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10/12/2022

Do lado de fora

 

Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.

A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.

Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada — literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, mas sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico, já com víveres separados, que entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.

Certa vez, tendo eu achado uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um ou dois dias depois, apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais confortável.

Esta recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém conseguisse aliviar-lhe o mal-viver. A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá porquê. Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.

Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas. Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e aproximei-me do local numa posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao meu posto, com medo de lhe perder o rasto.

Não havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me, eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida, era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não tivessem invadido as hortas.

Feita a sesta e reposta a carga, o meu vizinho (como seria o nome dele? É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros) atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma galinha.

Estava descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.

Meditando sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais caritativas intenções.

No silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo passa.

Aparentemente, terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.

Joaquim Bispo

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Por uma daquelas coincidências significativas tão comuns nas Ciências e nas Artes, como se as ideias “andassem no ar”, foi criado em dezembro de 2022, no Porto, um grupo de teatro empenhado em puxar para esta atividade inclusiva e socializante pessoas sem-abrigo, a que foi dado exatamente o nome de “Do lado de fora”. Ao seu dinamizador, Rui Spranger, o meu voto de bom sucesso!

https://portocanal.sapo.pt/noticia/319918?fbclid=IwAR1JF5rnOImzqxTfffayg4hYpgATMqjvhkKuK-9BBWJBWoo4mY8f0nE3p6o

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Imagem:

Dominguez Alvarez, Louco, 1934.

Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Lisboa.

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10/11/2022

O caso Maria das Dores


As referências ao estranho caso de Maria das Dores são escassas e pouco elucidativas. Foi ao folhear números do Jornal de Anadia do ano de 1965, em pesquisas etnográficas, que encontrei uma pequena notícia no fim de uma página par. Não consigo reproduzir o texto, porque entretanto perdi a cópia, mas lembro-me que tratava de uma mulher que se tinha suicidado, após ter assistido a uma apresentação do Coro Paroquial de Arouca, no Teatro Bairradino. A notícia referia que o grupo coral carregava um histórico de outras mortes inexplicadas de espectadores e levantava suspeitas sobre uma possível influência perniciosa da soprano principal, a tal Maria das Dores. Na altura, não lhe atribuí grande credibilidade. Sabemos bem como, por vezes, se empolam e se adulteram factos com “explicações” sem qualquer relação de causalidade.

Quis o âmbito da minha pesquisa que eu consultasse outros jornais da zona centro, algum tempo depois. O Vouzelense forneceu-me a segunda referência a Maria das Dores: após o espetáculo coral na Casa do Povo, um homem atirou-se do viaduto ferroviário para as rochas. Não se conheciam à vítima problemas económicos ou depressivos. Desta vez, a curiosidade obrigou-me a maiores empenhos. Alarguei a minha pesquisa etnográfica ao jornal de Arouca, na esperança de encontrar outras referências a Maria das Dores, na sua própria terra.

No Arouquense, em cada ano de meados de 60, foram noticiados um ou dois casos funestos com espectadores do coro paroquial. Depois de vasculhar os arquivos do jornal, comecei a fazer perguntas pela terra. As memórias estavam invariavelmente “apagadas”, mas depois de ser empurrado de um lado para o outro, dei com um ancião disposto a falar. Era um ex-professor primário.

Sim, conheci-a muito bem. Chamava-se Maria das Dores. Era de uma aldeia da Serra. Farta de frios e malpassar, veio para criada de servir, para uma casa dalém. Até aqui, tudo normal. No princípio da década de 60, o padre, influenciado pelo espírito do Vaticano II, resolveu criar um coro, e ela foi das primeiras a aderir.

Parou um momento em evocações.

O senhor nem imagina. A miúda tinha uma voz! Ia para lá do que é humano. O canto dela tocava-nos onde nada mais nos atingia. Ouvir o seu atormentado agudo de soprano solar o Stabat Mater Dolorosa, sobre os graves de mau agouro dos baixos, compungia todo o auditório. Parecia que entrevíamos o fim do mundo, cataclismos inomináveis. Inundava-nos uma angústia tão grande que se, no fim da peça, olhássemos em volta, iríamos deparar-nos com muitas faces inundadas de lágrimas. Havia quem soluçasse incontroladamente. Não me admiro que algumas pessoas não tenham aguentado e tenham praticado atos tresloucados, como diziam os jornais.

