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10/03/2024

A última morada

 



Respeita a minha última morada.

Pelo teu exemplo, talvez respeitem a tua.


Eburo estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal.

Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica.

Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.

Na excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburo sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua moderna, só podia rumar num sentido:

O vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família, ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa, com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de quando?

Olhe, eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4 anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.

Eburo não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação pungente do companheiro de viagem.

Eu até acho mais ecológico — continuou o interpelado. E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir. Parece uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha. Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto que possa ser profanado por estranhos ou inimigos. Era assim no tempo da Guerra de Troia.

Só soube dessa guerra umas centenas de anos depois...

Somos a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o recém-conhecido. Devem ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos; para os sedentários ligados à terra, o fogo purificador faria menos sentido do que enterrar o defunto. Adubava a terra. As plantas e os frutos que dali medrassem teriam um pouco do falecido, seriam o seu regresso ao ciclo da vida.

Eburo mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.

O resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança, na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.

Em Lisboa, Eburo tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local, ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens, decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía — possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados apreciavam o túmulo coletivo.

Admiro o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições — lançou Eburo aos presentes. — E até fico impressionado, confesso, com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora, rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?

Os outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa, mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a palavra:

Como eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores da sua morada; eu nem isso.

Lembranças dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:

Chamo-me Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia seguinte partiu-a a martelão.

Os ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela depredação inútil.

O meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça, muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois, usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias, o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram completamente esfacelados.

Eburo estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava, era a regra: saque e destruição.

O outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.

O meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada — sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos, juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na cripta coletiva subterrânea.

Os dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.

Então, em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante. Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.

É uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburo, que já estava um pouco cansado da explicação.

Em 1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente, em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca, no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.

Isso foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…

— “Em bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que não conhecia.

Tem razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer. Não é verdade, amigo alentejano?

Eu não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.

Creze gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos “sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos vivos, ainda que de forma subtil.

Despediram-se do itálico, que prometeu pensar no assunto.

Quando passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.

Está prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos, bem-humorados.

Foi bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava, carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior, de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”, informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos Pardais, Cabeção, Mora.

Joaquim Bispo


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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 44ª edição (março/abril de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:

https://cultissimo.wixsite.com/revistaliteralivre/selecionados

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Imagem: Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a. C.

Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.

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10/12/2023

Obra de misericórdia

 



Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio. Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

Filial?

Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do carcereiro, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

Sobrinha!

Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Pompeia! Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar atirado para o alto da jovem representada — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado do que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão dócil e sedosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

Chh! Com jeitinho!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo lá do alto tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para afinar o modelo final da sua escultura.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 42ª edição (novembro/dezembro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 85):

https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

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Outra versão deste conto tinha sido o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação de Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul.

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Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa.

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10/04/2021

O crítico de Arte

 


Vou a esta!”, decidiu Carina, acentuando a decisão com um círculo a esferográfica sobre a informação da Agenda Cultural. “Uma palestra sobre aspetos da Arte pelo Sandro Delvaux só pode abrir horizontes mentais. O tipo é um crânio”, pensou, evocando a imagem vertical, ao mesmo tempo sóbria e sofisticada, do crítico de Arte.

Carina é uma dessas jovens mulheres suficientemente maduras para terem feito uma qualquer licenciatura e encetado uma carreira profissional, e suficientemente inseguras por não terem definido um rumo para a sua vida, quer por indecisões próprias, quer pelas circunstâncias. Um namorado que nunca mais ganha vontade de assentar não ajuda. Um dia, a impaciência suplanta a compreensão e o namorado desaparece ou é corrido, como sucedeu com o de Carina. A partir de então, ela vive nesse limbo que tem tanto de espera angustiada como de gosto reganhado de uma liberdade cada vez mais assumida e fruída.

Tem um pequeno grupo de amigas, também de trinta e pouco anos, que convida à vez para ir ao cinema, às compras ou a eventos culturais, conforme a propensão prevalente. Talvez por tê-la convidado em cima da hora, a amiga Sónia declinou o convite “com pena”, pelo que Carina resolveu-se a ir sozinha à palestra no Centro Cultural. Foi cedo, diretamente do escritório, e sentou-se na terceira fila. A primeira estava reservada para convidados e os emproados gostam de se sentar logo a seguir.

