10/07/2018

A Estátua sem Rosto




O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas «(…) mingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)», mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugurações.
Ribeira de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máquinas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D. Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.
Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câmara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente, alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; el-rei D. Moniz não tem cara nem nariz», o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por ele fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além de uma mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra, não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.
A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
Não — continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram — cavou fundo no grupo de decisão.
Mas, afinal, ganhou? — interveio o repórter.
Não ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos — uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o caracteriza está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
Exatamente! Estes são os caracteres com que se pronuncia D. Moniz.
Não sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da população que não tinha estado presente.
Na verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.
Mas você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr. Albano.
Um espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

Joaquim Bispo

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(Esta ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)

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Escultura: Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).

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