Embalado no discurso, avançou para teorias próprias:

A música tem o que se lhe diga. Não sei se o senhor sabe, mas aquelas notas têm relações matemáticas exatas entre elas, que já Pitágoras tentou desvendar. Na Idade Média, a Música era uma das sete artes liberais que os homens ilustrados deviam estudar, como a Aritmética, a Geometria e a Astronomia. E é perigosa, sabe? Há algo de mágico e maligno naqueles doze tons. Doze, como os signos do Zodíaco. E como os apóstolos, em que um traiu. A música entra no nosso espírito sem licença, sem nós querermos. Retine e ecoa no mais íntimo de cada um. É absolutamente intrusiva, violadora, manipuladora. Eu posso estar muito satisfeito da vida, mas se for atingido pela melodia certa, posso ficar taciturno e sentir-me o mais miserável dos humanos. Era o que acontecia a alguns, quase sempre que Maria das Dores atuava.

No dia seguinte, rumei à aldeia de origem de Maria das Dores, nos altos da Serra da Freita. Era um lugarejo humilde, quase miserável, encaixado numa dobra da serra, em que as habitações confinavam com currais, e as poucas pessoas conviviam com todo o tipo de detritos rurais. Consegui localizar uma prima, já bem velha, que me facultou alguma informação mais íntima.

Contou que, em jovens, quando iam as duas buscar as vacas, no fim do dia, Maria das Dores parecia por vezes embeber-se daquele silêncio global, só céu e serra, e ficava muito parada, como se contemplasse algo peculiar, que só ela via. Então, lançava um canto dorido que se estendia pela superfície do planalto escalvado, alcançava as serras mais afastadas e regressava num eco transmutado, entremeado por reverberações fantasmagóricas como miragens. Contou que, nessas alturas, toda a sua pele se arrepiava, como se uma multidão de pequenos seres invisíveis as envolvesse.

Para Maria das Dores, aquele eco parecia funcionar como estímulo, e prosseguia em repetições de outros cantos, outros enleios, sempre tristes. Certo dia, com o eco, vieram lobos. Seis, cinzentos e de olhos amarelos. Contou que ficou paralisada de pânico, certa de estar no seu último dia, mas Maria das Dores enfrentou-os, com um canto da serra, nostálgico, mas firme e destemido. As feras estacaram surpreendidas e, perante o tom enérgico e uivado do canto de Maria das Dores, afastaram-se, dando mostras de algum receio.

Ela nunca falava nisso, mas, um irmão, um pouco mais novo, um dia perdeu-se na serra, ou caiu nalguma quebrada, e foi atacado. Quando o encontraram, estava quase todo roído pelos lobos.

Resolvi visitar o planalto onde ambas se tinham confrontado com as feras. Como então, o dia chegava ao fim. A aragem fria e sussurrante trazia apelos, rumores, ameaças. Em certo momento, o murmúrio cortante pareceu-me um canto humano, uma queixa dorida e muito aguda. Nunca me senti tão sozinho. Após uma luta de minutos contra a superstição e o medo, dei-me por vencido. Desatei a correr sem olhar para trás, absolutamente aterrorizado.

Abandonei ali a minha investigação da figura e da personalidade de Maria das Dores. Nem quis visitar a sua campa. Só resolvi contar tudo isto agora, vinte anos depois, porque me lembrei do caso ao ler notícias recentes de um estranho suicídio na Serra da Freita.

Joaquim Bispo

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Este conto integrará a 36ª edição da Revista LiteraLivre, a sair no final de novembro de 2022, em formato e-book, resultante de concurso literário:

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados

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Imagem:

Pintor não-identificado, Giuseppina Strepponi, c. 1845.

Coleção do Museo Teatrale alla Scala, Milão.

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10/12/2021

Um gesto ou dois

 

O homem tinha a cara enrugada, poucos dentes e um aspeto decrépito. Teria bem mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o por um misto de piedade e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é, o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam “cheios” — prenhes —, mas também ajudava em inúmeras outras tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água para acartar.

Era por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e “de comer”. Ficou a dormir num catre no palheiro e arranjou-se-lhe uma mesinha onde comer logo à esquerda da porta de entrada, separada do lume pelo monte de lenha. Os patrões e o filho pequeno comiam a dois metros dele, numa mesinha igualmente pequena e sentados em bancos rasteiros. Os dois cães de caça andavam sempre por ali, à espera que algo caísse da mesa.