Como esperava, Delvaux fê-la aperceber-se de aspetos, no campo da Arte, em que nunca tinha pensado. Aliás, perguntou-se, como teria sido possível ela — que embora adorando Arte, vinha de Letras —, discorrer por si própria que um colecionador, na sua obsessão de juntar objetos belos e de valor, é, em geral, tomado por uma atitude mental de carência, de reminiscência de períodos em que queria ter mais objetos e não pôde, em que queria afagos e não os teve, de uma baixa autoestima, em suma? Ou que é possível detetar falsas pinturas renascentistas só pela análise dos anéis da madeira em que foi pintada? Além disso, a figura do crítico impunha-se não só pela assertividade das declarações, mas também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia muito do que fora dito.

Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, embora só tivesse admitido que devia agraciá-lo com umas palavras pessoais de apreço, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de agradecimento, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. A proximidade fê-la temer algum titubeamento, mas a segurança de Delvaux transmitiu-lhe calma. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que não tinha preparado, mas que transmitiam bastante do que sentia:

Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados e senti-me num estado de graça tal, como quando ouço As Quatro Estações de Vivaldi.

Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaram-na por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar.

Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.

Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.

Quando Delvaux conseguiu livrar-se do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar do Centro, mas ainda interrompidos esporadicamente por admiradores retardatários. Tanto por essa falta de sossego na conversa, como pela curiosidade que Carina manifestou pela pintura de Delvaux, de que ela não desconfiava, combinaram um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.

Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria.

O Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja.

Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar.

Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele!

Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.

Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre a semi-humilhação e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu-se a procurar o crítico e a fazer-lhe notar a indelicadeza, difícil de perceber num homem impecavelmente atencioso. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”.

Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas em páginas de Facebook deram-lhe pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.

Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista.

Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria.

Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo.

Mas só tem aqui autorretratos…

É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, com uma gargalhada.

São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda?

Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então.

E mantém-no aqui desde essa altura?

Sim, ajuda-me a não me esquecer dos meus sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, como o meu olhar perscrutava a minha imagem no espelho, ou o que dela eu selecionava.

Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria.

Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico.

Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou.

Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… — sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura.

O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento.

Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este! mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vida do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.

Carina dava-se conta de um misto de deslumbramento, pelo brilho teórico de Delvaux, com um subtil sentimento de opressão, que começava a deixá-la desconfortável.

Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte espanhola. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!

Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: “mas tenho de regressar ao escritório onde uma colega me está a aguentar o trabalho”. Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

Joaquim Bispo

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Uma versão de 3 páginas deste conto foi selecionada para a 26ª edição (março/abril de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 89 a 92).

https://drive.google.com/file/d/1vEVY_wh1RYuyT99vrww9QS2i5gO--Tn8/view

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Em 2015, este conto, com o título Sandro, obteve o 8º lugar, no Primeiro Concurso Literário do ICBIE — Instituto de Cultura Brasil Itália Europa.

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Imagem: Albrecht Dürer, Autorretrato, 1498.

Museu do Prado, Madrid.

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10/03/2021

Confrontação

 



Após o jantar na Casa Vermelha — a mansão campestre do casal Morris em Kent —, o casal e o amigo Dante Rossetti ocupavam o serão, como habitualmente, reafirmando convicções sobre a genuinidade da pintura anterior a Rafael e planeando pôr em prática a arte para o povo, através da empresa de arts & crafts que tinham fundado. Morris, amigo de Engels e socialista assumido, idealizava produzir mobiliário e outros objetos de uso diário, com qualidade funcional e singularidade estética, a um tempo artística e artesã — de que o recheio da mansão era exemplo excelente —, e que pudessem ser alternativa aos da produção em série da indústria, naquele terceiro quartel do século XIX. Nessa noite, centraram-se nas potencialidades estéticas dos jogos de tabuleiro, especialmente o xadrez.

Dispuseram-se a jogar uma partida, mas, como não dava para três jogadores, Jane, a mulher de Morris e modelo de pintura de ambos, aproveitou para propor um jogo bem mais interativo — o strip poker. Galhofou:

Já me despi muitas vezes para vocês. Agora, é altura de vos ver despir para mim!

Prontamente aceite, o jogo foi decorrendo no meio de muitas gargalhadas. Rossetti, percebendo a tensão voyeurista de Jane, ia-se deixando derrotar e expunha mais e mais o seu corpo, sobretudo quando o confronto se resumia aos dois. Este comportamento perdedor tornou-se muito evidente e foi percebido por ambos os membros do casal.

Assim, não vale ― queixou-se Jane. ― És exibicionista ou não te apetece jogar?

Não ― explicou Rossetti ―, tenho estado a pensar se não seria altura de alterarmos a estrutura dos jogos desta sociedade de competição. Os jogos são combates. O mundo anda a combater há demasiado tempo. Os jogos podiam ser idealizados para incentivarem a cooperação altruísta e não a competição egoísta. Aliás, William ― disse, virando-se para o amigo ―, tu próprio construíste um tabuleiro de xadrez para três jogadores, lembras-te?

