoura, acompanhando as palavras com uma expressão de repugnância. — Então e as cidades destruídas, as mortes de crianças, as populações em fuga a atirarem-se ao Mediterrâneo de qualquer maneira, em barquinhos sem condições, a preferirem o risco de uma morte por afogamento à vida demencial em zona de guerra?
Bem, realmente há algumas associações de intervenção social que chamam Stinky Ethics Products aos SEP, como quem diz Produtos de Ética Pestilenta, mas a pessoa quando entra no mundo financeiro é melhor nem saber em que é aplicado o seu dinheiro. É como os frangos — gostamos do sabor, mas não queremos saber como são criados.
Diga-me uma coisa: isso é legal? É que estou a ver que, se alguma coisa correr mal, posso ser preso e julgado, acusado de me tornar cúmplice de destruições e matanças, de crimes contra a Humanidade, não?
Ó senhor Fontoura, eu nem estou a acreditar no que estou a ouvir — impacientava-se o gestor. — O senhor desculpe, mas já viu algum vencedor ser julgado? Nós estamos do lado dos vencedores, senhor Fontoura! Agora, e por muito tempo. Mais depressa condenam algum negociador de paz do que simples acionistas que apenas querem aplicar honradamente algumas poupanças que conseguiram com o seu trabalho. Não é o senhor que vai lá dar tiros, nem empurrar refugiados para os barcos da morte
Está bem, está bem! — contemporizava Fontoura, derrotado. — Líria… A Líria até parecia um país sossegado. Cheguei a passar por lá, em férias. Tinham as suas manias, como os outros, mas nada fazia prever isto. De repente, aquele obus na escola… E o governo a dizer que tinham sido os rebeldes, e eles a acusar o governo...
Não fui eu que disse, mas com certeza que às vezes é preciso dar um empurrãozinho... Repare, os outros conflitos estiveram um bocado parados e assim ninguém ganha dinheiro. Felizmente, parece que as coisas estão a “melhorar” na Líbia. No Iraque, então…; as ações estão outra vez a subir em flecha. Aliás, se o senhor Fontoura não quiser investir na Guerra da Líria, compre Iraque. Estou convencido de que ainda vão subir muito mais.
Não, não; pode ser Líria. Gostava do país, gostava do povo. É pena irem partir aquilo tudo. Paciência!

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 19 a 21 — a 14ª edição (março/abril de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Delacroix, A barca de Dante, 1822.
Museu do Louvre, Paris.
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10/10/2018

És Feliz?



Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a naturalidade das coisas quotidianas.
Um avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança que tenho dele é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha vivido sempre na aldeia — exceto a passagem por França, na I Guerra Mundial — e cuja informação se fazia nos mercados, nas conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo dele era calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A curiosidade de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse hoje, ele parado nos cinquenta e tal anos da fotografia da parede, bem mais novo do que eu agora? Como nos relacionaríamos, se convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas? A sua ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia reverente, vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos era sagrado?

Se bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um mês. Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de lazer caseiro, aos de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe as maravilhas do meu tempo e indaguei-o sobre muitos aspetos do dele. Levei-o velozmente pelos lisos tapetes das autoestradas do país, mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o Tejo, mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o pelas avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros. Ele mostrava-se um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou especialmente da televisão por cabo. Devorava sobretudo as notícias. Embora se admirasse com os telemóveis, o computador e a internet, ficava particularmente desconfiado com o microondas e divertido com a máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo e às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às lágrimas. Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as várias utilizações dos plásticos. Apreciou o serviço de aconselhamento médico pelo telefone, a que tive de recorrer. Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a frescura das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das cores fortes e dos tamanhos surpreendentes.
Finalmente, chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e — cito de memória — disse-me:
«Amaro, meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família e o teu mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender para um homem do meu tempo. Custa-me a crer que os homens foram à Lua, que desvendaram as entranhas da vida, que criaram certas maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo isso, mas continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos. As guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há milhares de pessoas a morrer de fome — que conceito abominável —, enquanto nos países ricos se destroem milhares de toneladas de alimentos, para não deixar baixar os preços. As cidades estão cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em pequenos espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem exercer uma profissão na sua área de estudos. Os jovens apenas arranjam trabalhos precários, às vezes, escravatura encapotada, com nomes pomposos como “estágio não-remunerado”.
E, no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já não trabalhas, recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde, podes fazer o que quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos cronistas, como tens brincado aos bloguistas e aos contistas. Passas demasiado tempo ao computador. Tens mais amigos na internet do que na “vida real”. As novidades tecnológicas vêm, envolvem-te e passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que nunca ouves, rádios, cento e tal canais de televisão, dos quais vês meia dúzia. A oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que idealizavas? Parece-me que estás esquecido dos sonhos da adolescência. Diz-me: és feliz?»
Antes que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora. Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter estado mais tempo com ele!