A casa dos patrões era ampla e contígua ao palheiro. No verão, enchia-se de moscas, devido à proximidade com os animais, e também não faltavam pulgas. Só tinha a estrutura interna em taipa de dois quartos e um “peneirador” onde também se guardavam a masseira, a salgadeira, a bilha do azeite, a talha das azeitonas e duas arcas. Por cima deste conjunto, um sobrado onde se espalhavam as batatas e as cebolas para o ano inteiro. O resto era espaço amplo de telha vã, com um grande arcaz, o pote da água de usos de cozinha, uma cantareira com uma bilha de água de beber, e uma mesa enorme, só usada quando era preciso sentar muita gente numa matança do porco. O lume era feito num canto, no chão, onde se cozinhavam as refeições em panelas de ferro, e o fumo escoava-se pelas telhas. À noite, além do lume, só tremeluzia a chama de um candeeiro a petróleo, que se perdia na vastidão da casa.

Os tempos eram outros. Não havia eufemismos — empregados, trabalhadores agrícolas, assalariados —, só patrões e criados. A penúria dos agricultores rendeiros era quase tão grande como a dos criados, e não só na Beira Baixa. No entanto, vincavam bem as diferenças. Por isso o ti Mné Lucas — como o chamavam — sentava-se a uma mesa separada da dos patrões. E comia pão centeio. E dormia no palheiro.

A situação era “natural”, mas, de qualquer modo, o velhote estava por tudo. Nunca reclamava, nunca se queixava, nunca pedia nada; aceitava o que lhe davam ou o que achasse natural apanhar: figos, maçãs, ameixas. Certa vez, ralharam com ele, por ter apanhado mais de dois quilos de “lenticão” — uma excrescência da espiga do centeio —, vendido para remédios, e que rendia bom dinheiro. E foi motivo de galhofa quando uma vez pediu um martelo para bater um prego nas decrépitas botas de sola de borracha, remediadas com pregos. Um andava a entrar-lhe na carne.

Para o miúdo da casa, um catraio de seis ou sete anos, a chegada de um velhote carcomido, mas simpático, prometia animar o ramerrame campestre. Sentiu curiosidade, alegria, carinho. Certa vez, pediu mesmo aos pais que o deixassem acompanhá-lo no seu percurso matinal com o rebanho. Foi uma longa e monótona caminhada pelas encostas circundantes, mas o velhote acabou por animar o garoto ao construir um pequeno redil de brincar com muros de pedrinhas, e cancelas feitas de pauzinhos. Quando chegou a hora de comer, partilharam ambos o pão centeio dele, com algum conduto — certamente azeitonas, talvez queijo —, e ainda hoje o rapazito gosta da côdea queimada do pão centeio.

A rotina de saídas dos patrões era irem à terra de quinze em quinze dias, a uns doze quilómetros, onde a patroa tinha a mãe e duas irmãs mesmo do outro lado da rua. Até aos sete anos do garoto, iam os três na garupa da égua: o pai escarranchado, a mãe sentada de lado, atrás dele, e o miúdo ao colo da mãe, de pernas penduradas. Depois, já iam de carroça, sempre com carga extra de trigo para moer, ovos para vender, e outras cargas circunstanciais.

Nunca passavam o Natal no campo. Não faziam festa ou ceia especial de Natal, mas era uma data que nunca falhavam na terra. Exceto daquela vez: havia um assunto que o patrão não quis deixar entregue a outros, talvez uma vaca a parir por aqueles dias. Portanto, ficaram todos no monte. E nem avisaram ninguém, porque para isso era preciso ir até à terra mais próxima, a três quilómetros, e enviar uma carta. Não valia a pena; quando se fizesse dez ou onze da noite, os familiares certamente suspeitariam que tinha acontecido um dos inúmeros inesperados que aconteciam na vida do campo e descansariam.

A ceia desse Natal foi como a de muitas outras noites: batatas cozidas com couves, acompanhadas com uma fatia de toucinho, rodelas de farinheira e morcela. A única diferença foi que, apesar de não se fazer habitualmente qualquer ceia especial, todos sabiam que era noite de Natal, até porque nesse dia a patroa tinha amassado as filhós e tinham estado a fritá-las na caldeira de cobre antes da ceia. E havia um certo sentimento de complacência no ar. A patroa murmurou qualquer coisa para o patrão, este meditou uns segundos e chamou:

Ó ti Manel, hoje é noite de Natal. Venha aqui para a nossa mesa!

E pela primeira vez em três ou quatro anos, o ti Mné Lucas foi comensal dos patrões. A princípio, não se falou muito mais do que nas outras noites, mas o ambiente era afetuoso e no fim comeram-se filhós à roda do lume. Nessa noite, para além de algumas histórias já conhecidas, o ti Manel contou como acontecera o seu casamento: era marujo embarcado e, certa vez, ao atracar em Lisboa, soube por um conterrâneo que a sua noiva estava para casar com outro. Meteu-se logo no comboio a caminho da terra, “pôs tudo em pratos limpos” e casou ele com ela. Sentia-se-lhe na voz um misto de alegria pela evocação de um episódio tão especial, e uma nostalgia de tempos desaparecidos. Quando, pouco depois, se foram deitar, todos levavam um aconchego de alma inusitado.