Sim ― reconheceu Morris ―, mas nunca achei que fosse muito interessante. Era mais cooperativo, sem dúvida, mas não gerava uma cooperação sã: sempre dois dos jogadores se uniam, circunstancialmente, para derrotar o terceiro, para, por fim, se enfrentarem. Nem a cooperação era desinteressada, nem a competição límpida. Não creio que a sociedade já esteja pronta para a abolição da competição.

Talvez seja uma questão de regras ― contrapôs Rossetti. ― Pode ser o momento de criar regras cooperativas para os jogos. E para a vida. A sociedade tem de se defender da competição desenfreada. Vou-vos contar ― sobretudo aqui à nossa musa ― o que se passou em Florença, e o mal que a competição fez à República:

No início do século XVI, o governo da cidade encomendou a pintura de dois murais, para a sala do Grão Conselho do Palazzo Vecchio, aos dois artistas de maior nomeada à época ― Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci. Cada um deveria pintar, a fresco, numa enorme parede do salão, uma batalha travada pelos florentinos. Miguel Ângelo foi incumbido de pintar a batalha de Cascina, na qual Florença derrotara Pisa e, na parede oposta, Leonardo deveria pintar a batalha de Anghiari, em que os florentinos bateram os milaneses.

A situação era de grande oposição. Os dois mestres tinham personalidades completamente diferentes: enquanto Leonardo era um homem racionalista e habituado ao brilho dos salões das cortes, Miguel Ângelo era um intuitivo e um emotivo, e pouco hábil nas relações frívolas. Além disso, não gostavam um do outro. Leonardo era, talvez, mais reconhecido, mas o ascendente Miguel Ângelo tinha acabado de produzir a marcante estátua de David. A competição pela aura de maior artista do tempo estava em jogo e resolvia-se nesta contenda decisiva. A comparação, frente a frente, não podia ser mais incontornável e quem perdesse o confronto ficaria, compreensivelmente, humilhado e seriamente debilitado, em termos de estatuto artístico.

Estás a querer comparar essa confrontação com uma partida de poker? ― quis saber Morris.

Sim; perdoai se a comparação vos parece abusiva. Na verdade, cada um conhecia alguns pontos fortes do outro, mas não sabia que “cartas” ele ia apresentar. Leonardo apostou no que conhecia bem, pelos inúmeros estudos que tinha feito: cavalos. Os seus desenhos preparatórios mostravam, na parte central, o embate terrível de dois pares de cavaleiros, em que parecia que cavalos e cavaleiros se interpenetravam, no choque. O virtuosismo do desenho dos animais e as faces de terribilitá dos cavaleiros eram “o par de ases” em que Leonardo pretendia apoiar o restante “jogo”. Miguel Ângelo apostou na sua experiência de desenho do corpo humano, compondo um enorme cartão preparatório onde eram representados muitos soldados florentinos nus, no momento em que tinham sido surpreendidos, pelo exército pisano, a tomar banho no rio Arno. A sua musculatura supra-humana e a composição arrojada seriam as “cartas” de contraposição ao “jogo” do adversário.

Passaram, talvez, dois anos, sem que as paredes do salão vissem os traços planeados. Estariam a adiar o momento em que, finalmente, tivessem de mostrar o que estavam a preparar e não mais pudessem fazer bluff? Não sabemos. Certo é que Miguel Ângelo nunca passou o desenho para a parede, e Leonardo passou parte, mas usou uma inovadora combinação preparatória do suporte que correu mal ― a tinta escorreu quase toda para o chão. Não será crível, mas até parece que esse desaire tenha sido intencional. Para adiar o confronto não desejado e até temido.

Cada um deles foi entretanto chamado para outros projetos e não chegaram a mostrar a força da sua “mão”. Eis a deplorável herança que a competição nos legou ― a perda de duas obras de arte que seriam, provavelmente, extraordinárias.

Na verdade! ― comentou Jane. ― Mas não vejo a relação com o nosso jogo…

Se o jogo perverso que os acirrou à disputa, pelo contrário, os tivesse incentivado à colaboração ― continuou Rossetti ―, poderíamos hoje contemplar as obras-primas que as “roupas” da competição esconderam. Eis os malefícios da competição. Por isto, eu colaborei em perder este nosso jogo. Se eu teimasse em tentar ganhá-lo ― sorria matreiro ―, corrias o risco, minha boa amiga, de não chegar a contemplar a plenitude desta obra que, sem ser prima, tem autenticidade pré-rafaelita.