Joaquim Bispo
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Imagem: Adriano Sousa Lopes (1879-1944) (Artista oficial do Corpo Expedicionário Português durante a Iª. Guerra Mundial), Aprés une Attaque de Gaz (Depois de um ataque de gás),  Musée de la Grande Guerre du pays de Meaux.
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(Esta crónica integra a coletânea resultante da edição de 2013 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.)
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10/06/2017

O Ar do Tempo



Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.”
Marinetti, Manifesto Futurista, 1909.

Arrastando a brevidade da nossa existência na lama do nosso pequeno mundo, esfrangalhamo-nos de impotência, de cada vez que a tragédia nos atinge. Como seria perfeito podermos voltar atrás e alterar o que correu mal: aquela brincadeira de adolescente que teve consequências funestas, aquela nossa palavra impensada que comprometeu a nossa vida profissional, o episódio que desencadeou uma guerra.
Um dos episódios singulares de consequências mais devastadoras da nossa História recente é o do atentado bem-sucedido contra o herdeiro do Império austro-húngaro, o arquiduque Francisco Fernando. Foi perpetrado na cidade de Sarajevo por um estudante de vinte anos, membro de um grupo nacionalista de inspiração sérvia, em 1914. Quase todos os historiadores estão de acordo que esse episódio desencadeou a Primeira Guerra Mundial, que levou à Segunda, que levou à Guerra-fria, que levou à hiperpotência única e a outros males correlatos.
Candidamente, podemos pensar que, se pudéssemos evitar esse atentado, o rumo do mundo teria sido muito diferente; não teríamos passado por aquelas guerras terríveis, e hoje teríamos paz. Evitá-lo seria o ideal, mas, para muita gente, entender o que correu mal já seria um avanço extraordinário, já forneceria um avo de esperança de evitar, no futuro, a sequência fatal de acontecimentos que leva ao horror.
Alguns filósofos admitem que, devido à extensão infinita do nosso universo, toda a nossa história está, também, a decorrer num número inimaginável de outros mundos, em incontáveis variantes que resultam de outras tantas pequenas variações de rumo. Assim sendo, a nossa mesma história poderia ser encontrada e observada numa das inúmeras fases já passadas ou futuras, como em cada versão do que podia ter sido.
A ideia é aliciante. Desgraçadamente, mesmo que seja verdadeira, falta aquele pormenor: conseguir viajar no tempo. Infelizmente, o tempo parece caminhar numa só direção. Todas as tentativas de viajar nele, se é que existiram, falharam.
A nossa única consolação é a ficção. Nela, temos exercido a liberdade de viajar no tempo, nos dois sentidos conhecidos, à velocidade que o autor decidiu. Caro leitor, aceite embarcar neste meio de transporte espaciotemporal e observe um pouco do ambiente que lançou a Europa e o Mundo na Primeira Guerra Mundial. Partamos!

Ao abrigo de um programa secreto, foi, há seis anos, enviado um explorador a um planeta dum aglomerado globular a 160 milhões de anos-luz de distância, onde se detetou que o atentado de Sarajevo não resultou. Pretendia-se perceber qual foi o pormenor que alterou o rumo da História e por quê, a fim de tentar evitar tragédias semelhantes, no futuro. Como esse explorador faz o favor de ser meu amigo, um dia contou-me o seguinte:
A minha missão era apenas seguir o estudante radical Gavrilo Princip e, como sombra, observar o que fazia, já que na Terra tinha sido ele a abater o arquiduque e a mulher. Nos dias anteriores ao atentado, reuniu-se várias vezes com os seus correligionários da “Mão Negra”, combinando posições ao longo do trajeto do alvo pelas ruas de Sarajevo e as armas que cada um iria utilizar. O grupo parecia animado por um ódio violento contra a recente anexação austro-húngara da sua Bósnia-Herzegovina, e falava frequentemente da congregação futura de todos os povos eslavos, desde os sérvios aos eslovacos, sob uma bandeira comum — o chamado pan-eslavismo. Até aqui, tudo como na Terra. O que me surpreendeu foi a realização de uma exposição de artistas futuristas na cidade, a ser visitada pelo arquiduque. O grupo infiltrara lá um elemento, como vigilante, o qual deveria detonar uma bomba escondida no interior da escultura mais representativa, quando Francisco Fernando estivesse a admirá-la.
Na antevéspera, Gavrilo acompanhou o amigo vigilante à exposição. A ideia era ajudar a distrair alguém presente, enquanto a bomba era instalada por outros dois elementos. Por coincidência, deambulava pelas salas um dos artistas — o depois famoso Umberto Boccioni. Gavrilo e o companheiro mostraram-se interessados nas obras expostas, e o artista gostou do ar radical e da postura revolucionária deles. Para ilustrar a atmosfera que se vivia na Europa, mesmo dentro dos movimentos artísticos, relato alguns dos diálogos mantidos pelo pequeno grupo:
Gosto destes teus “Estados de alma” e do “Tumulto na galeria” — começou Jovanovic, referindo-se a duas pinturas de Boccioni e afastando o artista da zona das esculturas. — São violentos.
"Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima" — teorizava Boccioni, citando o Manifesto Futurista, de Marinetti. — Já não há beleza senão na luta.
Rapidamente, a conversa derivou para temas de patriotismo, anarquia e insurreição, afinal, caros a ambos os grupos: artistas futuristas e radicais do “Mão Negra”.
Também penso isso — acompanhava Gavrilo. — O mundo está submetido a impérios que oprimem os povos: o austro-húngaro, o alemão, o inglês, o russo e o otomano, para só falar dos maiores.
"Nós, os futuristas, cantaremos as grandes multidões agitadas pela sublevação" — enlevava-se Boccioni.
Só a Sérvia nos pode salvar da pata dos impérios — declarava Jovanovic. — Com os nossos irmãos de outras regiões eslavas, formaremos uma grande nação que renovará o decadente Ocidente, conforme bem disse o grande Bakunine.
"A guerra é a única higiene do mundo" — prosseguia Boccioni, alimentado pelo radicalismo dos visitantes e pelo espírito do Manifesto Futurista de 1909. — O patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas são belas ideias pelas quais vale a pena morrer.
Nessa altura — confessou o meu amigo — eu já duvidava que, com tal incitamento, Gavrilo deixasse de executar o gesto assassino pelo qual ficou conhecido na Terra.
Que pensas do arquiduque que depois de amanhã visitará a tua exposição? — perguntou ele ao artista.
Acho-o capaz de iniciar uma bela guerra, aquela que a Europa precisa para varrer todo este bolor acumulado — respondeu o pintor escultor. — Sabes o que ouvi dizer? Que, ao longo da vida, já matou cinco mil veados em jornadas de caça, o feroz. Gosto desse laivo agressivo dele.
Pouco depois, Gavrilo despediu-se; a bomba já fora instalada na mais emblemática escultura da exposição — um gesso com o título “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”, que agora está em S. Paulo e cuja imagem circula nas moedas de vinte cêntimos de Itália.