No dia seguinte, o almoço foi guisado de batatas com um coelho bravo que o patrão caçou nessa manhã. O ti Mné Lucas não estava presente, porque andava com o rebanho, mas, à noite, quando chegou ao lugar habitual, atrás da porta, foi mimado com um pouco do guisado do almoço. Ainda antes de se sentar, meteu a mão num dos bolsos do casacão remendado e amarrotado que usava, tirou uma pequena escultura de uma ovelha, talhada à navalha num tronquinho de giesta, e estendeu-a ao deslumbrado miúdo.

Andava o rapaz já pelos quinze anos, quando o pai, na expectativa de uma vida menos áspera como operário fabril, decidiu desistir da lavoura, deixar os vários arrendamentos, vender rebanhos, vacas e o carro de bois e abalarem todos para a aldeia. Nunca mais viram o ti Mné Lucas. Parece que tencionava ir ter com uma filha a Lisboa. Souberam que morreu talvez um ano ou dois depois.

Passaram entretanto muitos anos, quase todos os protagonistas desta história já morreram, mas a criança de então mantém um especial carinho por ela e pela pequena escultura. Ainda hoje a guarda e de vez em quando gosta de a ter exposta. Mesmo agora estará a contemplá-la, ali na segunda prateleira da estante.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 2º lugar na categoria Conto internacional, no 5° Concurso Literário Internacional Castro Alves da Academia Rio-Grandina de Letras, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil, 2019–2021.

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Imagem: Carlos Relvas, Mendigo, (prova em albumina), c. 1862–1870.

Casa dos Patudos, Alpiarça.

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10/06/2019

Errata



«A febre, que desagradável! Os suores. A tosse, o mais penoso!»
Não serão febres de África, doutor?
«Tuberculose? “Santa mama preta da minha ama sudanesa”!»
«Ah, o fulgurante Manifesto! Paris. “A furiosa vassoura da loucura arrancou-nos de nós mesmos e enxotou-nos pelas ruas”. Dórdio, Amadeu, Manuel Jardim. O Diogo. Como o pobre me conheceu... À minha cintilante genialidade futurista. O porteiro do museu Carnavalet a enxotar-me, e eu aos urros, aos brados, em língua acabada de inventar. Só porque me sentei na cadeira de Voltaire. Sim, cruzei a perna e acendi um cigarro. Tinha de experimentar se um poucochinho do génio do antigo proprietário passava para mim, como dizem os hiperestésicos. Um tal Carrington. Como me fui lembrar ainda do nome? Já foi há uns sete anos. 1911? Faz sentido. Tempos gloriosos. “Um orgulho imenso intumescia os nossos peitos, pois sentíamo-nos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas dos seus acampamentos celestes.” E, para quê? A perfeita cópia da Olímpia foi considerada uma afronta revolucionária, por ser de Manet.»
Augusto, meu irmão, não deixes ficar os meus quadros por aí, à mercê de qualquer professor, cicerone ou antiquário. Destrói-os todos. Promete!
«Claro que preferiam Ingres. Ou, mesmo, Cabanel. Com a Academia nas mãos do Veloso Salgado… Amargos de boca. Daquela vez que o retratei fielmente, integrado num Inferno, onde ele era o diabo-mor, rodeado das almas penadas dos alunos. Ah, ah! Antes de ir para Paris. Sansão e Dalila: a prova de concurso à pensão Valmor. Concedida, só em 1910. O ideal a acontecer. “Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro”. Flanar em Paris ― dominar o mundo. Depois, a República e o embaixador. Cortar-me a pensão... Como se eu fosse monárquico. Claro que o tinha afrontado! “Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!” Lisboa, de novo. Há, apenas, quatro anos. A minha espantosa postura. As roupas pretas, o cabelo longo. Lançar as pernas para a frente, em desafio à pequenez lisboeta. Lançar o Manifesto aqui e ver “voar os primeiros Anjos!” O Congresso Futurista. Minha saudosa Cervejaria Jansen! As sessões futuristas do Teatro República. O Almada ― que formidável apresentação! Os meus desenhos na Orpheu. E os títulos! Síntese geometral de uma cabeça x infinito plástico de ambiente x transcendentalismo físico. Chamam-me irreverente e delirante. Uns acham-me Hamlet; outros, espantalho. Lisboa é demasiado pequena. Daquela vez que quis arrendar os Jerónimos para pintar uma tela enorme, eh! Gosto de a afrontar, de provocar polémicas e falatórios. Sou o “artista que o génio da época produziu.” A Portugal Futurista, no ano passado, poderia ter sido a revista que abalaria os alicerces bolorentos do país. Mas não passou do primeiro número. Nem consegui publicar o Manifesto
Tragam-me os meus escritos. Quero fazer um post-scriptum.
«Um gesto, mais um gesto, o último. Que seja único e sublime. Isso! Dois traços a abarcar cada página de canto a canto. E, a finalizar, no frontispício: Errata. E uma assinatura bem explícita: Santa-Rita Pintor, que é o que sempre fui. A minha obra maior ― a minha vida apontada ao futuro ― não cabe nos museus, nem nas bibliotecas.»
Adeus, companheiros; foi uma gloriosa vernissage!