Dizendo isto e em gestos largos, atirou fora o resto da roupa, para grande gáudio dos amigos.

Tonto! ― ria Jane, divertida. ― Dizes isso porque não sabes jogar. E já vias que ias perder.

Ora, ora ― gracejava Morris, fingindo zombar do amigo ― tanta conversa para isto? Nem sequer um ás… Afinal, estavas a fazer bluff!


Joaquim Bispo


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Imagem: Batalha de Cascina, Cópia do trabalho, desenhada pelo pupilo de Miguel Ângelo: Aristotele da Sangallo, cerca de 1542.

Coleção: Holkham Hall, Norfolk, Inglaterra.

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(Este conto obteve o 1º prémio na categoria “Conto [de autor externo]”, no Concurso Literário da UFLA (Universidade Federal de Lavras) de 2015 — Lavras, Brasil.)

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10/05/2020

O Anjo Purificador



A mulher esperou, encoberta, que Abílio saísse, antes de subir as escadas para o estúdio e tocar. Lucília veio abrir, convencida de que o modelo, que já não ia para novo, se esquecera de algo, mas não; era Judite, uma sua ex-empregada doméstica, que ultimamente usara como modelo, e que já não via há uns quatro meses.
Entra, Judite! — convidou, sem reparar no olhar duro da mulher. — Estava a ver que já não me vinhas visitar.
Olá, Dona Lucília — respondeu Judite, fria. — O que cá me traz é do seu máximo interesse e agradecia que me ouvisse com atenção.
Que se passa, Judite?, não me assustes! Senta-te.
Contornaram uma grande tela, num cavalete a meio da divisão, em que se podia ver Abílio, de kilt e olhar sério, meio pintado, reclinado num sofá. No sofá verdadeiro se sentou a pintora. Judite manteve-se de pé, em atitude decidida.
O que se passa, Dona Lucília, é que a senhora tem ganho bom dinheiro à minha custa, e eu continuo pobre como dantes — disparou a mulher, de olhar alterado. — A senhora usou-me para as suas pinturas, ganhou milhares de contos com elas, e eu não tenho sequer uma casa minha.
Ó, Judite — estranhou a pintora — eu não te reconheço; o que se passa?
Ainda bem que não me reconhece, que eu não sou a mesma. Acabou-se a boazinha que ficava horas e horas, feita parva, em posições ridículas, a fazer de urso, ou de galinha — que agora as pessoas até se riem — e a senhora na lua, a olhar para anteontem. E, no fim do mês, o que é que eu via? — uns reles contos a mais. Eu já não tenho idade para continuar a trabalhar. Quero a minha reforma!
Reforma, como, Judite? Não sou eu que dou as reformas. Sempre fiz os descontos a que tinhas direito. Se lá fores, lá devem estar na Segurança Social.
Eles dizem que ainda me faltam doze anos para pedir a reforma. Ora, eu não aguento mais. Eu vou ser muito direta, Dona Lucília; ou a senhora me dá vinte mil contos por estes dias, ou o patrão vai ficar a saber que a senhora anda enrolada com o Abílio. Tenho os mails todos, sabe? Tanto os que a senhora envia, como os que recebe. Levei a password da sua caixa de correio e fiz cópias de ecrã de todos. Agora, a senhora escolha; quer continuar a sua boa vida de sonsa, com menos uns trocos, ou quer ver como acaba o seu casamento?
Eu não te mereço isto, Judite! Como podes? — desapontava-se Lucília. — Depois de tudo o que fiz por ti, que eras uma rústica… E que história é essa do Abílio? Enrolada? Tu não estás bem. O Abílio é um bom amigo e um bom modelo, tal qual como tu. Só isso!
Sim, sim! Pensa que eu não via o seu olhar a lambê-lo de alto a baixo? Depois, quando li os mails, descobri tudo. Agora está tramada, minha santa!
Estás louca, mulher! Nunca hás de perceber um artista. O pintor olha, com olhos de ver. Mira, sim, completa e exaustivamente o corpo do seu modelo. Conhece-lhe cada centímetro, melhor que ele próprio. E, às vezes, perturba-se, que a intimidade a tanto chega! Sempre se falou da relação ambígua entre pintores e modelos: já ouviste falar em Balthus? Às vezes, mais explícita que ambígua — Rodin, Toulouse-Lautrec… Mas isso, que te interessa!?; pareceu-te ver luxúria onde havia apreensão estética. E isso dos mails; nem quero tentar perceber que bizarros enredos de alcova engendraste. Só te digo que leste mal. E a desfaçatez de entrares na minha caixa de correio. Que cabra me saíste!
Não adianta negar, Dona. O Senhor Jorge vai perceber muito bem o que lá está escrito. Por isso, pense bem.
Não percebes nada, mulher! — impacientava-se a artista. — Vieste lá das berças e pensas que este mundo tem alguma coisa que ver com o teu. Isto não é um romance do Eça de Queiroz. Aqui não há primos sabidos, nem eu sou uma cândida esposa imatura. Convence-te, Judite, o mundo dos artistas é mais solto, mais liberal. Também não gostamos de ser preteridos, às vezes choramos, mas não entendemos os maridos e as mulheres como propriedade, nem lhes limitamos demasiado a liberdade. Mas sempre com transparência. Já estive com outros homens, sim, mas o Jorge foi sempre o primeiro a saber. E ele também já teve os seus arrebatamentos. Chegou a viver lá em casa uma de quem ele gostava muito. Depois de algum tempo, como eu previa, acabou-se a chama, e ela foi-se embora. Não ando com o meu modelo, mas se andasse, o Jorge estaria ao corrente. Percebes, Judite? Agora, vai-te embora, que não me apetece olhar para ti.
Antes de sair e bater com a porta, Judite, visivelmente confusa, ainda articulou, sem convicção:
Se é assim que quer, assim terá! Vaca!