No dia da visita do arquiduque, 28 de Junho, a comitiva deslocava-se em sete carros. O arquiduque e a esposa iam no terceiro. O primeiro membro do grupo, Mehmedbasic, não disparou por não ter bom ângulo. O segundo lançou uma bomba que falhou o alvo, mas feriu várias pessoas do carro seguinte. Tomou rapidamente uma pílula de cianeto e lançou-se ao rio que atravessa Sarajevo, mas a pílula não fez efeito; foi retirado do rio e quase linchado, mas a polícia levou-o. Como cá.
Eu não estava a ver o que é que iria ser diferente. Os restantes membros, incluindo o que eu vigiava, fugiram. Como na Terra, o arquiduque irritou-se fortemente pela receção tão hostil e mais tarde foi visitar os feridos ao hospital. Como sabes, foi nesse percurso que, inesperadamente, o seu carro surgiu na rua onde Gavrilo Princip deambulava furtivamente e este aproveitou para disparar. Um acaso infeliz, que lançou a Terra numa espiral de guerras. Ali, Gavrilo procedeu de forma diferente. Postou-se perto da sala de exposições, esperando, talvez, que o arquiduque mantivesse a visita programada. Não manteve. Acabou por voltar para Viena sem um arranhão.
Fiquei feliz pelo resultado, sem contudo ter uma opinião clara sobre a causa da variação. Para uma melhor perceção da diferença resultante, fiquei lá mais um mês. Por essa altura, como na Terra, o imperador Francisco José acusou a Sérvia de fomentar a sublevação em algumas regiões ocupadas pelo Império, fazendo várias exigências de controlo. Como aqui, a Sérvia aceitou a maioria delas, exceto as inspeções dentro do seu território, por considerá-las uma violação da sua soberania. Então, o Império austro-húngaro atacou a Sérvia, a Rússia foi defendê-la, a Alemanha juntou-se ao Império, e, como aqui, o resto que tu sabes.
Compreendi que o atentado na Terra foi bem-sucedido devido a uma circunstância meramente casual, e que não terá sido tão decisivo para o início da guerra, como se pensa. A atmosfera de confrontação que se vivia no continente, que até os movimentos artísticos refletiam, era determinada por uma atitude belicosa das potências envolvidas, cuja arrogância as incapacitava de dialogar com as minorias subjugadas. Percebi que foram e são essas potências as grandes responsáveis pelas guerras. Qualquer pretexto lhes serve para prosseguir políticas de domínio global, seja um atentado ou outra desculpa qualquer.
Para o ano, vou integrar outra missão de observação crono-simétrica: tenho a incumbência de averiguar que pretextos foram usados para começar a guerra contra o Iraque, em três pontos diferentes do Universo.

Joaquim Bispo

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Imagem: Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo [cópia em bronze e original de 1913, em gesso].
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(Este conto foi publicado no número 29 da revista literária virtual Samizdat, de junho de 2010.)
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