Joaquim Bispo
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Este conto foi o 4º selecionado do concurso literário para composição do número 8 da Revista Inversos, em que ocupa a página 18:

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Imagem: Guilherme Santa-Rita (Santa-Rita Pintor), Menelau sustentando o corpo de Pátroclo, 1910.
Academia Nacional de Belas-Artes (Reservas), Lisboa.

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10/05/2019

Uma noiva para João do Campo



Era uma vez um rapaz que vivia sozinho no campo e raras vezes ia à cidade. Falava apenas com as cabras, os pássaros e as árvores, a não ser na festa dos rebanhos. Chegado à idade de casar, não conhecia ninguém que quisesse viver com ele, e pensava que todas as raparigas preferiam ficar na cidade, em vez de ir viver para o campo, onde, às vezes, faz muito calor e muito frio, e não há luz à noite. Então o João — assim se chamava o rapaz — foi falar com o rei, dizendo:
Meu rei, já tenho vinte anos e ainda sou solteiro. Não sei de ninguém que queira casar comigo. Peço-te que me arranjes uma noiva para viver, dia e noite, lá no campo onde moro.
O rei ficou muito admirado por alguém do seu reino não ter com quem casar e disse:
Daqui a três dias, volta aqui, mas traz a coisa mais bonita que o campo tem, como prenda para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias, voltou ao palácio com um braçado de malmequeres. Ao lado do rei estavam três pretendentes, que ele tinha arranjado, entre as solteiras da cidade. Uma disse:
Não gosto de malmequeres, que me fazem espirrar!
A segunda disse:
Tenho muitos, lá em casa, mais bonitos que esses!
A terceira disse:
Os malmequeres são as minhas flores preferidas. Caso contigo.
No dia seguinte, fez-se uma grande festa e casaram-se os noivos que, por fim, partiram para o campo. Durante uma semana, viveram os dois muito alegres. Corriam, rebolavam nos prados, jogavam às escondidas e riam-se a valer. Depois, o casal começou a ficar triste, porque esperava que o casamento fosse diferente. A rapariga dizia que o João não gostava dela, o que era um pouco verdade. Achava-a muito delicada, muito “menina da cidade”. Começou a desejar que a sua noiva fosse mais robusta e gostasse de jogar à bilharda, à pedrada, e a outros jogos de rapazes do campo. Resolveram pedir ao rei que os descasasse e lhes arranjasse outros noivos. Assim fizeram. Contaram ao rei o que tinha acontecido e ele ficou muito pensativo. Disse ao João:
Volta daqui a três dias, mas traz a coisa mais saborosa que o campo tem, como presente para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias voltou com uma saca de peras, muito cheirosas e suculentas. Ao pé do rei, estavam três pretendentes. A primeira disse:
As frutas doces fazem-me engordar.
A segunda disse:
Para comer peras, fico em minha casa!
A terceira disse:
As peras são a minha fruta preferida. Caso contigo.
Assim se fez e, depois da festa, os noivos partiram para o campo. Durante uma semana correram, saltaram, riram e brincaram muito. Depois começaram a ficar tristes. A rapariga dizia que o João já não gostava dela, e era verdade. Achava-a demasiado suave e frágil. Parecia-lhe que havia de preferir uma que fosse mais vigorosa e gostasse de jogar às quedas e ao jogo do pau. Contaram tudo ao rei, que os descasou e que, depois de pensar um bocado, disse ao João:
Volta cá daqui a três dias, mas traz a coisa mais divertida que há no campo, como lembrança para a tua noiva.
João voltou no dia combinado, com um par de cajados. A primeira das novas pretendentes disse:
Que jogo tão rústico! Eu só gosto de jogos de tabuleiro.
A segunda disse:
Que bruto; ainda alguém se magoa!
A terceira disse:
O jogo do pau é o meu favorito. Caso contigo.
O rei, então, disse:
Vão para o campo e voltem só daqui a um mês! Se então me disserem que continuam a querer casar-se, assim farei, mas só se gostarem de viver um com o outro.
Os noivos assim fizeram. Durante a primeira semana, não fizeram outra coisa senão jogar ao jogo do pau. Depois jogaram à pedrada, ao braço-de-ferro e ao salto a pés juntos, zonzos de alegria. João estava feliz. Finalmente encontrara alguém com os mesmos gostos. E também gostava do seu corpo, que era musculado e rijo, à maneira do campo. Passaram a dar muitos beijinhos e decidiram dizer ao rei que, agora sim, estavam bem um para o outro e queriam casar. Mas, antes, a noiva confessou:
João, eu, na verdade, não sou uma rapariga; sou o filho do rei. O meu pai, avisado por um mágico, fez que eu sempre me tenha vestido de princesa e ninguém no reino sabe que eu sou, na verdade, um príncipe. Quando te vi, gostei do teu ar campestre, e quando soube das tuas dificuldades com as outras raparigas, percebi que talvez fosse eu a pessoa que te pudesse contentar. E realizar-me contigo. Eu próprio, também me queria casar. Então, pedi ao meu pai para me deixar vir para o campo contigo.
João, apesar de surpreendido, aceitou e beijou apaixonadamente o amor da sua vida. Estavam ambos felizes e isso era o que na verdade interessava.
Quando se completou um mês, voltaram ao palácio e contaram ao rei que estavam decididos a casar. Houve uma grande festa e o rei, em pessoa, casou a princesa com o João, perante todo o povo. Todos se divertiram e um dos mais animados era o rei, que, finalmente, via o seu filho feliz.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra em posição de destaque — páginas 7 a 10 — a antologia “+ Amor, Respeito, Tolerância, Humanidade” da Editora Jogo de Palavras:


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Imagem: Almada Negreiros, Centauros (tapeçaria), 1959.
Four Seasons Hotel Ritz, Lisboa.
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10/04/2019

A Guerra da Líria



Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã. O negócio com os investidores imobiliários chineses tinha sido concluído. Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a apostar em aplicações financeiras agressivas, recebeu-o de imediato:
Tenho justamente o que lhe vai agradar, senhor Fontoura — atacou o gestor. — Já ouviu falar em SEP? São produtos de exposição suprema, na sigla em inglês. Não lhe vou mentir; como o nome sugere, são aplicações de risco máximo, em que o investidor pode perder tudo de um dia para o outro, mas, se correr bem, como quase sempre sucede, o senhor Fontoura pode ver triplicado ou quintuplicado o seu investimento em um ano, ou até em poucos dias. Quem não arrisca não petisca, lá diz o ditado.
Ótimo; mas de que se trata: ações, futuros, o quê?
Uma espécie de ações. Ou antes, unidades de conquista e predação, como eu gosto de lhes chamar. Cada ação é como um soldado que invade o território inimigo, mata quantos encontra e regressa com os despojos. Ou então mantém-se a ocupar o território, a assegurar um fluxo contínuo de riqueza para os acionistas. Para o seu bolso, senhor Fontoura.
Não estou a entender nada. Já percebi que são aplicações agressivas, mas apresentá-las como soldados a invadir território inimigo será uma metáfora exagerada, não?
De modo algum! É mesmo disso que se trata. O que lhe proponho, senhor Fontoura, são ações da Guerra da Líria. Sim, aquela que começou há quinze dias — reforçava o gestor bancário, perante o rosto incrédulo de Fontoura. — É o produto que está a bombar. Literalmente. Aproveite agora, enquanto estão baratas, porque quando o conflito ganhar dimensão, quando, como se espera, os rebeldes adquirirem mísseis terra-ar e derem luta às forças governamentais, de igual para igual, aí, senhor Fontoura, pode ser tarde. Aí, podem já estar ao preço das ações da Guerra da Síria, que ainda é um bom produto, sempre a jorrar dividendos, mas a que já não se pode chegar. Agora, só os grandes bancos e os conglomerados financeiros dos países ricos as podem comprar. Aliás, nem sequer aparecem à venda.
Fontoura parecia em choque. Pressionado pela pausa do gestor, acabou por murmurar:
Guerra?
Sim, claro; tudo o que dá dinheiro é bom para investir…
Refere-se a empresas de armamento, não?
Também; mas a gestão por objetivos obrigou a que se separassem as áreas de aplicação — Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra da Ucrânia —, cada uma com o seu fluxo de capitais e o seu retorno, por um lado, e a junção de várias empresas no mesmo esforço de produção. Um mesmo objetivo engloba, certamente, empresas de armamento, mas também empresas de reconstrução, empresas de segurança, até empresas de comunicação social, todas unidas no mesmo esforço de manter a guerra em atividade. O pior que pode acontecer é, sem se esperar, os contendores fazerem as pazes. Essa é a única situação em que os investidores podem perder grande parte ou todo o capital, porque as ações vêm por aí abaixo.