Dois dias depois, Judite voltou.
Que queres, Judite? — perguntou Lucília, segurando a porta, ao ver o olhar injetado da outra.
Esta empurrou Lucília e entrou, fechando a porta sem olhar para trás. Depois, retirou da malinha uma faca de cozinha e apontou-a à ex-patroa:
Não te vais livrar assim! Deste-me a volta, deram-me a volta, cambada de badalhocos, mas eu não vou desistir. Se não dás a bem, dás a mal — vociferava a ex-chantagista convertida à extorsão.
A pintora hesitou por um momento, ao ver a faca no braço em riste da outra. Depois, recuou calmamente, de olhar perscrutador. Quem a visse a avaliar a agressora, não demonstrando medo, antes curiosidade, suspeitaria de alguma quebra momentânea de siso, provocada pela situação traumática. Também Judite pareceu surpreendida com a reação da ex-patroa. Mantinha-se parada a três passos de Lucília, faca levantada, atitude expectante. Foi a pintora que quebrou a rigidez da composição:
Judite, escuta, se me agredires, estragas a tua vida. Vais presa, deixas de estar com o teu filho. Deves estar desesperada para fazer isto. Posso ajudar-te, mas não da maneira que dizes.
Quero o meu dinheiro! — insistia Judite.
Ouve, estou-te reconhecida pelos trabalhos que fizeste para mim, não o esqueço. As minhas pinturas vendem-se por muito dinheiro? Nem sempre foi assim. Mesmo então, cumpri o combinado com os meus modelos; paguei sempre no dia certo, não foi? Também um construtor vende os prédios por muito dinheiro, e não é por isso que o pedreiro muda de carro. Às vezes, lá tem um prémio pelo Natal. Queres comparticipação? Vamos fazer o seguinte: posas para mim com essa faca, nessa atitude. Interioriza-a bem: zangada, ressentida, vingativa. Gostei da imagem, é forte. Acho que dá para uma nova série de pastéis. Pago-te o mesmo que te pagava, mas, além disso, quando as obras se venderem, recebes uns três por cento do que eu receber. Parece-te bem?
Judite estava confusa e indecisa. Tentava calcular quantos contos representariam três por cento de, talvez, cem mil euros, depois de deduzida a parte da galeria. Nesse momento, ouviu-se uma chave a rodar na fechadura e Abílio entrou. Surpreendido por ver Judite de faca na mão e face afogueada, indagou, em prontidão:
Há algum problema?
Não, Abílio, entra! — contemporizou a pintora. — A Judite veio outra vez visitar-me e combinámos uma nova série de telas com anjos justiceiros femininos — uma mistura de Arcanjo São Miguel e empregada doméstica: numa mão, a espada; na outra, o pano do pó. Vou-me rir com as interpretações que a crítica vai fazer.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve uma menção honrosa na edição de 2013 do Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba, Brasil, categoria internacional, e integra a coletânea resultante — páginas 121 a 124:

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Em 2018, este conto foi objeto de interesse por parte da realizadora Margarida Moreira, que, a partir dele, elaborou um guião e respetiva story board, e lançou uma operação de crowdfunding para a sua concretização em filme. Operação que, infelizmente, falhou:

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Imagem: Paula Rego, Anjo, 1998.
Casa das Histórias Paula Rego, Cascais.
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