Mas, isso é horrível! — reagia, finalmente, Fontoura, acompanhando as palavras com uma expressão de repugnância. — Então e as cidades destruídas, as mortes de crianças, as populações em fuga a atirarem-se ao Mediterrâneo de qualquer maneira, em barquinhos sem condições, a preferirem o risco de uma morte por afogamento à vida demencial em zona de guerra?
Bem, realmente há algumas associações de intervenção social que chamam Stinky Ethics Products aos SEP, como quem diz Produtos de Ética Pestilenta, mas a pessoa quando entra no mundo financeiro é melhor nem saber em que é aplicado o seu dinheiro. É como os frangos — gostamos do sabor, mas não queremos saber como são criados.
Diga-me uma coisa: isso é legal? É que estou a ver que, se alguma coisa correr mal, posso ser preso e julgado, acusado de me tornar cúmplice de destruições e matanças, de crimes contra a Humanidade, não?
Ó senhor Fontoura, eu nem estou a acreditar no que estou a ouvir — impacientava-se o gestor. — O senhor desculpe, mas já viu algum vencedor ser julgado? Nós estamos do lado dos vencedores, senhor Fontoura! Agora, e por muito tempo. Mais depressa condenam algum negociador de paz do que simples acionistas que apenas querem aplicar honradamente algumas poupanças que conseguiram com o seu trabalho. Não é o senhor que vai lá dar tiros, nem empurrar refugiados para os barcos da morte
Está bem, está bem! — contemporizava Fontoura, derrotado. — Líria… A Líria até parecia um país sossegado. Cheguei a passar por lá, em férias. Tinham as suas manias, como os outros, mas nada fazia prever isto. De repente, aquele obus na escola… E o governo a dizer que tinham sido os rebeldes, e eles a acusar o governo...
Não fui eu que disse, mas com certeza que às vezes é preciso dar um empurrãozinho... Repare, os outros conflitos estiveram um bocado parados e assim ninguém ganha dinheiro. Felizmente, parece que as coisas estão a “melhorar” na Líbia. No Iraque, então…; as ações estão outra vez a subir em flecha. Aliás, se o senhor Fontoura não quiser investir na Guerra da Líria, compre Iraque. Estou convencido de que ainda vão subir muito mais.
Não, não; pode ser Líria. Gostava do país, gostava do povo. É pena irem partir aquilo tudo. Paciência!

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 19 a 21 — a 14ª edição (março/abril de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Delacroix, A barca de Dante, 1822.
Museu do Louvre, Paris.
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10/01/2019

O segredo de Desdémona



Quando Yago chegou a casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as novidades:
Já se começa a perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do retrato da minha senhora. Ela está deitada num leito, toda nua, e do alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da cama, há uma velha que tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o conjunto representa a figura mitológica de Dánae, engravidada por Júpiter sob a forma de chuva dourada.
Nua? Excelente! — rejubilou Yago. — Quando volta Desdémona a posar?
De hoje a uma semana. A minha senhora não quer dar azo a que o marido desconfie de nada.
«Ah! Mal posso esperar para insinuar indignidades aos ouvidos de Otelo», congeminava Yago. «Se for bastante persuasivo, Desdémona será repudiada e não ficará em posição de ser insensível aos avanços do meu protegido Rodrigo.»

Uma semana depois, em casa do general Otelo, este desvenda a Yago alguns dos aspetos militares que o preocupam:
O Turco está cada vez mais atrevido. Veneza está a pontos de perder Chipre e até de deixar de ser senhora do Adriático. O Conselho está a ultimar uma aliança com o Papa e com Filipe II de Espanha. Se esta aliança conseguir reunir uma grande armada, partiremos, a confrontar os asquerosos otomanos, nem que tenhamos de lhes dar batalha nas costas da Grécia. — Pensativo, continuou: — Não temo a batalha, mas constrange-me ficar tanto tempo longe da minha adorada.
Pode ir descansado, general, que sua esposa não se sentirá infeliz, isto é — gaguejava Yago —, mostrará o rosto choroso, mas certamente encontrará distrações, isto é, arranjará maneiras agradáveis de passar o tempo.
Meu bom Yago — lembrava Otelo —, ela ficará bem, com certeza, mas tu irás comigo. Não te esqueças que és o meu alferes.
Sim, claro, ficará bem. Disso não duvido... Ficará até muito bem...
Que queres insinuar? — espevitava-se o general.
Eu? Nada. Falei por falar. E jamais a minha boca se abriria para difamar a senhora da minha esposa — espicaçava Yago.
A maneira como falas parece indicar que algo menos honroso se passa. Pela obediência que me deves, dize: o que sabes? — impacientava-se Otelo. — E não temas pela tua esposa, que sempre terá fidalgas a quem assistir.
Se assim me intima — condescendia Yago, enfim no objetivo — só lhe posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado com um velho, a quem se expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz, se por lascívia, se por comércio.
Quê? — esbravejou Otelo, sentindo-se atraiçoado. — Pois ela entrega-se a outrem? Prova o que dizes ou despede-te da vida!
Não mate o mensageiro, senhor! Pergunte antes à sua amada aonde vai ela todas as sextas-feiras.
Sim, sim, manda já chamá-la, que quero esclarecer este caso!
É inútil procurá-la — devolvia Yago —, porque neste momento está ela a ser acariciada pelo olhar de Mestre Ticiano na Scuola Grande de S. Rocco. Parece que o Mestre tem predileção por corpos jovens e manifesta mesmo algum entusiasmo quando os seus pincéis acariciam a superfície da pintura, talvez fantasiando que acaricia a própria pele branca e sedosa de sua esposa.
Pintura? Ticiano? Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho quer de minha mulher? — surpreendia-se o general.
Os velhos, às vezes, são os piores — aproveitava Yago. — Ele está a retratar vossa esposa como Dánae, engravidada pela chuva dourada de Júpiter. Isto não parece muito decoroso.
Oh, com mil raios da procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na praça de S. Marcos, para que Veneza abomine essa devassa!

De regresso a casa, Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido:
Muito folgo em te ver vestida — ironizou Otelo. — Tanto quanto sei, ainda há pouco oferecias o corpo à lascívia dos olhares de quem o deve conhecer melhor do que eu.
Desdémona quedou-se muda e de rosto perplexo. Olhou em volta à procura da aia, que lhe recusou o olhar.
Explica-me agora — continuou Otelo — por que te expões nua ao olhar de Ticiano!
Nua? — contrapôs Desdémona. — Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo. O meu rosto aparece num corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi, num conjunto de desenhos e gravuras que Mestre Ticiano me deu a escolher, quando contratei a feitura do meu retrato. Só vou a S. Rocco para que ele retrate o meu rosto aplicado a esse corpo que escolhi.
Agora, era a vez de Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber:
Afinal, por que bizarria andas nessas andanças? Por quê, esse retrato?
Era para ser um segredo — explicou Desdémona, voltando a passar o olhar por Emília. — Vai fazer um ano que eu e tu nos unimos pela carne. Essa união do viço de uma jovem como eu, com a força de um deus como tu, frutificou. Estou grávida. Sim, grávida! — confirmou sorridente, perante o olhar assombrado do marido. — Quis fazer-te uma surpresa e oferecer-te uma imagem alegórica que evoque, todos os dias, esse primeiro encontro dos nossos corpos, e o que dele resultou. O tema de Dánae foi ideia de Ticiano.
Otelo ficou um bocado em estupor. Depois, berrou:
Yago! Estarás sempre na proa do barco dianteiro. Quero que os otomanos fiquem a conhecer as tuas feições. Podes precisar dessas amizades no Inferno!

Caprichosamente, quem não voltou da batalha foi Otelo, trespassado por uma bombarda turca. Desdémona, desgostosa, não resistiu à perda do seu amado. O seu corpo foi encontrado a boiar no Canal Grande. O quadro, no qual ela punha tanto empenho, acabou por ir parar a Madrid, oferecido por Ticiano a Filipe II, em agradecimento pelo apoio militar a Veneza.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 118 a 120 — a 12ª edição (Nov./Dez. de 2018) da Revista LiteraLivre, em formato e-book: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_12__edi__o_498aa56f8063d4

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Imagem: Ticiano, Dánae recebendo a Chuva Dourada, 1560–1565.
Museu do Prado, Madrid.
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